Por Tainá Scartezini
O que acabou, pondera o filósofo, não foi o futuro, e sim nossa capacidade de imaginá-lo
Sugestão: antes de prosseguir, aperte o play.
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
Carlos Drummond de Andrade
Em Depois do futuro, o filósofo Franco “Bifo” Berardi investiga as mutações na concepção de futuro ocorridas ao longo do século XX, bem como suas implicações.
Longe de ser um tratado filosófico, o livro, publicado em 2009 – ano do centenário do Manifesto Futurista, escrito pelo poeta italiano Filippo Tommaso Emilio Marinetti – é um ensaio sobre como transcorreu a passagem de um futuro tão brilhante e esperançoso, no começo do século, para um futuro amedrontador, no final do período. A fim de investigar tal mudança, Berardi vaga pelas vanguardas artísticas e políticas do século XX.
O filósofo e ativista italiano, nascido em 1948 e formado em estética pela Universidade de Bolonha, atualmente é professor de teoria de mídia na Academia de Belas Artes de Milão e colaborador da revista e-flux, influente periódico no campo das artes. Depois do futuro bebe diretamente desse universo conceitual.
Juntando crítica de arte, filosofia e psicanálise, Berardi argumenta que a vanguarda futurista italiana, encarnada nas propostas de Marinetti – poeta que posteriormente escreveria outro manifesto, O fascista (1919), e apoiaria Benito Mussolini – cristalizou uma nova concepção de futuro. Seus antecessores viam no futuro a imagem da queda, isto é, associavam o avanço histórico com o afastamento do paraíso e, portanto, a humanidade, cada vez mais distanciada do divino, estaria degenerando com o passar do tempo. Os futuristas, ao contrário, fizeram algo inédito: associaram o futuro com a ideia de progresso.
Para Bifo, o Manifesto Futurista de Marinetti “é um hino à modernidade” que transforma em valores estéticos e políticos “a máquina, a velocidade, a violência e a guerra”, diz. Segundo o filósofo, o sucesso do futurismo na Itália e na Rússia se deve a dois fatores: à industrialização tardia por que passaram tais países, em comparação a outras nações europeias, e ao fato de ambas vanguardas, italiana e russa, ansiarem pelas inovações técnicas. Ou, como diz o filósofo, elas acreditaram no futuro, no duplo sentido da palavra, e deram-lhe existência e credibilidade.
Mas algo aconteceu. No final do século, a esperança cedeu lugar à melancolia – afecção tão bem tematizada no filme homônimo de Lars Von Trier.
Figura de destaque no movimento autônomo entre os operários italianos dos anos 1970, ao lado de outros intelectuais como Antonio Negri, Berardi, que trabalhou com Félix Guattari, filósofo e psicanalista francês, ambos bastante ativos em maio de 1968, percorre os campos psicanalíticos lacanianos e pós-estruturalistas tentando elaborar o ocorrido.
O autor argumenta que a aceleração, efeito político da exaltação da velocidade, se deslocou da esfera produtiva para a esfera da informação e “isso quer dizer que a velocidade foi internalizada. Transformou-se em automatismo psicocognitivo”, escreve. Para ele, a máquina externa, exaltada pelos futuristas e cujo símbolo máximo era o automóvel, foi internalizada. Hoje, não sonhamos mais com robôs humanoides, sonhamos com humanos aprimorados. Não é preciso ir tão longe e fantasiar com a implantação de nanochips na pele. Microdosagens de LSD, jejum intermitente e apps de “saúde” acoplados no pulso (pense nos smartwatches) já são realidade. E fazem sucesso não só no Vale do Silício.
No entanto, mais informação não significa mais conhecimento, pelo contrário. Para Berardi, citando Arthur Kroeker, “mais informação, menos significado”. É como se a submissão à hiperconectividade tivesse produzido uma linguagem vazia. Há referente e há significante, mas não há significado.
Quem teria antevisto o fim do futuro, segundo o filósofo, seria a banda punk Sex Pistols, que em 1977 cantou “No future” [não há futuro]. Os avanços na computação, na cibernética e na telefonia de fato nos tornaram mais interconectados, mas também mais vigiados, pois na rede [network] o comportamento não é aleatório como seria na multidão, alerta Bifo. Os caminhos que os bits precisam percorrer de um ponto a outro através dos cabos submarinos que formam o que chamamos de internet estão ordenados de acordo com uma escolha: qual o caminho mais rápido dadas as conexões à minha disposição? Logo, há caminhos privilegiados. O percurso foi predeterminado em nome de uma suposta eficiência, a velocidade.
