Por Juliana Stern
Por que certas vidas são mais “enlutáveis” do que outras e por que certos lutos não são encorajados da mesma forma são algumas das reflexões promovidas no livro Vida Precária, da filósofa americana Judith Butler.
“O que concede a uma vida ser passível de luto?”, é uma das perguntas que mais marcam a leitura dos cinco ensaios em Vida precária: os poderes do luto e da violência, de Judith Butler. Publicado originalmente em 2011, o livro da filósofa americana, uma das maiores teóricas contemporâneas do feminismo, levanta discussões não apenas sobre a morte e o luto, mas também sobre quais vidas importam o suficiente para serem enlutadas.
Os ensaios, escritos após o ataque de 11 de setembro de 2001, discutem principalmente a elaboração de políticas de violência após a experiência coletiva da perda. Diante de um luto repentino, acompanhado de uma nova sensação de vulnerabilidade, da realização de que “estamos sujeitos à morte pelos caprichos de outrem”, para usar palavras de Butler, os EUA partiram para soluções violentas e de vingança.
De acordo com a análise da autora, os atentados ao World Trade Center e ao Pentágono causaram uma intensificação do discurso nacionalista, o fechamento das fronteiras, o cerceamento de direitos e culminaram nas invasões americanas do Afeganistão e do Iraque em nome da “guerra ao terror”. E, enquanto certas formas de luto foram reconhecidas e amplificadas nacionalmente, outras foram colocadas como inimagináveis, impossíveis de serem sentidas.
Como comparativo, a autora joga luz em como as mortes do 11 de setembro receberam visibilidade mundial, consagradas em obituários e monumentos públicos, mas as vidas perdidas em guerras além das fronteiras americanas não foram reconhecidas com a mesma intensidade. Segundo a autora, a exaltação das perdas de cidadãos americanos foi acompanhada do apagamento das representações públicas daqueles que foram – e são – mortos pelas ações dos EUA. “Por que as mortes de israelenses e palestinos não são vistas como igualmente horríveis? Até que ponto a própria recusa em perceber a morte de palestinos como um “massacre” produziu uma ira imensurável por parte da população árabe que busca algum reconhecimento e resolução legítimos para esse contínuo estado de violência?”, questiona Butler.
O conflito entre Israel e a Palestina continua longe de uma solução. Em maio deste ano, foi morta a jornalista palestina Shireen Abu Akleh, baleada enquanto reportava um tiroteio entre forças israelenses e militantes palestinos em Jenin, na Cisjordânia. Akleh foi atingida por um tiro disparado pelas forças de defesa israelense (IDF). Em meio ao luto pela morte da jornalista, também se iniciou um conflito de narrativas. Segundo reportagem publicada na BBC, um relatório dos EUA concluiu que a morte da repórter foi causada por um tiro vindo das forças israelenses, mas afirmou não poder concluir que o disparo foi um ato intencional. Esse posicionamento foi criticado pelo irmão da repórter e por autoridades palestinas, que alegam que Akleh foi morta intencionalmente por um soldado israelense e acusam os EUA de tentar proteger Israel.
O que podemos relacionar do ocorrido com os ensaios de Butler é que, apesar dos EUA não contestarem boa parte das mortes palestinas, como a de Akleh, e da ciência da responsabilidade de Israel sobre essas mortes, elas ainda são geralmente percebidas como menos dignas de revolta e luto em comparação com as vítimas de tragédias nacionais e ataques terroristas em países ocidentais. Nesse sentido, vale mencionar que Joe Biden, atual presidente americano, acusou o presidente da Rússia, Vladmir Putin, de genocídio pelas mortes ocasionadas da invasão russa na Ucrânia. Mas esse termo não é utilizado em posicionamentos americanos sobre os bombardeios israelenses que matam desproporcionalmente a população civil palestina.
Para a autora, essa falta de equivalência no luto pode significar um fracasso em reconhecer algumas vidas como vidas, como se elencássemos humanos entre os que são passíveis de luto e reconhecimento e os que não são valiosos o bastante. “Uma vida muçulmana é tão valiosa quanto uma vida do Primeiro Mundo?”, pergunta Butler. De acordo com a filósofa, algumas pessoas passam por processos de desumanização, o que afeta a possibilidade de que certas mortes possam ser publicamente pranteadas. Nos ensaios, a autora se pergunta sobre quais enquadramentos determinam as vidas que importam e as que não são valorizadas.
Segundo Butler, existe uma vulnerabilidade que é distribuída desigualmente ao redor do mundo, o que faz com que algumas populações estejam mais suscetíveis à violência arbitrária e à desvalorização do que outras. Como exemplos de vidas que não se enquadram como passíveis de luto, Butler menciona mulheres e pessoas LGBTQIAP+. Seguindo o raciocínio da autora, considerando que o nível de vulnerabilidade é o que determina se uma morte terá o merecimento de ser enlutada ou não, também é possível incluir negros, indígenas, cidadãos de países subdesenvolvidos, e outros grupos minoritários na lista de vidas percebidas como sem valor.
Por outro lado, Butler ressalta uma preocupação com as respostas violentas que seguem a perda de vidas (consideradas passíveis de luto), partindo do exemplo das ocupações americanas no Oriente Médio. Para ela, para que as respostas às violações sofridas sejam não violentas e não perpetuem um ciclo de violação, é preciso reconhecer a condição de vulnerabilidade e a desigualdade dessa condição ao redor do mundo. Esse discernimento pode ser um caminho para que não percamos, como humanos, a capacidade de nos enlutar, pois, de acordo com a autora, é isso que nos dá “aquela noção mais afiada de vida que necessitamos para que possamos nos opor à violência”.
O livro Vida precária: os poderes do luto e da violência foi lançado no Brasil em 2019 pela editora Autêntica, que disponibiliza gratuitamente o início da obra em formato digital pelo site.
Juliana Stern é jornalista e aluna da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp)