Imagem: Unifap/Escola indígena Jorge Iaparrá
Os primeiros anos das crianças indígenas Karipuna da aldeia Espírito Santo nas escolas mostram o momento de transição de um espaço livre, sem muitas regras, para o espaço escolar e suas regras. O momento em que elas vão para a escola é especial e delicado para a família, quando se faz necessário observar as relações das crianças e o espaço escolar.
As crianças Karipuna são criadas de acordo com a cultura e os costumes de seus antepassados, desde muito cedo são ensinadas a respeitar não só as pessoas, mas tudo que faz parte do seu habitat, sejam eles seres vivos e não vivos, lugares sagrados que tem um significado muito importante para o seu povo.
Toda a comunidade se envolve na criação, assegurando e garantindo o seu desenvolvimento como criança, cercando-a de atenção e carinho. Ter professores indígenas formados para trabalhar, principalmente com as séries iniciais nas escolas, é importante para garantir a alfabetização das crianças em língua indígena e, com isso, preservar a língua materna e facilitar a adaptação ao espaço escolar.
Por Janina dos Santos Forte
A aldeia Espírito Santo fica localizada na Terra Indígena Uaçá, município de Oiapoque, Estado do Amapá, fronteira do Brasil com a Guiana Francesa. Tem hoje uma população de 137 famílias e mais de 600 habitantes, são indígenas do povo Karipuna falantes da língua indígena Kheuól Karipuna e português. O povo Karipuna teve o primeiro contato com a escola em 1930, a partir de um projeto nacional de implantação de escolas entre os povos indígenas da região do Oiapoque, assim como de outras partes do Brasil, com o objetivo de integrar os indígenas à sociedade nacional. A escola hoje já é uma realidade dentro das aldeias Karipuna. A comunidade tem que lidar com esta estrutura institucionalizada e tenta torná-la uma aliada da proteção, fortalecimento e manutenção da nossa língua e cultura.
As crianças Karipuna são criadas de acordo com a cultura e os costumes de seus antepassados, desde muito cedo são ensinadas a respeitar não só as pessoas, mas tudo que faz parte do seu habitat, sejam eles seres vivos e não vivos, e lugares sagrados que tem um significado muito importante para o seu povo. Estão sempre num processo de aprendizagem, participam de todas as tarefas da comunidade, respeitando as suas peculiaridades físicas e cognitivas. A transição para o ensino formal, ou seja, da escola, se dá aos poucos. Elas começam a frequentar a escola a partir dos 4 anos, e algumas frequentam o espaço da escola somente acompanhando as atividades, sem compromissos, para irem se acostumarem com o espaço da sala de aula e a rotina da escola.
Esse processo de transição de mudança de espaço, do mundo livre da aldeia para uma sala de aula, é muito importante para o desenvolvimento da criança no aprendizado formal.
A chegada da escola entre os Karipuna
A educação escolar entre os povos indígenas tem sido um grande desafio tanto para o Estado quanto para os próprios povos. Com a chegada da escola na aldeia houve uma grande resistência dos indígenas em aderir à escola, porque era algo novo, e quem ministravam as aulas eram professores não indígenas, que não falavam a língua indígena e não conheciam a realidade do nosso povo. Muitos pais, com medo dessa nova instituição, levavam seus filhos para dormir na roça para que eles não fossem à escola, pois havia muitos relatos sobre o regime violento instituído naquele espaço. Aqueles que permaneceram na escola contavam que a professora lhes impunha castigos e não deixava que falassem sua língua. Todos eram obrigados a se comunicar apenas em português, o que era muito difícil, já que não falavam e entendiam muito pouco o português.
A educação escolar foi introduzida na área indígena da região do Oiapoque nos anos de 1930. Santos (2019) afirma que a escola durou um período e depois parou, posteriormente foi retomado como um novo projeto “…os primeiros projetos de escola do SPI só funcionaram até 1937. A partir de 1940 o SPI retoma o projeto de escola e inicia a construção de novas escolas na região do Uaçá”.
Somente algumas aldeias foram escolhidas para receberem a escola, entre os Karipuna foi a aldeia Espírito Santo, entre os Galibi-Marworno a aldeia Kumarumã, e entre os Palikur não houve implantação da escola, foram os únicos indígenas que não aceitaram. Atualmente, praticamente todas as aldeias da região do Oiapoque têm escola funcionando com seus próprios PPP (Plano Político Pedagógico).
A escola da aldeia Espírito Santo
A escola da aldeia Espírito Santo foi criada em 1994. É uma escola bilíngue Kheuól e português, atende alunos do ensino infantil ao ensino médio. Há uma grande preocupação com a manutenção e fortalecimento da língua materna. Assim, do ensino infantil até o 5° ano somente professores indígenas trabalham em sala de aula. A alfabetização se dá primeiro em Kheuól e posteriormente em português.
A Resolução da CEB nº3, de 10 de novembro de 1999, fixa as diretrizes nacionais para o funcionamento das escolas indígenas. Em seu artigo 3º define como será a organização e gestão dessas escolas indígenas.
Art. 3º Na organização de escola indígena deverá ser considerada a participação da comunidade na definição do modelo de organização e gestão, bem como:
I- suas estruturas sociais;
II- suas práticas socioculturais e religiosas;
III- suas formas de produção de conhecimento, processos próprios e métodos de ensino aprendizagem;
IV- suas atividades econômicas;
V- a necessidade de edificação de escolas que atendam aos interesses das comunidades indígenas;
VI- o uso de materiais didático-pedagógicos produzidos de acordo com o contexto sociocultural de cada povo indígena.
