Por Fernanda Cruz
Instituições integram a comunicação pública e privilegiam música clássica e programas educativos
Educação, cultura e divulgação científica nortearam o surgimento da radiodifusão no Brasil no início do século passado. Quando as primeiras ondas radiofônicas se propagavam pelo país, um movimento de cientistas e intelectuais, encorajados por Edgar Roquette-Pinto, estabeleceu-se no interior da Academia Brasileira de Ciências no Rio de Janeiro, então capital do país.
O discurso do presidente Epitácio Pessoa em comemoração ao centenário da independência do Brasil é um dos episódios mais lembrados quando se trata de primórdios do rádio. Foi em 7 de setembro de 1922, com sinal propagado a partir da Praia Vermelha, por meio de uma antena instalada no Corcovado, no Rio de Janeiro.
“Pouca gente se interessou. Creio que a causa principal desse desinteresse foram os alto falantes instalados na exposição. Ouvindo discursos e as músicas reproduzidas, no meio de um barulho infernal, tudo roufenho, distorcido, arranhando os ouvidos. Era uma curiosidade sem maiores consequências”, disse o considerado patrono do rádio no Brasil, o médico e antropólogo Edgar Roquette-Pinto, na época.
O acontecimento em terras cariocas, há quase 100 anos, é reconhecido por muitos como a primeira transmissão do país. No entanto, o pesquisador Luiz Artur Ferraretto, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), alerta que outras experiências com rádio já vinham sendo executadas em diferentes localidades do país.
“Na realidade, não existe o centenário do rádio. Trata-se de uma expressão do senso comum que contamina o jornalismo e, infelizmente, a ciência. Há os 100 anos das demonstrações realizadas pela Westinghouse e pela Western [empresas responsáveis pela transmissão do discurso de Epitácio Pessoa], todas precedidas de outras experiências semelhantes”, diz. O estudioso ainda coloca em dúvida que essa tenha sido, de fato, uma transmissão oficial.
Pesquisas científicas dos últimos 30 anos revelam que o rádio nasceu em meados da década de 1910, tendo a primeira transmissão “clara de som” no território brasileiro em 17 de abril de 1911. A demonstração ocorreu na costa da Bahia, em um navio de guerra alemão, que transmitia música. Durante o XII Encontro Nacional da História da Mídia, em 2019, na cidade de Natal (RN), estudiosos referendaram o pioneirismo da Rádio Clube de Pernambuco na transmissão sonora à distância em 6 de abril de 1919.
Quase dois anos depois, em abril de 1923, é fundada a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, trazendo na programação cursos e palestras, que abordaram temas como física, química, história e botânica. A emissora seguiu com esse propósito educativo até ser doada, em 1936, ao Ministério da Educação, quando mudou de nome para Rádio MEC. Desde 2017, o veículo é gerido pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e segue no ar nas frequências AM e FM.
Thiago Regoto, gerente da rádio MEC, destaca a importância histórica desse veículo de comunicação: “Toda essa implantação, formatação, como exemplo de um modelo de rádio, que não é comercial, isso serve de modelo, historicamente, para a construção das demais rádios educativas do país”.
Atualmente, a programação das rádios MEC inclui música erudita, instrumental, concertos e jazz (muitas vezes produzidos ao vivo dos estúdios ou espaços externos), além de programas sobre literatura, cinema, dramaturgia e arte, alguns voltados às crianças. “Sempre para formar a consciência crítica das pessoas, estimular o conhecimento. Todo conteúdo apresentado tem que ter viés educativo”, declara.
Regoto explica que o repertório é um contraponto ao que é oferecido pelas emissoras comerciais. “Temos um acervo fonográfico maravilhoso, com gravações que só nós temos, e a experiência de ouvir rádio ao vivo você não encontra no Spotify, no Deezer. Esse é o grande diferencial. O rádio que opta por esse caminho nunca vai morrer”, aponta.
Com discoteca contando com quase 100 mil itens, o acervo da Rádio MEC, no Rio de Janeiro, está disponível ao público para trabalhos e pesquisas científicas. Há registros documentais desde o surgimento da Rádio Sociedade e, a partir de 1936, o acervo ganhou também as documentações radiofônicas. Entrevistas com artistas e personalidades podem ser acessadas.
“O maior registro é de música de concertos brasileiros e intérpretes que só gravaram na rádio MEC. A rádio é, desde sempre, além de uma difusora, uma produtora de conteúdo. Então, não só simplesmente tocavam as obras, mas as gravavam com orquestras, grupos de câmara. Até hoje gravamos as orquestras. Há um acervo em relação à música clássica fabuloso”, aponta Regoto. “Toda vez que você se debruçar sobre o arquivo da rádio, acha uma pérola nova”, acrescenta.
Com a instalação de novo transmissor, em 2021, a Rádio MEC FM aumentou seu alcance, registrando crescimento na audiência de quase 10%. Os dados são da Kantar Ibope. De acordo com o levantamento, todas as rádios brasileiras cresceram no isolamento social provocado pela pandemia. O percentual de ouvintes sintonizados de casa cresceu de 70% para 78%, enquanto o número de pessoas ouvindo rádio dentro do carro caiu de 23% para 18%. No Brasil, 78% da população ouve rádio e, a cada cinco pessoas, três afirmaram ouvir alguma emissora diariamente.
Força da comunicação pública
Para Thiago Gomide, presidente da Rádio Roquette-Pinto, outra emissora pública carioca, as rádios públicas deveriam se unir e investir no poder do ouvinte. “Nossa missão, em 2022, é aprofundar o que foi plantado há 100 anos, dar oportunidade àquelas pessoas que não vão encontrar [o que precisam] naquilo que condicionamos como “mainstream”, como mídia de massa. Temos que aproveitar a rádio pública também como formadora de público”, declara.
A Rádio Roquette-Pinto foi fundada em 1934 pelo patrono da radiodifusão com objetivo estritamente educacional. Chegou a mudar de nome para 94 FM, ação duramente criticada por historiadores, uma vez que subtraiu a homenagem ao criador daquela estação. “Isso demonstra um pouco das caminhadas e fragilidades que a comunicação pública enfrenta no Brasil. Os ataques, que são de muitos cantos, somam-se a atitudes de desmerecimento da caminhada da comunicação pública”, diz. O nome original, Rádio Roquette-Pinto, foi retomado em 2020.
Para ele, diferente das emissoras comerciais, as novas bandas, cantores e artistas encontram nas rádios públicas um espaço de acolhimento. “Quase como uma boia salva-vidas, num mundo que estimula a competitividade, mas não oferece nenhum suporte”, argumenta Gomide.
Além disso, escolas e professores se deparam, ali, com um espaço de entendimento. Muitas rádios públicas estão integradas com instituições de ensino – a Roquette-Pinto conta com parceria de 15 universidades e serve como braço para que os docentes possam se reciclar e fazer experimentos. Essa aliança entre radiodifusão e escola era um dos grandes baluartes de Roquette-Pinto. “O rádio é a escola dos que não têm escola”, dizia ele.
Fernanda Cruz é jornalista (Unesp) e aluna da especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).