Por Camila Pissolito
Os debates relacionados à equidade e mérito sobre o que seria o vestibular “ideal”
Os métodos de admissão no ensino superior público possuem divergências substanciais em universidades ao redor do mundo. De fato, não há um consenso sobre qual seria a melhor e mais justa forma de selecionar os estudantes para ingressarem no ensino superior. Há uma pluralidade de modelos até mesmo dentro de um único país, como no caso dos Estados Unidos – que pode tanto utilizar testes padronizados como o SAT ou fazer provas específicas e considerar o histórico do ensino médio e entrevistas com o candidato.
No Brasil, as universidades públicas em sua maioria utilizam o vestibular tradicional, feito e aplicado pela própria instituição e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), feito e aplicado pelo Ministério da Educação. Alguns cursos, como o de arquitetura, música e dança ainda exigem provas práticas de aptidão que irão compor a nota do candidato.
Segundo um estudo americano intitulado “University Admissions Worldwide” produzido pela especialista em gestão do ensino superior Robin Matross Helmss e publicado pelo Banco Mundial, existem basicamente cinco tipos de sistemas de admissão aplicados em diferentes partes do mundo, sendo: exames de conclusão de curso no ensino secundário, exames de acesso, testes padronizados de aptidão, exames múltiplos e sistemas de admissão sem exames.
A efetividade deles, no entanto, dependerá do contexto de cada país, como estrutura de governo, mercado de trabalho, economia, cultura e prioridades estratégicas nacionais, de acordo com a própria a pesquisa. Mas, ao considerarmos o conceito de universidade pública como “instituição social”, com suas autonomias fundadas no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, como diz a filósofa Marilena Chauí, podemos esperar que os alunos devam então refletir a sociedade, e que essa autonomia – até então garantida – na forma de ingresso, possa ser uma das soluções para a desigualdade social tão presente em nossa realidade.
Uma alternativa ao modelo de vestibular tradicional que, segundo a pesquisadora do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, Ana Maria Carneiro, seria mais justa, é o sistema de “vestibular seriado”. “Com o Enem já houve uma diversificação, mas antes disso algumas instituições usavam o vestibular seriado, em que o aluno fazia provas ao longo do ensino médio, uma em cada ano, sendo a nota final uma composição dessas três provas”. Para ela, isso ajudaria a lidar com algumas das fragilidades do vestibular tradicional, que concentra o esforço do aluno em um dia só, fazendo com que fatores como o nervosismo e o cansaço possam prejudicá-lo.
Para o pesquisador norte-americano Joseph Soares, professor de sociologia da Wake Forest University, outro ponto alto desse sistema é que, estatisticamente falando, considerar a performance do aluno ao longo do ensino médio é o melhor jeito de prever as notas que ele terá no ensino superior. “O aluno ter as maiores notas no SAT (modelo norte-americano de teste padronizado) em nada reflete como será o seu desempenho universitário, entretanto se ele tem notas boas durante o ensino secundário, é provável que ele seja um universitário bem-sucedido”.
De acordo com Ana Maria Carneiro, o vestibular tradicional, feito e aplicado pela instituição de ensino, ainda tem um ponto forte: a prerrogativa de definir quais são os conhecimentos mínimos necessários para que o estudante tenha no momento em que ele ingressa na faculdade e estabelecer os pontos de corte. “Infelizmente isso acaba sendo um filtro socioeconômico, no qual os candidatos que tiveram melhor preparação pontuam mais nesse tipo de prova. Além disso, estudantes que têm mais habilidades cognitivas acabam sendo mais valorizados que estudantes que possuem outras habilidades”, conclui.
Para Maria Ligia de Oliveira Barbosa, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, isso não era discutido quando a universidade era um espaço reservado às elites. “Com a expansão do ensino médio, você consegue ter um público mais amplo que pode ser selecionado para o ensino superior, então o vestibular tradicional começa a se transformar num tipo de barreira institucional, que dificulta que os grupos como os mais pobres, os mais negros, e mesmo, em alguns casos, as mulheres tenham acesso à universidade de forma mais completa e justa”, admite.