O Projeto Político Pedagógico (PPP) da nossa escola é o resultado colaborativo que tem como objetivo principal direcionar as atividades da escola com os interesses da comunidade, fundamentado nas nossas epistemologias, liberdade e na convivência harmoniosa com o nosso habitat. Construímos uma proposta de ensino baseada em uma pedagogia transdisciplinar, organizada através de ciclos de estudos conforme a compreensão da comunidade sobre o desenvolvimento da criança.
A proposta de ensino do currículo para todas as escolas Karipuna é que funcione por ciclos e não por séries. O 1° ciclo, que remete ao ensino infantil, tem como objetivo específico a alfabetização da criança. O currículo instrui: “durante os quatros anos deste ciclo a meta é a alfabetização na língua materna e a aprendizagem da segunda língua oral e escrita”.
Na Escola Indígena João Teodoro Forte, do primeiro período até o terceiro, as crianças só têm contato com a língua Indígena Kheuól, que é sua língua materna. Então, a partir do primeiro ano do ensino de nove anos (antiga primeira série), as crianças têm contato com o português em sala de aula. A partir daí os professores são livres para usarem as duas línguas em suas aulas.
As crianças Karipuna
Os Karipuna dividem o ciclo da vida pelas fases: Tximun são as crianças (de 0 a 10 aos); jon-mun, os jovens (de 11 anos até o casamento); a fase adulta, ghamun (a partir do casamento já é considerado adulto) e idoso vieghamun (de 50 anos em diante), e cada ciclo é carregado de ensinamentos e aprendizagens.
A infância das crianças Karipuna é uma fase de muita liberdade para brincar e aprender. Na verdade, aprendem brincando, pois todas as brincadeiras sempre têm um aprendizado que será útil em suas vidas. Toda a comunidade se envolve na criação, assegurando e garantindo o seu desenvolvimento como criança, cercando-a de atenção e carinho. As crianças acompanham os pais em seus afazeres, sejam eles em casa ou nas roças, estão sempre juntos, aprendem a nadar entre 2 e 3 anos de idade no rio, aos 4 já sabem remar, raspar mandioca com faca ou terçado, brincam livres pela aldeia, tomam banho de rio. Participam de todas as atividades comunitárias, respeitando as suas peculiaridades físicas. Acreditamos que a participação nos trabalhos coletivos é o meio de transmitir os conhecimentos e dar a base da nossa cultura.
As crianças na escola
Quando chega o momento de as crianças começarem a frequentar a escola, os pais acompanham seus filhos até eles se sentirem seguros. Os professores que acompanham essas crianças têm todo um cuidado para tornar esse processo mais tranquilo. Nesse momento os professores não introduzem diretamente o lápis e o caderno à criança, de início fazem brincadeiras e cantigas de roda, tudo na língua indígena. As crianças, nesses primeiros momentos, são livres para ficar ou ir embora.
As atividades buscam sempre despertar e enfatizar nas crianças seu mundo imaginário de crianças indígenas que vivem em contato direto com a natureza. Os professores trabalham conteúdo específicos e diferenciados, valorizando a cultura local de cada um.
Na nossa escola, os professores usam muito as cantigas na língua Kheuól que os pais cantam em casa ou que elas costumam brincar com os coleguinhas; histórias de domínio da comunidade, que muitas vezes falam de seres sobrenaturais e histórias dos nossos antepassados. Muitos pais, quando estão em sala acompanhando as crianças, contam histórias, fazem passeios na aldeia mostrando as árvores, informando seus nomes, a sua utilização – se é medicinal ou se são perigosas; ensinam os nomes dos animais, principalmente de peixes e aves. Assim, as crianças se adaptam e aprendem de forma natural, sem a pressão, opressão, do espaço da sala de aula.
Considerações
O primeiro contato das crianças Karipuna com o ensino formal é na escola. Hoje sabemos que a escola já é uma realidade para quase todos os povos indígenas. Para os Karipuna o projeto chegou nos anos de 1930. A luta foi muito grande para construirmos um projeto de escola com estrutura própria de funcionamento, currículo diferenciado e bilíngue que valorize, promova e mantenha a nossa cultura. O ensino formal das nossas crianças indígenas é fundamentado nas nossas epistemologias, liberdade, na convivência harmoniosa com seu habitat.
Tentamos, a partir do nosso PPP, que a escola seja uma extensão da aldeia, que seja um espaço agregador, socializador e não opressor e dominador. Para continuarmos protagonistas das nossas escolas é importante que nós indígenas estejamos dentro das salas de aulas, ocupando todos os quadros de funcionários para garantirmos a continuidade das nossas decisões tomadas no nosso PPP.
Janina dos Santos Forte é mestre em linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP); indígena do povo Karipuna; professora na Escola Indígena Estadual João Teodoro Forte, T. I. Uaçá (Oiapoque/AP); atual Cacica da aldeia Espírito Santo. janinakaripuna@gmail.com
Referências
Brasil. Ministério da Educação. Resolução CNE/CEB n. 03/1999.
PPP- Projeto Político Pedagógico da Escola Indígena Estadual João Teodoro Forte, Aldeia Espírito Santo, 2019.
Ruffaldi, N; Spires, R. Currículo de ensino fundamental nas escolas indígenas – Karipuna e Galibi – Marworno. Oiapoque: CJMI, 2004.
Santos, E. (2019). História oral e documental sobre a implantação da escola na região do Uaçá/Rio Curipi. Monografia. Licenciatura Intercultural Indígena, Universidade Federal do Amapá, Oiapoque, 2019.