Por Diego Vicentin
Padrões e Política
A indústria é tanto causa quanto consequência da padronização técnica. A produção em massa requer que os objetos sejam feitos com relativa uniformidade para que possam se relacionar em redes de troca e reposição, bem como para que possam operar em conjunto (interoperar). O estabelecimento de uma dimensão comum de funcionamento entre diferentes objetos técnicos é uma das condições necessárias para a concretização de extensas infraestruturas produtivas que se organizam em rede. Seu smartphone, por exemplo, deve estar conectado às antenas da rede celular e/ou de um roteador Wi-Fi para que você tenha acesso a esse artigo nos servidores que hospedam a revista ComCiência. Perceba que seu aparelho não é necessariamente da mesma fabricante do roteador WiFi, da antena celular ou do servidor e, no entanto, eles funcionam em conjunto. Esta interoperabilidade se baseia na adoção, pela indústria, de protocolos comuns (padrões) que possibilitam a troca de sinais entre os dispositivos heterogêneos que compõem a Internet.
Padrões são necessários em redes de informação e comunicação, mas também em redes de transporte, energia elétrica, água e esgoto, logística e circulação de mercadorias. Trata-se de uma necessidade de natureza técnica, que envolve o aperfeiçoamento das operações da rede e do funcionamento de seus componentes. Podemos dizer que a criação e a atualização de padrões são passos importantes no desenvolvimento e na evolução de toda infraestrutura industrial que se organiza de maneira reticular.
No entanto, a definição de padrões não responde apenas a necessidades técnicas ou produtivas. Padrões são meios de realizar escolhas políticas e de fazer a rede operar de tal modo que reforce ou implemente tais ou quais valores morais, modos de vida, reforçando desigualdades existentes e/ou criando outras novas (Busch, 2013; Lampland e Star, 2009). A definição de padrões técnicos é uma atividade política porque é produtora de mundos, ou seja, porque estabelece as condições de possibilidade de inumeráveis formas de existência e associação dos humanos entre si e com os não-humanos. Trata-se de um meio de exercício de poder e de produção de dissimetrias. Redes de transporte, energia, comunicação e saneamento se estabelecem como solo que sustenta uma série de ações e experiências, são meios de distribuição de riqueza e acesso a bens sociais. Definir padrões é, assim, uma maneira de orientar ações e conduzir conduta.
Pois bem, se concordamos que a definição de padrões técnicos é uma atividade política, torna-se importante perguntar quem são os responsáveis pela definição dos padrões que fazem nossas redes funcionar. De maneira mais específica, vale perguntar: quem define os padrões que fazem a Internet funcionar?
Padrões e Governança da Internet
A história da governança da internet se confunde, em larga medida, com a criação do protocolo que leva seu nome (Internet Protocol, IP) e da organização responsável pela sua manutenção e atualização, o IETF (Internet Engineering Task Force). Nomeado como tal em 1986, a comunidade de engenheiros que fundou o IETF já conduzia atividades de desenvolvimento de padrões para a computação em rede ao menos desde o final dos anos 1960, na costa oeste dos EUA. Normalmente atribuído a uma parceria entre Vint Cerf e Robert Kahn (1974) o protocolo IP foi desenvolvido com financiamento do Departamento de Defesa estadunidense, tornando-se, depois, hegemônico na indústria global (Abbate, 1999). Vale lembrar que antes da consolidação da Internet como meio hegemônico de interconectar computadores, as corporações contavam com sistemas proprietários e protocolos fechados entre os quais não havia interoperabilidade. Sistemas de computação em rede desenvolvidos por empresas como Apple, IBM e DEC não conversavam entre si e disputavam por hegemonia de mercado.
Já na década de 1980, quando se intensificou a introdução de computadores pessoais no trabalho de escritório, ficou claro que o caminho era a massificação da computação em rede, mas, para isso, seria preciso padronizar algumas de suas operações essenciais. Esse foi o papel do protocolo IP que define a formatação e o endereçamento dos pacotes de dados. Em resumo, o protocolo estabelece um padrão para o cabeçalho de cada pacote que transita na rede com informações que identificam sua origem e seu destino, que verificam erros na transmissão e que facilitam a recomposição do arquivo transmitido a partir da junção dos pacotes entregues. A ampla adoção do protocolo IP se deve, em larga medida, ao fato de que não há limitação de implementação que decorra direitos de propriedade intelectual e pagamento de royalties. A abertura e o compartilhamento são valores que fazem parte da origem mítica da Internet, especialmente por sua ligação com a contracultura (Turner, 2006). Isso não quer dizer, no entanto, que a definição de padrões esteja livre de interesses comerciais, bem ao contrário. A maior parte do trabalho envolvido no desenvolvimento de padrões é realizado por profissionais da iniciativa privada que conduzem suas atividades com o objetivo principal de defender os interesses comerciais das empresas das quais fazem parte (DeNardis, 2014).