O Enem, criado há vinte anos para avaliar o ensino médio no Brasil, passou a ser usado como instrumento de acesso às instituições de ensino superior, seja como parte ou substituto do vestibular das instituições públicas e privadas, ou como critério de classificação de bolsas de estudo em faculdades particulares, com o Prouni.
Se por um lado permite que os alunos consigam disputar vagas em outros estados sem a necessidade de viajar até a instituição, o que resultaria em um caráter mais “democrático” do exame, para Carneiro, a prova ainda acaba tendo algumas das desvantagens do vestibular tradicional. “O exame também é muito baseado no conhecimento das disciplinas e, por mais que tenha essa tentativa “inovadora” de conversar, de as provas não serem só de uma área específica do conhecimento, outro vestibulares também fazem isso. Além disso, é uma prova bastante cansativa, que tem uma carga bastante pesada”, ressalta.
“Modelos como o Enem podem ser mais ou menos democráticos se eles forem mais ou menos adequados para o tipo de ensino que é dado nos anos prévios ao longo do sistema de ensino”, relata Maria Ligia de Oliveira Barbosa, que pesquisa a avaliação de políticas públicas na área da educação. Ela ainda diz que, quando comparamos com as provas orais, por exemplo, em que alunos de classe média, por terem melhor treinamento do uso da palavra, têm melhor desempenho que os de classe baixa, que não tem oportunidades de desenvolver essa habilidade, o Enem seria uma forma mais democrática de avaliação. Porém, as desigualdades que ainda vêm desde o ensino básico seriam um impeditivo para a justiça. “Eu tenderia a acreditar que quanto melhor se construir o Enem, mais possibilidades se tem de adequar uma seleção legítima de quem definitivamente aprendeu. Mas, claramente, o caráter não tão democrático do Enem está associado ao caráter não muito democrático do sistema de ensino básico”, completa.
As diferenças do currículo do ensino médio e da estrutura das escolas, que prejudicam as minorias e os alunos que estão em uma condição social menos favorecida, refletindo em uma dificuldade no acesso ao ensino superior, não são uma exclusividade do Brasil, como aponta Soares, que também é autor de livros que denunciam irregularidades no processo de admissão das faculdades americanas, como o Admissions scandals: the case for test-optional college admissions (Teachers College Press, 2019). Segundo o pesquisador, o ensino superior americano tem suas raízes em um sistema educacional muito peculiar. “Em média 90% dos americanos estudam em escolas públicas da pré-escola ao ensino médio, e essas escolas são localmente controladas e subsidiadas. Isso significa que os valores das propriedades na vizinhança determinam quanto dinheiro será investido na escola. Isso é uma fórmula para a desigualdade, pois garante que as áreas ricas receberão mais dinheiro que as áreas pobres”.
Para ele, as escolas hoje são tão segregadoras em termos raciais quanto em 1970. “Não houve muito progresso em reduzir o nível de segregação racial. E latinos, negros e hispânicos normalmente têm menos acesso a áreas mais ricas. Os Estados Unidos são a terra da desigualdade, da pré-escola ao ensino médio”, complementa. Uma solução, de acordo com Soares, seria a padronização das verbas destinadas às escolas, como no sistema inglês ou alemão. “Nesses países, você sabe que todos os estudantes de ensino médio estarão expostos ao mesmo conteúdo e currículo”.
Além de um ensino básico desigual, o sistema de admissão para as universidades americanas privadas e públicas também é criticado pelo autor. “O SAT é injusto e um impedimento às oportunidades iguais. Além disso, estatisticamente falando, é fraco e não acrescenta substancialmente em nada no conteúdo aprendido no ensino médio”.
Segundo Soares, nesses testes, mulheres e minorias pontuam menos que homens de classe média alta. “No final, tem mais a ver com o quanto a família do aluno tem no banco do que com a performance que o estudante terá na universidade”, denuncia. Felizmente, algumas universidades têm tornado esse teste opcional. “São 1030 instituições, o que representa 43% das instituições que oferecem o ensino superior regular (de quatro anos), dentre elas algumas de bastante prestígio como a University of Chicago, George Washington, NYU e Wake Forest. Então parece que estamos ganhando esta batalha, mas ainda há muita luta”.
