Por que o Brasil precisa de dados de satélites?

Por Luiz Aragão

A resposta desta pergunta deveria ser tão óbvia para a sociedade e tomadores de decisão quanto explicar por que precisamos de infraestruturas críticas, voltadas para as comunicações, o provimento de energia, os transportes, o fornecimento de água e alimentos, entre outras. Não há dúvidas que estas possuem papel estratégico, já que são essenciais para a soberania e segurança nacional, o nosso bem-estar e sobretudo para consolidar o desenvolvimento do país. Pois bem, afirmo que: para o Brasil, a infraestrutura espacial para a aquisição de dados de satélites de observação da Terra também é crítica. Em um país com cerca de 8,5 milhões de km2 de território, somados a mais de 3,6 milhões de km2 de mar territorial, não há como planejar ações eficientes, em prol da sociedade, sem monitoramento contínuo do vasto território. Torna-se inviável prover diagnósticos e previsões sobre o clima, os eventos extremos, as emissões de gases de efeito estufa, a produção agrícola, o uso dos recursos naturais, o crescimento urbano, os oceanos, e as fronteiras, sem o uso de dados de satélites orbitais, que requerem um desenvolvimento científico e tecnológico de ponta.

Os dados de satélite são tão críticos e estratégicos para os países que, segundo os dados do Escritório das Nações Unidas para Assuntos do Espaço Exterior (United Nations Office for Outer Space Affairs – UNOOSA), existe atualmente uma frota global de 11.300 satélites orbitando o planeta. Destes, cerca de 67% estão operacionais, sendo 1.167 dedicados às atividades de observação da Terra. As grandes economias mundiais, especialmente países com extenso território, investem consideravelmente na infraestrutura espacial. Os dados do relatório sobre Programas Espaciais Governamentais, disponibilizados pela Euroconsult, indicam que os Estados Unidos e a China investiram em 2023, respectivamente, R$377,53 e R$72,99 bilhões de reais em seus programas espaciais. O orçamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), somado ao da Agência Espacial Brasileira (AEB), responsáveis por executar o Programa Espacial Brasileiro, segundo o portal da transparência do Governo Federal, girou em torno de R$0,21 bilhões de reais em 2023. Comparar o Brasil com os EUA e a China parece incoerente, mas, e a Itália, por exemplo? Este país detém o nono maior produto interno bruto do mundo, de cerca de R$ 119 trilhões de reais, logo atrás do Brasil, oitava economia mundial. O orçamento para o programa espacial italiano, contudo, é 53 vezes maior que o do Brasil. Os investimentos nacionais neste setor, infelizmente, indicam uma completa ausência de entendimento, por parte dos tomadores de decisão e da sociedade, sobre a criticidade dos dados de satélites para a gestão eficiente e inteligente do território nacional.

Não é, portanto, surpreendente, que a condição orçamentária frágil deste setor, deixou o país em desvantagem no desenvolvimento de tecnologias satelitais, em relação às economias compatíveis com a brasileira. Por exemplo, de acordo com os dados da UNOOSA,  a Rússia controla hoje 177 satélites, a Índia 62, e o Canadá 56. Até mesmo a Argentina, com 38 satélites, aparece à frente do Brasil com 9, desenvolvidos desde 1992. Do total de satélites nacionais, sete foram desenvolvidos para a observação da Terra, sendo que três destes ainda encontram-se em operação.

Apesar do orçamento escasso, do déficit de pessoal, da legislação inconsistente com a dinâmica da inovação no setor espacial e a lentidão nas ações para estabelecer uma força de trabalho dinâmica e compatível com a demanda do país, os dados coletados por estes satélites, processados e disponibilizados gratuitamente pelo INPE, em seu catálogo de imagens, tem prestado um serviço essencial para a sociedade. O último satélite de observação da Terra brasileiro, o Amazônia-1, foi lançado em fevereiro de 2021. Com uma capacidade de visitar o mesmo ponto da Terra a cada cinco dias, a câmera imageadora óptica de visada larga (WFI), a bordo do Amazônia-1, possui três bandas espectrais no visível e uma banda no infravermelho próximo, cobrindo uma área de imageamento de 850 km, com cerca 60 metros de resolução espacial.  Esta câmera compõe uma constelação de três câmeras WFI, quando somadas ao mesmo sensor a bordo dos satélites CBERS-4 e CBERS-4A do Programa CBERS (“China-Brasil Earth Resources Satellite”). Com os satélites da família CBERS, o Brasil ainda controla e disponibiliza dados da câmera brasileira MUX, que coleta imagens em uma faixa 95 km, com uma resolução espacial de 20 metros e uma revisita de 26 dias. O catálogo de imagens do INPE ainda conta com dados da Câmera Multiespectral e Pancromática de Ampla Varredura (WPM), imageando uma faixa do território de 92 km, com uma resolução espacial de 2 a 8 metros, a cada 31 dias. O INPE foi o terceiro país do mundo a receber e disponibilizar dados do satélite Landsat da Nasa, e recentemente, o INPE vem modernizando sua base de dados geoespaciais e criou o centro de dados Sentinel (Sentinel Hub) que disponibiliza dados da família de satélites Sentinel da Agência Espacial Europeia (ESA). Esses dados compõem a gama de informações orbitais disponibilizadas pelo INPE, que ainda conta com dados de satélites meteorológicos da NOAA, entre outros. Desde 2004, o Brasil implementou uma política global de dados abertos, que foi seguida por outras agências espaciais como Nasa e ESA.