Mas o que acabou, pondera Bifo, não foi o futuro, e sim nossa capacidade de imaginá-lo. Quando pensamos no porvir, imaginamos um futuro nefasto: vigiado pelas câmeras nas ruas e espionados pelos nossos celulares, aguardamos a catástrofe ambiental sentados em frente a nossas telas. Esse cenário no qual a cada dia estamos mais perto do abismo desencadeou uma geração conectada, mas solitária, uma geração depressiva e suicida. O excesso de velocidade consumiu nossa energia.
“A epidemia de depressão contemporânea se coloca em um contexto de paralisia da vontade, que é um outro modo de dizer precariedade. Na precariedade, manifesta-se uma impossibilidade de traduzir as intenções em ações, em comportamento”, escreve o filósofo e ativista.
Inação. Este é o diagnóstico a que chega Berardi sobre nossa época. Uma justa crítica ao instigante filósofo talvez comece por aí. Onde está a agência, a possibilidade de ação?
Uma década depois da publicação do livro, vimos que o mundo ainda pode pulsar. Presenciamos, no Brasil, por exemplo, as manifestações pelo passe livre (2013), as ocupações dos secundaristas (2015), o Ele Não (2018) e até motoristas de aplicativo foram às ruas (2019 e 2020). E, no exterior, a Primavera Árabe, o Occupy WallStreet (2011), o Black Lives Matter (2013), o Ni Una a Menos (2015) e a greve das escolas pelo clima (2019), para citar alguns. Também presenciamos uma nova onda nacionalista de extrema-direita, é verdade, mas duvido que todos ainda continuemos os mesmos depois das revelações de Edward Snowden e do escândalo com a Cambridge Analytica. Movimentos por segurança e privacidade dos dados começam a pipocar. Afinal, existem outros possíveis, na acepção que o próprio Berardi confere ao termo, como um conteúdo plural inscrito no presente, embora ainda não seja uma realidade.
***
Não falar da atual pandemia de covid-19, o assunto mais importante do momento, me parece injusto com Bifo, um autor tão engajado em pensar o presente. Em “Além do colapso, três meditações sobre possíveis consequências”, recente comentário seu sobre a pandemia publicado na e-flux, ele afirma que quem melhor previu o apocalipse viral foi Donna Haraway em Staying with the trouble. Nesse livro, a filósofo-bióloga-antropóloga aponta para uma nova concepção de humanidade enredada em tramas coevolutivas com outras espécies, além de elaborar uma crítica ao termo antropoceno, nome dado para a nova época geológica em que vivemos.
A crítica de Haraway ao antropoceno presentifica a questão do impacto “humano” na Terra e expande o conceito de humanidade para, assim, repensar as relações com outras espécies e com o meio ambiente. Ela também propõe algumas fabulações especulativas, dentre as quais está Terrapolis, um espaço onde os seres não são, mas tornam-se conjuntamente uns com os outros.
A meu ver, Terrapolis é um lugar diametralmente oposto não à metrópole real, mas à metrópole simbólica: Metropolis, a cidade do filme de Fritz Lang. Em Metropolis, as máquinas funcionam a toda velocidade e sem parar, assim como muitos relatam estar nessa quarentena, mas isso tem um custo. E esse custo é a vida humana.
Nesse mesmo texto, Bifo escreve ainda o seguinte: “Enfrentamos duas alternativas políticas: um sistema tecno-totalitário que relançará a economia capitalista por meio da violência, ou a libertação da atividade humana da abstração capitalista e a criação de uma sociedade molecular baseada na utilidade. […] Do que precisamos agora? Agora, de imediato, nós precisamos de uma vacina contra a doença, precisamos de máscaras protetoras e precisamos de equipamentos de terapia intensiva. E, a longo prazo, precisamos de comida, precisamos de afeto e de prazer. E de uma nova cultura de ternura, solidariedade e frugalidade. […] Também precisamos imaginar e criar um movimento de carinho que compelirá os jovens a desligar suas telas conectivas como lembrete de um tempo solitário e medroso”.
Talvez, alguém precise gritar “Metrópolis está morta e o homem-máquina é um zumbi, vida longa ao devir-mulher e aos seres de Terrapolis!” para que o canto do chamado ecológico e da ePrivacy [privacidade eletrônica] ressoe no imaginário contemporâneo. Afinal, não é a vida que precisa parar, mas o automóvel.
Tainá Scartezini é mestranda em antropologia pela USP e cursa a especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp. Desenvolve um podcast de divulgação científica de antropologia, o Selvagerias.