Por Berenice Bento
Nada em Netanyahu é original. A limpeza étnica da Palestina teve sua primeira grande etapa em 1948, quando 800 mil palestinos foram expulsos de suas terras e 511 aldeias foram destruídas. Entre 1947-1948 Israel cometeu 31 massacres
Nas primeiras horas do dia atualizo-me do que está acontecendo na Palestina, principalmente em Gaza. Assim tenho feito há quase um ano. Minha atenção, no entanto, nos últimos dias voltou-se para o Líbano. Em um único dia, Israel matou 500 libaneses e destruiu centenas de casas. Já são mais de 2 mil mortos e quase dois milhões de libaneses desabrigados que, agora, perambulam pelas ruas de Beirute. O apoio à luta do povo palestino contra o genocídio perpetrado por Israel é o crime da população do Líbano. Enquanto Israel promove um processo de palestinização do Oriente Médio, os massacres em Gaza continuam. Diante de minha tela, vejo passar os corpos dilacerados de crianças assassinadas em Gaza em 2 de outubro de 2024. Eram crianças órfãs que viviam em um espaço precário. Todos aqueles que declaram apoio à luta do povo palestino pelo direito de autodeterminação e pelo direito de terem seu Estado tornam-se imediatamente inimigos do Estado de Israel. Assim foi com o presidente da ONU, que ao pedir um cessar-fogo em Gaza tornou-se “persona non grata” por Israel.
O que pode parecer atos desvairados de um primeiro-ministro aliado a um ideário político nazifascista, está, ao contrário, em linha de continuidade com os princípios ideológicos do sionismo. Esse deve ser o ponto de partida de qualquer análise: nada em Netanyahu é original. A limpeza étnica da Palestina teve sua primeira grande etapa em 1948, quando 800 mil palestinos foram expulsos de suas terras e 511 aldeias foram destruídas. Entre 1947-1948 Israel cometeu 31 massacres. Um desses massacres aconteceu em Tantura. Segundo o historiador judeu antissionista Ilan Pappé[1]:
“Quando a carnificina acabou no vilarejo, com as execuções encerradas, dois palestinos receberam a ordem de cavar uma cova coletiva sob a supervisão de Mordechai Sokoler, de Zikhron Yaacov, dono das escavadeiras trazidas para realizar o trabalho macabro [em Tantura]. Em 1999, ele disse que se lembrava de haver enterrado 230 corpos; tinha claro o número exato: ‘eu os depus na cova, um a um’ (Pappé, 2016: 156).
Em vários momentos, Ilan Pappé abre uma brecha na narrativa para expor sua subjetividade. Entre outras passagens do livro, ele nos diz:
“Como tantos outros pontos de belas paisagens dessa região [refere-se ao vilarejo de Qira, destruído em fevereiro de 1948], voltados à recreação e ao turismo, também esconde as ruínas de um vilarejo de 1948. Para minha própria vergonha, levei anos para descobri-lo” (Pappé, 2016: 100).
Os métodos utilizados não eram essencialmente diferentes de uma operação para a outra: pilhagem e roubo dos bens materiais, estupros, assassinatos, demolições, agressões, incêndios, campos de trabalho forçado, envenenamento de fontes de água. No entanto, foi no vilarejo Dawaymeh que as atrocidades superaram todas as pretéritas. Em 28 de outubro de 1948, 20 blindados israelenses entraram no vilarejo. Em pouco tempo, o massacre foi consumado. Estima-se que 455 pessoas tenham sido assassinadas, sendo 170 mulheres e crianças. Os relatos, produzidos pelos próprios soldados, são estarrecedores:
“Bebês com crânios rachados, mulheres estupradas ou queimadas vivas nas suas casas e homens esfaqueados até a morte. Esses relatórios não foram elaborações a posteriori, mas depoimentos de testemunhos oculares enviados ao Alto Comando em questão de poucos dias após o fato” (Pappé, 2016: 232).
Em novembro de 1948, a ONU aprovou a Resolução 194, que garante aos/às refugiados/as – que atualmente são cerca de 5,9 milhões – o direito de retorno às suas casas na Palestina. Como tantas outras Resoluções, o Estado de Israel nega-se a cumpri-la. Em 1950, a situação dos/as palestinos/as já era tão trágica que a ONU criou a UNRWA (United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees). Os/as filhos/as da diáspora palestina estão espalhados pelo mundo.
A engenharia da limpeza étnica da Palestina foi construída ao longo de alguns anos e de muitos debates internos em congressos e reuniões sionistas. Em um léxico próprio, sionistas vão nomear de “transferência forçada” o plano de expulsão da população nativa.
Em uma reunião do Executivo da Agência Judaica de 12 de julho de 1938, Ben-Gurion afirmou:
“Com a transferência compulsória, teríamos áreas extensas... Eu apoio a transferência compulsória. Não vejo nada de imoral” (Masalha, 2021: 113)[2].