Tal como muitas comunidades técnicas dedicadas ao desenvolvimento de padrões de interoperabilidade, o IETF está inserido numa organização não governamental sem fins lucrativos (Internet Society, ISOC). O termo “comunidade técnica” tornou-se bastante comum sobretudo no campo que se dedica à Governança da Internet. Nesse contexto, são classificadas por “comunidades técnicas”, além do próprio IETF, o IEEE (Institute of Electrical and Electronic Engineers), o IEC (International Electrotechnical Comission) e outros tantos. Na prática, tais organismos são responsáveis por oferecer a infraestrutura formal e logística para o desenvolvimento de padrões técnicos de caráter voluntário, ou seja, padrões cuja adoção não é imposta por nenhuma autoridade legal ou regulatória. Esse modelo de padronização liderado pela indústria, que ocorre de maneira relativamente descentralizada, é aquele que vem sendo adotado majoritariamente em relação à Internet. Já são incontáveis as organizações que compõem seu ecossistema de padronização, especialmente se pensarmos a Internet de maneira ampla, como a infraestrutura de escala global que permite a circulação dos dados que movem o capitalismo contemporâneo desde o provedor de internet na “última milha” até as fazendas de servidores das Big Techs, passando pelas redes de cabos submarinos e pelos Internet Exchange Points (IXPs).
Cada uma das inúmeras organizações dedicadas à padronização técnica tem características próprias em relação à sua estrutura formal e processual apresentando diferentes níveis de abertura à participação, políticas de transparência e de proteção à propriedade intelectual. No caso específico do IETF o desenvolvimento e a implementação de padrões dependem de adesão voluntária pela indústria e não há qualquer impedimento formal à participação. Todos os interessados podem ter acesso à documentação produzida pelo grupo, bem como participar das listas de discussão e das reuniões periódicas. As limitações à participação, no entanto, são bastante concretas e têm base material e técnica, afinal, é preciso despender uma quantidade enorme de recursos monetários e humanos. Além de pessoal com conhecimento qualificado e especializado trabalhando com dedicação exclusiva, há também custos vinculados às participações nas reuniões que ocorrem, na maior parte das vezes, em países do Norte Global.
Para influenciar de maneira decisiva o desenvolvimento de um determinado padrão deve-se ter acumulado pessoal com expertise técnica bem como capacidade de navegar pela estrutura organizacional e burocrática de uma determinada organização de definição de padrões. É preciso dominar as políticas e procedimentos internos da instituição em questão de tal modo a conhecer suas brechas e fazer uso de seus mecanismos tendo em vista objetivos determinados (de emplacar e/ou barrar propostas). Isso inclui conhecimento sobre a linguagem e o vocabulário específico de cada organização de desenvolvimento de padrões.
É preciso levar em conta que um padrão técnico se materializa num documento que descreve e condensa sua composição e funcionamento, é a partir da redação do documento que se pode ver alguns dos embates e conflitos que se estabelecem. É ainda crucial ter capacidade de negociação para estabelecer acordos e alianças, ajuda muito ocupar cargos de liderança dentro dos grupos de trabalho que efetivamente redigem cada padrão.
Até aqui tratamos as organizações de desenvolvimento de padrões como sinônimo de comunidades técnicas onde a filiação ocorre de maneira individual e se supõe que cada membro age de acordo com sua própria capacidade e interesse mesmo que, na prática, a maior parte dos participantes estejam defendendo os interesses das corporações às quais pertencem. Mas, este não é o único modelo organizacional para o desenvolvimento de padrões que contribuem para a governança da Internet, existem inúmeros consórcios industriais onde os membros filiados não são pessoas físicas e sim jurídicas. Tais consórcios normalmente se relacionam a tecnologias específicas e costumam ter políticas restritivas em termos de participação, transparência e propriedade intelectual. WiFi Alliance, GSM Association e W3C (World Wide Web Consortium) são exemplos que guardam diferenças significativas entre si. Existem ainda as organizações multilaterais, como a UIT (União Internacional das Telecomunicações), onde cada país associado tem sua representação. Todas estas organizações fazem parte daquilo que podemos chamar de ecossistema de padronização da Internet. O domínio das ações responde ao setor privado a tal ponto de a atividade de padronização ser definida como aquela que “cria o mercado” para que diferentes agentes produtivos possam competir e cooperar, dando ensejo ao oxímoro coopetição, que é bastante utilizado pela bibliografia e pelos próprios agentes do ecossistema (Vicentin, 2016).