É evidente que os profissionais do setor se empenham para atender as necessidades relativas ao acesso aos dados espaciais, mas para qual finalidade? Por que estas informações são críticas para a gestão do país? Posso começar com as enchentes do Rio Grande do Sul, em maio de 2024. As imagens de satélite coletadas e disponibilizadas pelo INPE auxiliam na gestão do desastre, permitindo a estimativa da extensão do dano e o planejamento das ações de defesa civil. O INPE faz parte da Carta Internacional para Grandes Desastres, que consiste na ação coordenada dos países que controlam satélites para disponibilizar seus dados, visando auxiliar as ações de resposta a desastres no mundo. As imagens dos satélites meteorológicos, recebidas pelo INPE, também apoiam nessa temática, permitindo o monitoramento e a previsão climática, fundamental nos casos de enchentes, secas e crítica para a produção agrícola nacional.

Somos uma potência agrícola mundial. Além das informações climáticas para produzir, precisamos de informações sobre o desmatamento para exportar nossa produção agrícola. Os dados de satélites disponibilizados pelo INPE, além de dados das agências parceiras, são fundamentais para que o INPE possa gerar os alertas de desmatamento e de degradação florestal, por meio do programa DETER.  Compõem, também, a base para o cálculo das taxas anuais de desmatamento dos biomas brasileiros, geradas pelo programa PRODES. Esses dados, além de subsidiar as ações das agências responsáveis pelo controle do desmatamento no Brasil, também são utilizados pelo setor privado, como a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (ABIOVE) e outros entes da sociedade. Estes utilizam informações sobre o desmatamento, no contexto da Moratória da Soja, para garantir a qualidade ambiental da soja para exportação. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o agronegócio somou mais de R$ 849 bilhões de reais em exportações em 2023.

O Brasil, sendo não só uma potência agrícola, mas também ambiental, lidera as discussões nas Nações Unidas sobre ações para mitigar as mudanças climáticas globais e as soluções baseadas na natureza, focadas no desenvolvimento sustentável. Estas discussões incluem o desenvolvimento bioeconômico do país e a redução das emissões de gases de efeito estufa –  no Brasil, cerca de 50% são causadas pelo desmatamento. Para consolidar essa posição e ter voz ativa na segurança global, obtendo benefícios econômicos para atingir o desenvolvimento nacional, esperado pela sociedade, é necessária a gestão dos recursos naturais. Os dados de satélite disponíveis permitem não só atender às demandas para o controle do desmatamento, mas também a redução das queimadas. As queimadas, somadas ao desmatamento, por exemplo, reduzem os estoques de carbono e contribuem para as emissões nacionais. Reduz a biodiversidade, fundamental para a bioeconomia. Além disso, aumenta a pressão sobre o sistema público de saúde, devido à incidência de doenças respiratórias na população exposta à fumaça. O programa Queimadas do INPE disponibiliza informações sobre o fogo no Brasil e dados diários derivados dos satélites que subsidiam a resolução desse problema. Finalmente, todo esse arcabouço de aplicações dos dados de satélite pode ser, ainda, expandido para o Poder Judiciário. A resolução 99 de 2021 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, recomenda a utilização de dados de satélites de sensoriamento remoto e de informações obtidas por satélite na instrução probatória de ações ambientais.

Não resta dúvida de que o acesso aos dados de satélites de observação da Terra são fundamentais para o mundo e para o Brasil, especialmente, como um país de extensão territorial continental. O país tem uma oportunidade única de se destacar internacionalmente na produção agrícola, na gestão de sua biodiversidade, dos seus estoques de carbono e da água e, claro, se consolidar como pilar da segurança climática, alimentar, hídrica e energética global. Vejo que não investir na infraestrutura espacial dificulta alcançar esse objetivo de forma isonômica e eficiente no território nacional. Construir e operar seus próprios satélites, receber os dados, processá-los e disponibilizá-los de forma livre e gratuita para a sociedade é, evidentemente, indispensável para promover a gestão eficaz do território brasileiro. Formar e absorver profissionais capacitados para atuar no setor e adequar a legislação para atender a velocidade da inovação requerida é indispensável. Sem uma política de Estado robusta, para garantir uma infraestrutura espacial consolidada, com equipamentos, instituições fortes e a garantia de orçamentos compatíveis com a complexidade da operação, principalmente para as atividades de Observação da Terra, o país coloca em risco vários setores de sua economia. Isso inclui a manutenção de sua hegemonia como potência agrícola, ambiental e energética sustentável, e a proteção de sua população, cada vez mais exposta a desastres frequentes e intensos devido às mudanças climáticas e às ocupações do território sem planejamento.

Luiz Aragão é pesquisador, coordenador-geral de Ciências da Terra substituto do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)