O que a ciência diz sobre fenômenos comuns do cotidiano como sonhos, alucinações e erros de percepção
Por Paula Penedo P. de Carvalho
O funcionamento do cérebro humano e dos mecanismos causadores dos processos mentais é um tema que há séculos desperta o interesse das mais diversas especialidades, como filosofia, biologia, psicologia e neurociência. E embora muitas descobertas tenham sido feitas nas últimas décadas, alguns fenômenos comuns no cotidiano permanecem rodeados por falta de respostas.
Os sonhos, por exemplo, são um dos estados mentais mais comuns e mais antigos de que se tem registro. Placas de argila de mais de cinco mil anos encontradas na região da antiga Mesopotâmia demonstraram que aquele povo já se preocupava com a decifração de seus significados. Mas nem mesmo a ciência, com todos os seus avanços, conseguiu chegar a um veredito sobre os motivos da sua existência.
Alguns pesquisadores, como Hobson e McCarley, defendem que se trata de fenômenos aleatórios, que expressam de forma transparente e sem nenhum significado particular a atividade cerebral, enquanto outros, como Mark Solms, seguem uma linha mais freudiana, que relaciona os sonhos a expressões de desejos e emoções inconscientes. Já o neurocientista Sérgio Arthuro Rolim, pesquisador do Instituto do Cérebro da UFRN, acredita que os sonhos devam ter uma função evolutiva, embora não se saiba exatamente qual.
Rolim estudou em seu doutorado os sonhos lúcidos, fenômeno em que as pessoas percebem quando estão sonhando e, em algumas ocasiões, conseguem inclusive controlar os acontecimentos dentro dele. Em um questionário respondido por 3500 pessoas, ele constatou que esta é uma experiência comum, mas pouco recorrente na população brasileira. Desse grupo, 65% afirmou já ter tido sonhos lúcidos, mas a maioria reportou um número máximo de dez episódios ao longo da vida, embora algumas raras pessoas digam passar pela experiência quase todas as noites.
O pesquisador ainda não sabe por que esse tipo de fenômeno acontece, mas acredita haver um padrão geral do sono que favoreça a ocorrência dos episódios. Tanto a pesquisa dele quanto a de outros autores indicaram que pessoas que meditam têm mais chances de reportarem sonhos lúcidos, bem como pessoas que vão dormir sem ter hora certa para acordar no dia seguinte, como aos finais de semana.
Isso pode ser explicado pelo fato de os sonhos lúcidos estarem relacionados ao REM, último estágio do ciclo do sono, quando o cérebro já passou por seu período de recuperação e está se preparando para acordar. “Durante a semana você tende a dormir tarde e acordar cedo, porque tem que ir para a escola, trabalho, faculdade. Como no final de semana você geralmente acorda mais tarde, e o REM geralmente acontece nas horas finais do sono, você tem mais sono REM e mais probabilidade de ter sonho lúcido” diz Rolim.
A pesquisa ainda incluiu a realização de polissonografias para investigar a atividade cerebral de voluntários durante o sono, por meio do uso de uma técnica desenvolvida por Stephen LaBerge na década de 1980 e que consiste em pedir para a pessoa movimentar os olhos para a direita e para a esquerda caso tenha um sonho lúcido. Como resultado, foi possível observar dois padrões de ativação cerebral nos voluntários, sendo que alguns passaram por apenas um dos padrões e outros passaram por ambos.
O primeiro foi um aumento na frequência gama na região frontal do cérebro, como se ele ficasse atento durante o sono REM, favorecendo a percepção de que está sonhando. E o segundo resultado foi um aumento da potência da frequência alfa na região occipital, responsável por processar os estímulos visuais atrás do cérebro. “Essa frequência indica que a pessoa está acordada, então é como se o sonho lúcido fosse uma transição do REM para o estágio acordado, como se o cérebro fosse acordando aos poucos”, explica o pesquisador.
Alucinações e percepção
O estudo dos sonhos lúcidos pode ter uma aplicação clínica no tratamento de pessoas com pesadelos recorrentes, especialmente os associados a estresse pós-traumático, caso seja possível induzir neles um “pesadelo lúcido”. Mas ele também permite melhor compreensão dos fenômenos mentais de uma forma geral, o que poderá ser aplicado no estudo de transtornos como esquizofrenia e outras psicoses, uma vez que os sonhos têm certa semelhança com os sintomas de alucinação e delírio.
No entanto, ao contrário do que é propagado pela perspectiva psicopatológica, as alucinações não são, necessariamente, indicadoras de transtornos mentais. Um estudo de 2011 liderado pela psicóloga Vanessa Beavan e publicado pelo Journal of Mental Health revelou que, em média, 10% da população mundial ouve ou já ouviu vozes em algum momento da vida, enquanto as psicoses estão prevalentes em cerca de 2% da humanidade.
Luis Fernando Farah de Toffoli, professor de psiquiatria da Unicamp e coordenador do Icaro, grupo de pesquisa sobre o uso terapêutico da ayahuasca e outros psicodélicos, diz que os psiquiatras estão acostumados a pensar o fenômeno alucinatório como patológico porque na maior parte das vezes eles só os veem em seus pacientes. Mas, aponta, existem pessoas que escutam vozes ou têm outras experiências fora do comum e que não estão afetadas por nenhum problema médico, embora não se saiba com clareza o denominador comum que faz com que isso aconteça.
