Por Claudio Angelo
A disputa entre descarbonização emergente e inércia do clima e da economia determinará o futuro da humanidade. Torço pela primeira e espero daqui a alguns anos poder rir de tudo o que escrevi sobre a segunda. Mas por enquanto não apostarei dinheiro nisso.
Em 2012, após perder o emprego, dei a mim mesmo uma missão que qualquer pessoa com um pingo de juízo recusaria: escrever um livro sobre como as mudanças climáticas estão afetando as regiões polares e como isso, por sua vez, tem consequências diretas – e dramáticas – para quem mora em lugares como o Brasil.
A imprevidência me custou três anos de trabalho, madrugadas, fins de semana e milhares de reais de indenização trabalhista em viagens aos confins da Terra. Acompanhei um cientista dinamarquês numa expedição ao alto do manto de gelo da Groenlândia, voei com militares brasileiros para a Antártida, visitei laboratórios e institutos de pesquisa em cidades tão distintas quanto Porto Alegre e Paris, Copenhague e Punta Arenas. Entrevistei dezenas de pessoas em todos os continentes e li mais artigos científicos sobre derretimento de gelo do que recomendaria a Organização Mundial da Saúde. Tudo isso para produzir, ao final, um catatau de 480 páginas, publicado em 2016, que eu espero de coração que esteja errado da primeira à última linha.
O título, A Espiral da Morte, é meio dramático, admito. Mas não destoa da realidade climática da Terra no momento. A expressão foi cunhada por um glaciologista americano para descrever o mecanismo por meio do qual o Ártico perde cada vez mais gelo marinho no verão: o derretimento de um ano expõe mais áreas de mar aberto, que é escuro e absorve radiação, produzindo mais aquecimento local, derretendo mais gelo e assim por diante. Os cientistas que monitoram o oceano Ártico estimam que bem antes do meio do século o polo Norte tenha seu primeiro verão totalmente livre de gelo.
O derretimento do polo Norte tem consequências mais profundas do que transformar Papai Noel em sem-teto. A perda do gelo e da neve naquela região vem sendo relacionada por cientistas a eventos climáticos extremos e padrões meteorológicos incomuns, como as ondas de calor nos Estados Unidos e os incêndios florestais na Rússia. Em 2010, vastas regiões russas queimaram, o que causou uma quebra na safra de trigo e uma alta no preço da comida no mundo todo, inclusive no Brasil.
A outra consequência do degelo é uma ironia: reservas de petróleo e gás natural cuja exploração era dificultada passaram a tornar-se acessíveis por mais tempo no ano, tornando-se economicamente viáveis. Esforços de prospecção ocorrem na Groenlândia, no Canadá e no litoral siberiano. O governo russo desenha grandes planos para converter a Rota Marítima do Norte, uma das famosas passagens congeladas entre a Europa e a Ásia, num corredor de navegação por onde seriam escoados hidrocarbonetos produzidos no Ártico.
Esse interesse comercial ameaça tornar a região polar novamente uma zona de conflito geopolítico, algo que não se vê desde a Guerra Fria. Canadá e Rússia flexionam músculos militares na região; Canadá e EUA mantêm uma cordial briga por direitos de navegação na chamada Passagem Noroeste, o outro atalho entre o Atlântico e o Pacífico; Canadá, Dinamarca e Rússia disputam a posse geográfica do próprio polo; e Noruega e Rússia só recentemente ajustaram suas fronteiras marítimas, o que permitiu dimensionar quem tem as maiores reservas de óleo e gás no Mar de Barents. Para tornar o xadrez geopolítico ártico ainda mais emocionante, a China em anos recentes tem reivindicado participação nas decisões internacionais sobre a região, alegando que o Ártico é “patrimônio mundial”.
Mas essa ressurgência do conflito no hemisfério Norte é brincadeira de criança perto de outro impacto do aquecimento dos polos: o temido derretimento dos mantos de gelo da Antártida e da Groenlândia, que já está acelerando a elevação do nível do mar.
