Privacidade pra quem?

Por Rogério Bordini

A consciência dos direitos e valores relacionados à privacidade surge como uma maneira de delimitar e respeitar interesses, comportamentos e existências.

Imagem: Oni-ciência, por Rogério Bordini/gerada a partir de Venice.ai, amigável à privacidade

“Mas não tenho nada a esconder” costuma ser a resposta instantânea quando o tópico da conversa se envereda sobre exposição pública. A má notícia é que, sim, todos têm algo a guardar. E não estamos falando só daquela foto estranha tirada no churrasco da firma ou de mensagens comprometedoras após o barzinho, mas de informações sensíveis jogadas aos quatro ventos sem que saibamos.

A boa notícia é que todos têm direito à uma vida mais reservada e há leis para isso. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, por exemplo, estabelece privacidade como valor essencial ao desenvolvimento da personalidade e para a proteção da dignidade humana. Também define o direito de demarcar fronteiras para limitar quem tem acesso às nossas vidas, comunicações e informações, como proteção contra interferências não autorizadas.

Embora a ideia da privacidade tenha ganhado força como lei somente em 1890 com a publicação do artigo “The right to privacy” (O direito à privacidade) pelos advogados estadunidenses Samuel Warren e Louis Brandeis, em resposta às práticas invasivas do jornalismo sensacionalista e à invenção da câmera, suas raízes remontam à Grécia Antiga. Filósofos como Sócrates e Aristóteles já distinguiam conceitos como “exterior” e o “interior”, vida pública (polis) e privada (oikos), sociedade e solitude.

Por outro lado, esse conceito, originário das palavras latinas “privatus” e “privo”, é muitas vezes confundido com outros termos – confidencialidade, sigilo, discrição, intimidade, anonimato – geralmente associados à proteção de informações pessoais. Confidencialidade e sigilo referem-se ao ato de manter informações secretas; discrição envolve agir sem chamar atenção; intimidade reflete a vida pessoal íntima; e anonimato à preservação de identidade. Na visão sociológica de Tim Dixon, privacidade vai além: componente fundamental de uma sociedade livre, democrática e que permita às pessoas recomeçarem sem serem assombradas pelos erros do passado.

Essa confusão também pode ser justificada pelas diversas interpretações do conceito que podem variar de uma sociedade para outra, dependendo de fatores como local, cultura, políticas e religião. Por exemplo, pesquisas transculturais indicam que sociedades mais individualistas (comuns em países ocidentais) valorizam a autonomia individual, enquanto que culturas coletivistas (como em países do leste asiático) enfatizam a harmonia do grupo.

A Suíça, por exemplo, é conhecida por seu histórico de proteção à privacidade individual desde o século XVIII, moldada por sua tradição de sigilo bancário e pela experiência histórica com coleta de dados e vigilância durante a Segunda Guerra Mundial. A China tem adotado uma abordagem autoritária da privacidade, com monitoramento intensivo da população. A legislação do país flexibiliza as questões de privacidade dos cidadãos, o que tem resultado em numerosos relatos de vigilância em massa.

Segundo Gabriel Gomes da Luz, pesquisador em direito privado pela PUC-MG, no Brasil a privacidade foi reconhecida como lei com o decreto da Constituição Federal em 1988, que assegura os direitos fundamentais à intimidade, ao sigilo das comunicações e proteção de dados pessoais. “Essa promulgação foi fundamental à sanção da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em 2020, que estabelece segurança jurídica, com regras e práticas padronizadas para garantir a privacidade dos brasileiros”, diz. O Marco Civil da Internet (2014), que também defende a liberdade de expressão e a neutralidade na rede, aborda sobre desinformação, inteligência artificial (IA) e transparência em plataformas sociais.