O domínio do setor privado na definição de padrões
O Grupo IEEE 802, responsável pela padronização de tecnologias como a Ethernet, o Wi-Fi e o Bluetooth, nasceu com três propostas de padrões concorrentes e mutuamente excludentes para comunicação de redes locais (Local Area Networks – LANs). A primeira proposta era a do sistema Token Ring, da IBM, que naquele momento era a maior empresa do setor; a segunda, o sistema Token Bus, foi desenvolvido pela General Motors, mas não encontrou muita implementação; por fim, a terceira diz respeito ao o sistema CSMA/CD (Carrier Sense Multiple Access With Collision Detection), que posteriormente foi renomeado como Ethernet e que foi proposto conjuntamente por DEC, Xerox e Intel. Representantes destas e de outras empresas interessadas na implementação ou na produção de aplicações frequentavam as reuniões do grupo IEEE802, mas os trabalhos se estendiam e não se chegava a nenhum tipo de consenso, o embate entre as propostas emperrava o avanço nos trabalhos do padrão até que o conflito foi solucionado por uma repactuação em que o grupo IEEE802 foi dividido em três diferentes subgrupos que conduziram seus trabalhos de maneira relativamente independente, com a condição de que nenhum dos três grupos votaria contra os demais no processo de aprovação dos padrões (balloting process) que seria comum a todos. O processo de aprovação de um padrão no grupo IEEE 802 exige que nenhum padrão seja aprovado antes que todas as questões colocadas por votos contrários à aprovação (que precisam sempre de justificativa) sejam devidamente solucionadas. Na prática, o grupo que havia sido criado para definir um padrão resultou num acordo para criação de três padrões concorrentes e a definição da hegemonia seria dada “no mercado” (Burg, 2001).
Hoje, os membros do grupo 802 costumam atribuir a vitória do padrão Ethernet (802.3) à sua “natureza aberta”, especialmente em relação ao seu principal concorrente, o Token Ring (Burg e Kenny, 2003). Como já dissemos, a abertura é um dos valores míticos da Internet e também serviu de explicação para a hegemonia do protocolo IP. Em ambos os casos, a abertura se caracteriza principalmente pela contraposição aos sistemas fechados, ou seja, sob propriedade intelectual de uma única empresa que, assim, tem domínio absoluto sobre o padrão. A abertura refere-se à possibilidade de acomodar interesses de um grupo relativamente ampliado de empresas que colaboram entre si para a criação de um mercado comum, no qual possam cooperar e competir simultaneamente.
Em termos nativos ao IEEE e ao ecossistema de padronização do qual faz parte, trata-se de colocar em prática a coopetição com objetivo de estabelecer um equilíbrio ótimo na relação entre cooperação e competição de modo a permitir a contínua criação de mercados. Numa situação ideal, então, a tensão é resolvida na busca pelo estabelecimento de consensos brutos ou aproximados (rough consensus). Quando a competição é por demais acirrada e o nível de conflito é alto, o padrão não obtém sucesso em sua função de “criar um mercado” e isso pode minar as expectativas de muitas empresas e investidores. Assim, a coopetição, como prática, requer tomar decisões e fazer acordos, ceder onde é possível fazê-lo e manter-se firme na defesa de seus principais interesses. Trata-se de maximizar ganhos na tensão entre cooperação e competição dentro da estratégia industrial e de negócios de cada um dos setores ou corporações que participam do processo. Essa é a camada mais evidente do processo de padronização, mais até do que as discussões técnicas. Definir padrões técnicos de interoperabilidade é uma maneira de criar mercados e/ou barreiras que podem proteger tal ou qual corporação, setor industrial ou modelo de negócio, isso se aplica tanto aos padrões de adesão voluntária quanto aqueles que são definidos por entidades governamentais e reguladoras. Em ambos os casos, o papel e o interesse da iniciativa privada costumam ser preponderantes porque ela detém os recursos necessários para agir de maneira coordenada e interferir de maneira decisiva na definição dos padrões.
Tal preponderância do setor privado claramente levanta preocupações importantes, pois condiciona aos seus interesses questões de interesse público. Qual a legitimidade de empresas e conglomerados na tomada de decisões de interesse público? O que as legitima a governar a Internet por meio da definição de padrões? Essa é uma questão que ainda não foi enfrentada apropriadamente pelo campo da governança da Internet e isso impede, em grande medida, que a governança seja realizada de maneira realmente democrática, aberta e transparente.
Diego Vicentin é cientista social, doutor em sociologia e professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp.
Referências
ABBATE, Janet. 1999. Inventing the internet. Cambridge, Mass. MIT Press, 1999.
BURG, Urs von. The Triumph of Ethernet: technological communities and the battle for the LAN Standard. Stanford: Stanford University Press, 2001.
BURG, Urs von; KENNY, Martin. Sponsors, Communities, and Standards: Ethernet vs. Token Ring in the Local Area Networking Business. Industry and Innovation. Vol. 10 (4), 2003.
BUSCH, Lawrence. Standards: recipes for reality. Cambridge: MIT Press, 2013.
CERF, Vinton G.; KAHN, Robert E. A Protocol for Packet Network Intercommunication. IEEE Transactions on Communications COM-22 (May), 1974, pp. 637–648.
DeNARDIS, Laura. The Global War for Internet Governance. New Haven/ London: Yale University Press, 2014.
LAMPLAND, Martha; STAR, Susan L. Standards and their stories. Cornell University Press, London & Ithaca, 2009.
TURNER, Fred. From Counterculture to Cyberculture. Chicago: The University of Chicago Press, 2006.
VICENTIN, Diego. A reticulação da banda larga móvel: definindo padrões, informando a rede. Tese (Doutorado em Sociologia)—Campinas: Unicamp. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2016.