Nessa mesma reunião, o líder do Mapai, David Remez, afirma:
“Devemos dizer tais coisas, a despeito do risco envolvido, e devemos ser fortes para confiscar terras no Estado judeu para o desenvolvimento e a implantação dos planos de colonização – os quais são base para toda a estrutura”. (Masalha, 2021, 110)
Será o sionista Berl Katznelson que definirá com precisão o que se convencionou nomear, entre os sionistas, de “transferência obrigatória”. Para ele,
“a transferência compulsória não significa transferência individual. Significa que, uma vez que resolvemos transferi-los, deve haver um corpo político capaz de persuadir este ou aquele árabe que pretendia não migrar (...) A demanda será a transferência de uma quantidade muito maior de árabes.” (Masalha, 2021, 110)
No estudo sistemático que Nur Masalha realizou dos documentos oficiais dos sionistas no momento pré-1948, nota-se uma ausência: não há uma única menção aos direitos dos nativos, palestinos com vínculos ancestrais com a terra, reeditando a práxis colonial em sua inteireza. As atrocidades relatadas por Ilan Pappé não são obras de soldados indisciplinados, antes são o resultado de um longo e detalhado planejamento que passamos a conhecer a partir da pesquisa de Nur Masalha. Nenhum massacre aconteceu sem a prévia autorização dos líderes sionistas.
Façamos um imenso salto histórico. Vamos para Gaza em 2023. A narrativa sionista pela qual o objetivo das ações militares em Gaza era derrotar o Hamas tornou-se insustentável. Assim como em 1948, o genocídio em curso tem como meta a expulsão total dos mais de dois milhões de palestinos que ali vivem. A destruição de cerca de 80% da infraestrutura, a morte de 41 mil pessoas, sendo que desse total 17 mil são crianças, opera na mesma lógica dos pioneiros sionistas. Assim como em 1948, a estratégia de destruir a infraestrutura tem como finalidade impedir que os moradores retornem para suas casas.
Para Ben-Gvir, Ministro da Segurança Nacional de Israel,
“É hora de retornar à terra de Israel. Se não quisermos outro 7 de outubro, precisamos voltar para casa e controlar a terra.”
Daniella Weiss, líder dos colonos, sentencia:
“Os árabes de Gaza não vão ficar na Faixa de Gaza”, diz ela. “Quem vai ficar? Judeus.”[3]
Aqui, recupera-se na inteireza o que diziam os pais sionistas de 1948, ao negar a existência do povo palestino e se autoproclar donos das terras de Gaza.
Na guerra demográfica declarada unilateralmente por Israel contra a população palestina, as mulheres (as que dão a vida) e as crianças tornam-se os alvos preferenciais. Não há registro na história dos conflitos bélicos de tamanha carnificina, mesmo com os dados subestimados, uma vez que não se sabe quantos corpos estão sob os escombros.
Talvez a diferença entre 1948 e agora esteja na forma como o genocídio está sendo compartilhado globalmente. As imagens nos chegam às dezenas, todos os dias. Corpos mutilados, a fome como arma de guerra, amontoados de corpos que não têm lugar para serem sepultados, estupros, destruição de escolas, hospitais, universidades. Nos tornamos testemunhas e o ato de testemunhar implica em uma obrigação ética da não-indiferença. Olhamos nos olhos de palestinos de Gaza que nos avisam: “eu vou morrer”. Logo depois, o corpo está sem vida e, muitas vezes, totalmente despedaçado. O genocídio está dentro de nossas casas e também estamos morrendo. Ainda não sei que tipo de humanidade está sendo gestado no útero do horror do genocídio promovido pelos sionistas. Testemunhar significa que todos somos responsáveis pelo destino do povo palestino. Ninguém pode acionar o argumento da inocência, da falta de conhecimento. Ainda que você não queira saber, ainda que você feche seus olhos para não ver os corpos queimados, despedaçados, ainda assim você é responsável, porque não existe genocídio clandestino, principalmente em tempos de redes sociais.
No dia 30 de setembro, Rasha Al-Areer, uma menina de 10 anos, foi encontrada ao lado de seu irmão Ahmad, de 11. Ambos não sobreviveram a um ataque aéreo israelense que atingiu sua casa. Ela não se filmou avisando que ia morrer, como tantas outras crianças têm feito. Mas ela sabia que a morte se aproximava. Dias antes do ataque, Rasha Al-Areer escreveu seu testamento. Em uma pequena carta pediu à sua família que distribuísse os seus pertences (alguns brinquedos e o pouco dinheiro que estava economizando) entre os seus primos.
Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da UnB e pesquisadora do CNPq
[1] Pappé, Ilan (2016), A limpeza étnica da Palestina. São Paulo: Sundermann. Tradução: Luiz Gustavo Soares. Edição original, 2006.
[2] Masalha, Nur (2021), Expulsão dos palestinos. O conceito de ‘transferência’ no pensamento sionista. São Paulo: Sundermann. Tradução: Leo Misleh e Teresa Bosco Ferreira. Edição original, 1992.
[3] https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72dn1471p2o, Os colonos judeus que planejam construir assentamentos na orla de Gaza. Consultado em 04.10.24