Invasão silenciosa e sorrateira

Se por um lado os filósofos gregos já demonstravam preocupação em demarcar as esferas da vida pública e privada há 400 a. C., esses limites foram postos em xeque em um evento que pode ter sido o estopim da revolução cultural do modernismo tardio: a impotência masculina denunciada. Zygmunt Bauman, sociólogo polonês e autor do conceito de modernidade liquida, sugeriu que o conceito de privacidade pode ter entrado em declínio quando uma mulher francesa, em 1980, resolveu confessar os problemas da ejaculação precoce do marido a milhares de espectadores em um programa de TV.

Esse episódio é um exemplo de como as tecnologias e os meios de comunicação em massa venceram as barreiras físicas das propriedades e escancararam as amenidades da vida particular – algo que deixaria George Orwell intrigado e de cabelos em pé. Tais artefatos comunicacionais também abriram caminho ao atual uso generalizado de dados pessoais em várias áreas da era digital.

A cultura da extrema autopromoção impulsionada pelos mecanismos recompensatórios das redes sociais facilitou o compartilhamento público e rápido de informações pessoais. Empresas dominantes no setor de tecnologia, as Big Techs, e proprietárias de muitas destas redes (Meta, Google, Apple, Amazon e Microsoft) detêm considerável parcela de nossos dados pessoais, ora concedidos voluntariamente via termos e condições extensos e tecnicistas, ora sem consentimento (por rastreadores e coleta de impressões digitais).

Luz ressalta que a coleta de dados pelas Big Techs não apenas podem violar a privacidade dos usuários ao rastrear seus comportamentos e interesses, como também envolvem a comercialização dessas informações a terceiros. “Apesar da LGPD não proibir explicitamente a venda desses dados, há controvérsias sobre o tema no ordenamento jurídico brasileiro. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) emitiu guias sobre coleta e compartilhamento de dados, mas ainda não se pronunciou oficialmente sobre a questão de comercialização. Cabe acompanhar a evolução da jurisprudência e das decisões do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade (CNPD) para termos uma visão mais clara sobre esse debate”, esclarece.

Afinal, pra quem?

Considerando que já adentramos a denominada era pós-virtual, na qual a esfera digital se mescla, confunde e entrelaça com a realidade física – fenômeno definido por Mark Weiser como ubiquidade tecnomidiática, onde tudo que está à nossa volta é transformado em mídias e dados, inclusive nossos corpos – o que fazer para preservar o fio de privacidade que nos resta? Jogar o celular fora e viver como eremita em alguma ilha não mapeada pelo Google?

Não é bem assim. Luz dá dicas de como proceder em casos de violação de dados e privacidade, tanto na vida cotidiana quanto digital. “Podemos buscar reparação e proteção de direitos por meio de várias instâncias, como a ANPD – que fiscaliza e aplica penalidades pelos descumprimentos da LGPD – órgãos públicos de defesa do consumidor (Procons), delegacias de polícia em crimes digitais e o sistema judiciário. Esses órgãos têm papel específico na fiscalização, investigação e punição de violações de privacidade”, orienta.

O pesquisador também recomenda boas práticas no dia-a-dia: familiarização à LGPD, participação de eventos educativos sobre privacidade e ajuste das configurações de aplicativos, redes sociais e IAs. A simples adoção de navegadores anti-rastreio e uso de Rede Virtual Privada (VPN) podem aumentar níveis de proteção consideravelmente, por exemplo. Para empresas e instituições, também é crucial nomear um Encarregado de Proteção de Dados, estabelecer políticas claras de privacidade e implementar medidas de segurança.

E por mais que você considere sua vida ordinária demais aos outros, pense duas vezes antes de compartilhar a esmo aquela foto do churrasco ou informações pessoais. Endereços, dados familiares, bancários, números de celular e documentos são um prato cheio para fraudes, violência virtual e ataques cibernéticos. Optar por seguir na vida sem considerar tais questões é, claro, um direito de todos. Mas também o é a privacidade e a compreensão dos mecanismos de controle exercidos por aqueles que procuram nos controlar.

Rogério Bordini é doutor em artes visuais (Unicamp) e em interação humano-máquina (Helmut Schmidt University). Também é mestre em educação e graduado em educação musical (UFSCar). Atualmente cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.