As duas grandes massas de gelo da Terra contêm, juntas, cerca de 80% da água doce do mundo. Como elas estão sobre continente e não flutuando no oceano, caso derretam, contribuirão diretamente para o aumento do nível do mar – diferentemente do gelo marinho, que já está boiando. Estima-se, por analogia com o clima da Terra no passado, que o degelo da Groenlândia seja capaz de elevar os oceanos em 5 metros a 7 metros. O oeste da Antártida, que contém 10% de todo o gelo austral e é a parte do continente mais vulnerável ao aquecimento, tem um volume equivalente estocado. Ou seja, caso derretam sob influência dos gases de efeito estufa, Groenlândia e Antártida Ocidental têm o potencial de elevar os mares em 10 metros.
Isso significaria nada menos do que a reconfiguração do litoral no planeta todo. Cidades como Xangai, Rio, Nova York e Amsterdã desapareceriam do mapa ou se tornariam em grande parte inabitáveis, já que 10 metros de elevação média do oceano podem se converter localmente em 20 ou 30 durante uma ressaca. Com muito menos do que 10 metros, países insulares no Atlântico e no Pacífico, como Tuvalu, Santa Lúcia, Vanuatu e Fiji estariam extintos. Mas isso é só uma parte da história. Um trauma geográfico dessa natureza teria repercussões globais – em migração de pessoas e destruição de zonas agrícolas. A civilização mudaria para sempre. E dificilmente para melhor.
Mas qual é o risco de tal cenário ocorrer de fato? Como pude testemunhar na Groenlândia e como cientistas que entrevistei estão observando na Antártida, o risco é muito mais alto do que a sociedade pode pagar, mas ainda há enormes incertezas sobre o tamanho do impacto que veremos neste século.
Na Groenlândia, as grandes geleiras estão acelerando seu fluxo e se retraindo há 20 anos. O fenômeno começou no sul da ilha e se espalhou para o gélido norte. Em Upernavik, a 2.000 km do polo Norte, pude observar as marcas deixadas pelo degelo numa montanha antes coberta por uma geleira – que rebaixou 70 metros em um único ano. A perda de gelo é limitada pela geografia (a Groenlândia é como um enorme balão cheio de água e cada geleira é um furo nele; mesmo que toda a água escape e o balão enfim se esvazie, isso leva algum tempo). Mas os cientistas acham que, com 1oC a mais de aquecimento, um degelo quase total, como o ocorrido há 125 mil anos, é irreversível. Hoje a Groenlândia contribui sozinha com um terço da elevação verificada anualmente no nível do oceano.
Na Antártida o quadro é mais complexo, mas também mais assustador. O continente pode ser dividido em três grandes zonas: a Península, mais quente e com menos gelo; o oeste, mais vulnerável por ter sua massa de gelo em parte ancorada abaixo do nível do mar; e o leste, muito alto e frio e por enquanto menos impactado pelo aquecimento da Terra. Algumas áreas do leste estão esfriando, inclusive.
Na Península, o aquecimento global está a todo vapor, provavelmente auxiliado pelo buraco na camada de ozônio (que causa mudanças nos ventos). A região esquentou mais de 3oC em 60 anos. As grandes plataformas de gelo da região estão se esfacelando exatamente na sequência em que se previu na década de 1970 caso o planeta viesse a esquentar.
No oeste, grandes geleiras também estão perdendo massa, sob influência de água do mar mais quente e de alterações no regime de vento. Estudos recentes em dois glaciares colossais da região, Thwaites e Ilha Pine, sugerem que provavelmente já se iniciou em ambas um processo de esfacelamento autossustentado, que no futuro pode produzir elevações da ordem de 3 metros a 5 metros no nível do mar. Por enquanto não há nada que indique que isso ocorrerá neste século – trata-se de um impacto de longo prazo, da ordem de vários séculos ou mesmo um milênio – mas alguns dos efeitos serão vistos no tempo de vida de grande parte dos leitores deste artigo. Até o começo deste século, a perda de massa da Antártida não tinha influência discernível no aumento do nível do mar; nas próximas décadas ela deve se tornar uma de suas principais causas.
Este é o principal ponto do livro sobre o qual eu espero estar redondamente enganado. Afinal, é muito difícil medir o balanço de massa da Antártida. E se o leve aquecimento da atmosfera estiver aumentando o acúmulo de neve de forma a compensar a perda? E se o leste antártico estiver ganhando gelo?