O modelo alemão poderia ser uma alternativa para combater a desigualdade das universidades americanas e brasileiras, de acordo com o professor. No país, existem três modelos de ensino médio. “Se você vai para o gymnasium, quando você finaliza, recebe um diploma chamado Abitur, que significa que você completou o ensino médio. Todos com um Abitur são admitidos em alguma universidade”, exemplifica. “Claro que há mais competição para cursos de direito ou medicina, mas para outros, por exemplo, história ou literatura, você apenas precisa ir para a universidade e se matricular, então não há vestibular para essas universidades, porque o certificado já significa que está apto a entrar”.
Cotas raciais e sociais também são apontadas pelos especialistas como uma possível solução para a desigualdade presente no acesso ao ensino superior. Nesse debate, a meritocracia também pode ser considerada, mas desde que leve em consideração as diferenças, ou seja, as condições do percurso do estudante para chegar à um ponto específico, é o que aponta Barbosa. “O mérito só faz sentido como critério de seleção se levarmos em consideração a distância percorrida pelo aluno para conseguir aquele desempenho. Um filho de classe média, que teve os melhores colégios, os melhores professores, e tira uma nota excelente em medicina, como diria minha mãe: não fez mais que a obrigação. Ao passo que um menino que estudou na periferia da cidade sem muito incentivo da família, que preferia que ele estivesse trabalhando, ou necessitava que ele estivesse trabalhando, se ele consegue passar, mesmo que seja em um curso de baixa concorrência, por exemplo, ele tem mais mérito que esse garoto que conseguiu passar em medicina”.
Esse conceito está presente nos estudos da socióloga francesa Gaele Goastellec, uma definição que vai mudando historicamente e que sai do mérito herdado. “Então, ‘ah, o meu pai foi para o ensino superior, então eu também posso ir’”, exemplifica Maria Ligia. Passando pela igualdade formal, “a ideia de que todos são iguais diante do vestibular, portanto quem tirar a maior nota, tem mais mérito”, adiciona. “Isso não considera a terceira definição, que quanto mais difícil foi chegar ali, mais mérito tem aquele jovem que passou no vestibular”, conclui. Dessa maneira, as cotas raciais ou sociais são formas de medição entre essa distância que os jovens pobres têm que percorrer para chegar ao ensino superior.
François Dubet define uma escola justa como aquela que oferece oportunidades aos estudantes de mais diversos níveis sociais, independente de raça ou de sexo, que ofereça oportunidades similares de percorrerem sua trajetória escolar. Desse modo, ainda de acordo com Barbosa, um vestibular justo é aquele que permite que todos sejam capazes de disputar uma vaga nas melhores universidades do país, com chances parecidas de desempenho. “Ou seja, implica também que, para ter um processo de seleção mais justo e mais equilibrado, você consiga produzir um sistema de educação básica mais justo e mais equilibrado”. Apesar de essa ainda não ser a realidade, Maria Ligia diz que o país tem avançado. “Estamos melhorando, o nosso vestibular tem feitos grandes progressos no sentido de melhorar a qualidade, se aperfeiçoando e buscando a justiça nos processos seletivos”.
Para ela, tanto a burocracia dos exames oferecidos pelo MEC, quanto as diversas instituições particulares que realizam diferentes processos seletivos, tentam aprimorar cada vez mais esses processos. “Ou, pelo menos, vão tentando tornar o acesso ao ensino superior mais justo e oferecendo maior igualdade de oportunidade a todos”, conclui.
Camila Pissolito é jornalista. Especialista em jornalismo científico e mestranda em divulgação científica e cultural (Labjor). Atualmente desenvolve um projeto de divulgação científica na Rede de Antropologia da Ciência e da Tecnologia (ReAct) financiado pela bolsa mídia ciência da Fapesp.