Por Caroline Marques Maia
Há cerca de uma década, o veterinário Stelio Luna da Unesp de Botucatu (SP) tenta responder essa pergunta. Em 2013, ele e seu grupo publicaram uma escala para avaliar a dor em gatos operados na revista BMC Veterinary Research. Nos anos seguintes, publicaram também escalas para avaliar dor em bovinos e cavalos operados. O grupo vem trabalhando para desenvolver e validar escalas de dor para as mais diversas espécies de animais domésticos e de produção, incluindo porcos, ovelhas e coelhos.
A ideia é que se possa mensurar objetivamente a dor nos animais e usar analgésicos quando necessário para reduzi-la ou mesmo eliminá-la. Os estudos de Luna geralmente resultam em escalas para avaliar a dor nos animais em recuperação após cirurgias, mas escalas para mensurar a dor em outras situações, como dor crônica, por exemplo, já estão em desenvolvimento. Luna falou sobre tudo isso em entrevista exclusiva para a ComCiência.
Estudos sobre dor nos animais partem da premissa que eles sejam capazes de senti-la conscientemente. Quando os estudos científicos começaram a demonstrar que os animais sentem dor?
Filosoficamente, em contraponto à posição de Descartes que considerava que animais não tinham alma e, portanto, não sofriam, Voltaire questiona veemente este argumento em sua obra Dicionário filosófico. Do ponto de vista científico, o neurologista Marshall Hall, em Princípios de investigação em fisiologia (1835), sugere que os experimentos deveriam minimizar ao máximo a dor ou sofrimento dos animais. Esta visão foi exceção diante dos cientistas da época, como por exemplo Claude Bernard.
Provavelmente o marco mais importante que lançou a semente científica da sensciência (nível mais basal de consciência) animal foi a obra A expressão da emoção no homem e nos animais de Charles Darwin, que demonstra que os animais apresentam as mesmas expressões que os homens. O maior paradoxo é que embora a ciência utilize os animais como modelo biológico na medicina desde a década de 1950, há negligência no que concerne avaliação e tratamento da dor em animais, em especial os de laboratório. Para ter uma ideia, em estudos invasivos realizados após o ano 2000, tais como transplante renal, ainda não usavam analgésicos em animais de laboratório, pois os autores consideravam que não era necessário, já que os animais não demonstravam sinais de dor. Apenas a partir da década de 1990 iniciaram-se estudos que propunham métodos para avaliar a dor em animais, entretanto a publicação de escalas validadas estatisticamente só correu a partir de 2001 em cães.
Quais são os marcos históricos mais relevantes sobre o estudo da dor nos animais?
A espécie pioneira desses estudos foi a equina, possivelmente por ser uma espécie de maior valor econômico individual, sendo que quando indivíduos com dor não recebem tratamento, podem morrer por choque neurogênico. Desde a década de 1940 já há escores para diagnosticar o grau de manqueira desses animais. No que se refere às primeiras escalas comportamentais que apresentam validade e confiabilidade, sendo respaldadas estatisticamente, foram a de cães em 2001 e de equinos em 2008 (por outros grupos de pesquisa); e em gatos em 2013, bovinos em 2014 e cavalos em 2015, pelo nosso grupo de pesquisa. Este ano serão publicadas as primeiras escalas validadas em suínos, asininos, ovinos e coelhos, também pelo nosso grupo de pesquisa, estudos financiados pela Fapesp.
A ausência de sofrimento já foi usada até para definir o bem-estar animal, embora essa visão tenha sido criticada. Como você vê a importância de detectar e avaliar corretamente a dor nos animais nesse contexto?
A avaliação e o tratamento da dor vão além da obrigação moral em tratar os animais de forma digna e com respeito, e garantir seu bem-estar. Por exemplo, animais com dor apresentam uma considerável piora na recuperação de uma cirurgia, sendo que a resposta imunológica fica deficiente, o tempo de hospitalização acaba sendo maior e a cicatrização é retardada. Do ponto de vista dos animais de produção há uma piora dos índices de produtividade, como redução da produção leiteira em ruminantes e do ganho de peso em suínos, como demonstrado por nosso grupo de pesquisa.
O primeiro estudo de escala de dor que o seu grupo publicou foi sobre gatos. Há uma razão específica para terem iniciado com esses animais?
Sim. Embora cães e gatos sejam populares como animais domésticos, a avaliação e o tratamento da dor em gatos ainda eram negligenciados em comparação aos cães. Isso se fundamentava principalmente pela falta de familiaridade dos profissionais em relação à espécie felina; desta forma procuramos fazer um trabalho de educação continuada para mudar este cenário, dentre os quais desenvolver uma escala de dor validada e confiável. Adicionalmente, o gato foi um bom modelo para iniciarmos, pois pudemos usar animais que chegavam ao próprio Hospital Veterinário, com anuência dos tutores, sem a necessidade de utilizar animais de experimentação.
Vocês também já desenvolveram e publicaram escalas para avaliar dor em bovinos e em cavalos. Quais foram os desafios ou diferenciais comparando com o desenvolvimento da escala para os gatos?
Além da questão logística (especialmente bovinos, em campo), essas espécies não expressam a dor de forma tão clara quanto cães e gatos, que apresentam uma proximidade maior com os seres humanos. É interessante ressaltar que os cavalos são os mais difíceis para se avaliar a dor e, até o momento, embora haja o maior número de escalas na literatura para esta espécie em relação às outras, nenhuma foi comprovadamente eficiente para avaliar a dor pós-operatória, exceto em situações de cólica abdominal. Um dos motivos principais é que a presença do observador mascara os sinais de dor que os cavalos expressam, sendo provavelmente mais apropriado uma avaliação a distância, com câmeras, por exemplo.
As escalas de dor desenvolvidas pelo seu grupo são focadas em situações pós-operatórias dos animais. Na prática, elas já têm sido usadas para detectar e amenizar a dor dos animais que passaram por cirurgias?
Essas escalas são utilizadas tanto em situações clínicas para identificar e quantificar a dor em animais, na rotina de um hospital veterinário, fazenda de produção ou laboratórios de pesquisa, como em situações experimentais, por exemplo em testes para definir a eficácia e a duração de analgésicos.
E podem ser empregadas para avaliar dor em outras situações?
Embora essas escalas possam ser utilizadas em outras situações de dor aguda, do ponto de vista de formalização científica elas são indicadas apenas para avaliar a dor aguda pós-operatória.
Entretanto, a avaliação da dor crônica deve ser feita pelo tutor, pois é ele quem convive cotidianamente com o animal e detecta alterações de comportamento mais sutis em relação à dor aguda. Para tal, nosso grupo também validou em português questionários específicos que avaliam dor crônica, propostos por outros autores do exterior. No momento estamos trabalhando com uma escala de dor crônica para avaliar a dor em equinos, tema nunca abordado pela literatura científica, em parceria com os professores Adriano Carregaro (USP), e Kate White, da Universidade de Nothingham, da Inglaterra.
Qualquer pessoa com o treinamento adequado pode avaliar corretamente a dor nos animais por meio da escala ou apenas profissionais da área devem usá-la?
Desde que treinada, qualquer pessoa pode utilizar essas escalas. Entretanto, vale ressaltar que nossos estudos demonstram que o treinamento adequado é muito importante, mesmo para pessoas experientes em lidar com a espécie, pois melhora a confiabilidade na avaliação. Para tal, a plataforma Animal Pain apresenta exemplos de vídeos referentes a cada comportamento que compõe a escala para que o observador se familiarize.