O que se sabe é que as alucinações auditivas são muito comuns na narcolepsia, distúrbio que causa muita sonolência durante o dia e também no momento em que as pessoas estão entrando ou saindo do sono, respectivamente chamadas alucinações hipnagógicas e hipnopômpicas. “Isso geralmente acontece quando a pessoa está há muito tempo sem dormir, muito cansada, mas o cérebro ainda está muito estimulado, então ela demora para dormir e, às vezes, escuta coisas. Mas isso não é patológico”, explica.
Toffoli ainda acrescenta que as alucinações são diferentes dos efeitos causados por substâncias como o LSD e o chá de ayahuasca, que alteram a consciência de seus usuários, proporcionando experiências que irão mudar o funcionamento cerebral e subjetivo da pessoa. Embora eles sejam cientificamente conhecidos como alucinógenos, o pesquisador entende que este é um termo bastante inadequado para se referir a tais substâncias, preferindo a palavra “psicodélicos”.
Isso porque se trata de substâncias serotoninérgicas, que atuam promovendo o aumento da serotonina, o que leva a reações mais parecidas com as visões do que com alucinações. “Porque na alucinação você vê, sente, cheira uma coisa que não existe, já as visões são alterações de percepção, como tomar um ácido, olhar para uma árvore e acreditar que ela derreteu. É uma alteração de uma percepção visual, que não é exatamente uma alucinação”, explica o professor.
E alterações na percepção, mesmo sem a influência de substâncias ou transtornos mentais, ocorrem naturalmente entre os humanos, sendo inerentes ao processo de perceber. Quem afirma isso é o psicólogo José Aparecido da Silva, professor aposentado da USP e especialista em percepção e psicofísica. Como a percepção é um processo de entrada e resposta aos estímulos externos, ela pode envolver julgamentos e tomadas de decisão, o que acaba levando aos chamados vieses perceptuais. “Vivemos em um mundo onde nos ajustamos perfeitamente ao ambiente, mas cometemos erros, vieses em fazer o julgamento, que não correspondem à resposta verídica. Alguns deles não são graves, mas outros colocam a nossa vida em risco”.
Isso acontece porque o processo perceptual também pode envolver a cognição, um procedimento mais trabalhoso de análise e reflexão sobre os estímulos enviados pelo ambiente, e que permite às pessoas utilizar indícios contextuais e familiares para ajudar nesses julgamentos. A cognição permite fazer uso de informações contextuais presentes no “mundo real”, e aprendidas ao longo da vida, para corrigir a informação que chega ao aparato visual, como é o caso do tamanho, luzes, sombra, movimento e outras informações.
Assim, é muito mais fácil julgar a distância de uma pessoa ou uma cadeira, que são objetos com dimensões e tamanhos familiares para o observador, do que a distância um objeto não familiar, como uma estaca, mesmo que eles estejam na mesma posição. Quando não existem as informações familiares, a pessoa tem que fazer uso apenas da informação disponível no aparato visual, que são úteis apenas para medir distâncias curtas, de até cinco metros.
Mas existem algumas situações em que a cognição acaba atrapalhando a percepção. Crianças, por exemplo, tendem a ser menos susceptíveis a ilusões óptico-geométricas como a ilusão da lua, que parece ser muito maior e estar mais próxima quando vista no horizonte do que quando está elevada em céu aberto. “Essa ilusão acontece porque o cérebro recebe uma informação que é retiniana, mas na hora de fazer o julgamento há o processamento cognitivo, que é mais complexo. É como se a resposta fosse a vela e a chama, nunca juntos, mas também nunca separados”.
Como os processos cognitivos vão tomando mais espaço dentro do processamento sensorial e perceptual conforme a idade avança, a resposta dos adultos tende a ser mais contaminada pelos vieses perceptuais e o cérebro não consegue responder corretamente a todos os estímulos chamados distais, que estão distantes do contato com o corpo humano. “Então o fato de errar em julgamentos perceptuais não significa uma desordem cerebral. Nós estamos falando do ambiente de nosso cotidiano. Todos nós percebemos naturalmente objetos e esses objetos muitas vezes nos enganam. Mas o cérebro também tem a habilidade de corrigir grandes tendências ao erro através do uso de indícios”, afirma Silva.
A complexidade do cérebro humano
O que todos esses fenômenos dizem sobre o funcionamento do cérebro humano ainda permanece, em grande medida, um mistério para os especialistas. Mas para Sérgio Arthuro Rolim a resposta talvez tenha relação com uma pergunta feita há milhares de anos e que ainda não tem uma conclusão: o que é a consciência humana?
Segundo o pesquisador, ainda não foi possível chegar a uma resposta para essa pergunta porque ela já parte de um pressuposto errado, que é o de que só existe uma consciência. Ele acredita que o que existe são “estados de consciência”, períodos de tempo em que a atividade cerebral tem um certo padrão e em que a experiência subjetiva da pessoa também se mantém estável, podendo ser divididos em fisiológicos, como o estágio acordado e o sono, patológicos, como alucinações e delírios ou alterados, como a meditação e o efeito de psicodélicos.
“O cérebro é a coisa mais complexa que existe no universo conhecido. São mais ou menos 100 bilhões de neurônios, cada neurônio tem mais ou menos dez mil conexões com outros neurônios, então, apesar de a ciência ter avançado muito nos últimos anos, se a gente pega o que sabe e divide pelo que ainda não sabe, acaba não sabendo nada”, finaliza Rolim.