Por Debora Cristina Jeffrey
Semanalmente, as diferentes mídias e redes sociais denunciam casos de preconceito, discriminação, quiçá de racismo, que por vezes, nos deixam com uma sensação de impotência, indignação e injustiça. Tem-se a percepção de que há a perpetuação de práticas simbólicas, violentas e cerceamento da população negra diante da estigmatização, emprego de rótulos, segregação, entre tantos outros atos que resultam em racismo institucional, recreacionista, estrutural, genocídio da juventude negra com efeito direto na auto-estima, construção da identidade racial e exclusão social deste grupo.
Embora 54% da população brasileira tenha se autodeclarado negra (pretos e pardos), conforme os indicadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020), o debate acerca da política de ações afirmativas no Brasil, ainda é bastante controverso, para alguns representando um direito e para outros um privilégio.
Entende-se que a política de ações afirmativas pode ser definida como o estabelecimento de normas, regras, organização administrativa, ordem social e representativa destinada à garantia de direitos e reparação histórica pelo Estado, Poder Público e sociedade, mediante ações específicas de um governo.
No Brasil, a política de ações afirmativas destinada à população negra se constitui como uma agenda pública, com uma tradição histórica nos processos reivindicatórios e políticos, especialmente do Movimento Negro, Ativistas, Movimentos Sociais e, recentemente, por representantes da Sociedade Civil Organizada.
Neste sentido, a legitimação da política de ações afirmativas representa o reconhecimento social e político que envolve o processo de reparação histórica, garantia da efetividade de direitos, o combate às desigualdades educacionais, sócio-econômicas, a discriminação, o preconceito, o racismo, mediante a definição de responsabilidade do Estado, do Poder Público e da sociedade brasileira para com a população negra no país.
A política de ações afirmativas, portanto, representa uma avanço no que tange a integração entre as políticas públicas, a inclusão social, a valorização positiva da identidade e pluralidade da cultura afro-brasileira, além de garantir o acesso e a permanência da população negra em distintos espaços e formas de atuação.
Ao questionar a viabilidade da política de ações afirmativas no Brasil, seja em âmbito legislativo, a partir de tratativas jurídicas que visam suspender medidas adotadas; político mediante a deslegitimação pública das ações afirmativas, relacionando esta como um privilégio; cultural através da desvalorização dos saberes ancestrais que representam a cultura afro-brasileira, reafirma-se a manutenção das desigualdades, do não-lugar e da ausência de direitos à população negra no país.
Assim, referente à educação é possível identificar o resultado do processo histórico de exclusão da população negra, com repercussões até os nossos dias, apesar do arcabouço jurídico-normativo constituído que estabeleceu alguns marcos legais relevantes:
a) A escolarização da população negra somente foi pautada no século XIX, durante o Brasil Império, quando por meio dos Decretos Imperiais foi permitida a escolarização deste grupo, com severas restrições de acesso somente às poucas escolas noturnas existentes na Capital do Império;
b) A Constituição de 1988 proporcionou o caráter universal do ensino fundamental, apesar da prática da pedagogia da repetência (altas taxas de evasão e repetência);
c) A Lei Federal 10.639/2003, altera da Lei de Diretrizes e Bases da Educação n. 9.394/96, tornando obrigatória o ensino da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”;
d) O Estatuto da Igualdade Racial – Lei 12.288/2010, no Capítulo específico sobre a Educação, referenda a Lei 10.639/2003, indica a responsabilidade do Poder Público neste processo de formação inicial e continuada de professoras/es, a necessidade de adequação das matrizes curriculares nos cursos de formação, além de ressaltar a importância de incentivo às pesquisas em Programas de Pós-Graduação, programas de extensão universitária e cooperação técnica referente às relações étnicas, aos quilombos e às questões pertinentes à população negra;
e) A Lei 12.711/2012, conhecida como a Lei de Cotas Étnico-raciais, dispôs sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio;
f) O Plano Nacional de Educação – Lei 13.005/2015, na Meta 12, em relação ao acesso ao ensino superior, há o reconhecimento da importância na redução das desigualdades étnico-raciais, com garantia de acesso e permanência de afrodescentes, indígenas, deficientes, entre outros grupos; referente à Meta 14, no que concerne à Pós-Graduação ressalta-se a importância de garantir o acesso às populações do campo, comunidades indígenas e quilombolas em Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado).
Apesar da definição dos marcos legais acima indicados, à exceção dos Decretos Imperiais, implementá-los e promover mudanças significativas na cultura de exclusão racial que caracterizou historicamente a sociedade brasileira ainda é algo desafiador, ao considerar os indicadores de escolarização da população negra no Brasil. Segundo dados da Pnad – Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílio Contínua de 2019 – a evasão entre jovens de 15 a 29 anos no ensino médio e que não estudavam era de 55,4% entre negros e 43,4% entre os brancos; anos de estudo: negros – média de 8,6 anos e brancos 10,4 anos; analfabetismo: atinge 8,9% a população negra e somente 3,6% a população branca.
Os indicadores apresentados apontam a desigualdade educacional resultante do processo de exclusão educacional e étnico-racial existente no Brasil. Em relação a este aspecto, Eunice Prudente, da Universidade de São Paulo, em podcast “Políticas afirmativas incrementam inclusão racial” (https://jornal.usp.br/radio-usp/politicas-afirmativas-incrementam-inclusao-racial/), considera essencial também o estabelecimento de uma relação direta entre os indicadores sócio-econômicos por corte racial, de modo que a política de ações afirmativas proporcione a inclusão racial.
Na análise de Cidinha Silva no livro Ações Afirmativas em educação: experiências brasileiras, a efetividade de um programa de ações afirmativas, a oferta de oportunidades será apenas o primeiro passo, já que além disso, as condições materiais e simbólicas devem ser oferecidas a médio e longo prazo, promovendo as condições para a construção de igualdade racial e de oportunidades.
Portanto, ao considerar os aspectos destacados, o questionamento: política de ações afirmativas: ainda um direito? Possui uma resposta afirmativa diante da trajetória histórica, política e cultural da população negra, que não é privilegiada, mas segue engajada na mobilização, tendo em vista a efetividade das conquistas presentes no corpo da Lei, bem como a manutenção e aprimoramento destas junto ao Estado, Poder Público e sociedade brasileira.
Debora Cristina Jeffrey é professora livre docente da Unicamp – Faculdade de Educação, Departamento de Políticas, Administração e Sistemas Educacionais (Depase). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Avaliação Educacional (Gepale). Vice- Presidente da Região Sudeste da Sociedade Brasileira de Educação Comparada – SBEC (2021-2023). Foi presidente da Comissão Assessora de Diversidade Étnico-Racial da Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp (2019-2021).