Infelizmente vários estudos publicados depois que eu encerrei minha apuração só confirmam os temores dos cientistas. Em um deles, de 2015, os americanos David Pollard e Robert Deconto propuseram um mecanismo pelo qual o próprio leste antártico poderia derreter parcialmente, causando uma elevação do nível do mar de 17 metros. Neste ano, outro estudo, de um grupo chinês e australiano, mostrou que o degelo da Groenlândia passou de 5% para 25% da contribuição com a subida do nível do mar entre 1993 e 2014. Sessenta por cento da elevação se deve a degelo. O gelo marinho no Ártico segue em baixa – em 2016 a região teve temperaturas até 20oC mais altas que o normal – e cada vez mais estudos confirmam sua correlação com as mudanças nos ventos que enlouquecem o tempo no hemisfério Norte, produzindo recordes de calor e de frio. A espiral da morte continua, implacável.
Há, no entanto, uma mudança recente que me dá a esperança de estar errado. Não nos sistemas naturais, mas no comportamento humano: o fim da era dos combustíveis fósseis, causadores da mudança climática, parece estar no horizonte.
O Acordo de Paris sobre o clima, que entrou em vigor em 2016, botou uma etiqueta de validade na era dos fósseis. Se quisermos cumprir o objetivo do tratado de limitar o aquecimento global a menos de 2oC, a maioria do petróleo e do carvão disponíveis terá de permanecer no subsolo – e isso inclui o nosso pré-sal. O uso de carvão mineral passou a declinar sensivelmente nos Estados Unidos e na China, devido principalmente à competição com fontes de energia mais baratas e menos poluentes: gás natural e renováveis. As emissões de carbono por uso de energia se mantiveram estáveis por três anos consecutivos: 2014, 2015 e 2016. Os carros elétricos avançam no mercado a velocidade muito maior do que o previsto, o que faz alguns analistas apostarem num pico de demanda por petróleo já na próxima década.
Isso tudo, mais regulações ambientais nacionais, flutuações no preço do óleo, maior facilidade em outros lugares (como o Brasil) e pressões da sociedade civil, tem feito refluir a pressão para a exploração de óleo no Ártico. Empresas como a Shell vinham correndo para abrir fronteiras de exploração como a Groenlândia e o Alasca para ter reservas em seu portfólio, mas esse petróleo dificilmente será necessário. A tendência parece ser um abandono gradual das pretensões petroleiras na região, já que se trata ainda de um óleo caro de extrair – e a US$ 60 o barril no Ártico ou US$ 7 no pré-sal as empresas não precisam parar muito para pensar.
A questão é se essas mudanças no uso de energia ganharão escala a tempo de evitar os piores efeitos do aquecimento global. Hoje nada indica que sim, mas é difícil prever.
A humanidade emite hoje 52 bilhões de toneladas de gases-estufa por ano. Para ter uma chance de 66% de estabilizar o aquecimento em 2oC, é preciso chegar a 2030 emitindo 42 bilhões no máximo. A ONU considera que o ano de 2020 é nossa última chance de produzir uma inflexão na curva global de emissões para poder atingir os 2oC sem quebrar a economia mundial (lembrando que o custo de não fazer nada é sempre mais alto). Só que nenhuma das metas de corte de emissões na mesa hoje nos leva sequer perto da ambição necessária.
Pessoalmente, creio que a única chance de salvar a civilização de uma mudança climática disruptiva está em novas tecnologias, igualmente disruptivas, de retirada de carbono da atmosfera e de armazenagem de energia produzida por cata-ventos e painéis solares. A arquitetura do Acordo de Paris sabiamente abre espaço para isso, ao estabelecer ciclos quinquenais de revisão das metas de corte de emissões. Mais bonito ainda, Paris produz sinalizações para o mercado de que a descarbonização da economia global é irrefreável, estimulando o investimento em renováveis e o desinvestimento em fósseis. Quem duvida olhe o fundo soberano da Noruega: criado com dinheiro da exploração de óleo no mar do Norte, ele anunciou em novembro que venderá seus ativos de empresas de petróleo.
A disputa entre essas duas forças, a descarbonização emergente e a inércia do clima e da economia, determinará o futuro da humanidade. Torço pela primeira e espero daqui a alguns anos poder rir de tudo o que escrevi sobre a segunda. Mas por enquanto não apostarei dinheiro nisso.
Claudio Angelo, 42, é coordenador de Comunicação da rede Observatório do Clima. Seu livro A Espiral da Morte – como a humanidade alterou a máquina do clima (Companhia das Letras, 2016) ganhou o Prêmio Jabuti 2017 na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.