Peter Schulz foi secretário executivo de comunicação da Unicamp entre maio de 2017 e maio de 2021
Como tem sido sua trajetória acadêmico-profissional e como é que você caiu nesse mundo maravilhoso do jornalismo científico, ou da divulgação científica?
Vou fazer um retrospecto de uns 40 anos, já que tem “trajetória” na pergunta. Aos 17 anos eu tinha decidido estudar física, prestar vestibular para Física na Unicamp. E nesses meus mesmos 17 anos, fui convidado para ser um foca não remunerado no Jornal de Segunda lá de Jundiaí. O Jornal de Segunda chamava-se assim porque, primeiro, era uma brincadeira com “segunda qualidade”. Mas também porque saía às segundas-feiras nas bancas, era um jornal hebdomadário [risos]. Isso porque era o dia de folga dos dois maiores jornais da cidade, o Jornal da Cidade e o Jornal de Jundiaí. Sabe, década de 1970, interior, domingo era dia de folga das Redações.
Então ao mesmo tempo que queria ser pesquisador em Física, tive essa experiência de jornalismo. Foi um negócio muito interessante. Fiquei lá alguns meses só, depois eu pedi demissão. Fui fechar uma pauta e depois escrevi uma carta de demissão. Porque, primeiro, estava mais ou menos preocupado com o vestibular que estava se aproximando, e segundo, eu me achava incompetente. Fiz uma matéria, o redator-chefe falou “pô, cadê o lide?” Eu falei “o que que é lide?” [risos]. Daí eu começava a acertar o lide e esquecia de pegar o nome completo das fontes, para as aspas. E por aí afora. Mas foi uma baita de uma experiência, porque o editor era o Sandro Vaia. E o jornalistas remunerados eram todos lá do Jornal da Tarde ou do Estadão.
Algumas dessas pessoas são amigas até hoje. Negócio bacana. Depois que eu pedi demissão, continuava visitando a Redação porque era um lugar muito gostoso. Lembro que numa segunda-feira à tarde eu passei lá, o editor na época era o Carlos Motta, que ainda milita no jornalismo, lá em Serra Negra, e comentei com ele “cara, tive uma experiência muito bacana ontem, domingo, vi que o Werner Herzog ia dar uma palestra, entrevista, lá no Museu da Imagem e do Som, olhei, dava tempo, peguei o Cometão e fui assistir”. Ele falou “pô, você não quer escrever uma matéria sobre isso?” Eu falei tudo bem. Ainda tinha uns papéis de lauda e escrevi uma matéria sobre o Werner Herzog. E o Motta publicou, dessa vez assinado, me senti todo orgulhoso, saiu razoavelmente boa, então eu pensei “consegui aqui um desfecho”.
Bom, 40 anos depois fui convidado a ser secretário executivo de comunicação da Unicamp. Pensei “putz, não é que as duas trajetórias paralelas acabaram se juntando?”. Na Secretaria de Comunicação essas duas trajetórias se juntaram, de olhar para a articulação entre ciência e jornalismo. E, como você acompanhou, foi uma experiência muito legal, muito gratificante, muito instigante.
Antes disso eu cometi algumas contribuições de divulgação científica, desde o comecinho do século até 2017, 2018. Mas de uma maneira independente, embora quase simultânea, o Kassab me convidou para fazer uma coluna no Jornal da Unicamp. Hesitei um pouco mas topei e desde então lá se foram mais de 130 colunas. Não é bem jornalismo científico, mas é também. Porque deveria ser algo de divulgação científica, mas saíram também artigos de opinião, algumas colunas acabaram sendo mais jornalísticas do que de divulgação científica e opinião. E aí eu percebi também, já que me sinto aqui um pouco intruso no Dossiê Conversas [risos], porque não sou jornalista, mas percebi que as fronteiras entre jornalismo, divulgação, artigos de opinião, não são uma coisa claramente delimitada.
E não levar isso em conta traz lá suas dificuldades, suas questões, seus problemas.
Esse é o resumo curto da minha trajetória e minha aproximação ao jornalismo científico, que se deu dessa forma. E também o contato com a ComCiência, eu já tinha escrito antes para a revista, mas com esse contato com a Secretaria de Comunicação da Unicamp, tivemos essa proximidade com o Labjor, que você sabe bem [durante alguns anos os editores da revista ComCiência, Marina Gomes e Ricardo Muniz, participavam das reuniões de pauta da SEC, que eram realizadas todas as sextas-feiras no período da manhã].
E nessa experiência toda, o que que você foi observando de… Teve gente que não gostou do termo “defeitos”, preferiu “carências” ou “mazelas”. Pode escolher: “defeitos”, “carências” ou “mazelas” do jornalismo científico, que você observou.
De novo, pensando nessa fronteira não tão bem delimitada entre divulgação científica e jornalismo científico, vi muita gente apontando algumas mazelas como por exemplo falta de reportagens mais aprofundadas na grande imprensa e eu vejo uma outra mazela que é pouco comentada. Mas antes queria comentar sobre esse problema de falta de espaço na grande imprensa. Quando a gente fala de mazelas ou defeitos, a gente tem que pensar se é um defeito ou uma mazela local, nacional ou global. A resposta, o enfrentamento dependem dessa percepção. Acompanho alguns portais lá fora. Então, por exemplo, você olha para Folha e Estadão, você clica lá no botão “menu” e daí você vai ver uma série de coisas, saúde, esporte, patati patatá, e ciência está lá, meio escondida. Porque você tem de clicar no menu. Às vezes aparece alguma matéria destacada na home do portal em si, mas some rapidamente.
Mas é assim também no The Guardian. Embora o Guardian tenha uma faixa permanente sobre crise climática. Mas não de ciência. É assim também no El País, enquanto no Der Spiegel, que não é um jornal, é uma revista, o portal deles online tem uma faixa de ciência. Então é uma coisa que não é só aqui. Há lugares que têm esse destaque. Mas tem grandes jornais que também são como Folha, Estadão.
Então, o que é que está acontecendo no mundo? Acho que também é um problema de redução de editorias. Talvez seja mais geral, e não um problema brasileiro.
Mas enfim, qual é a fonte de ciência? No Brasil, são basicamente as universidades. E se a gente olha os portais das universidades, a maioria é muito institucional. Não sei se nas federais existe alguma norma, pensei isso agora. Se existe alguma norma de como devem ser. Mas são muito institucionais, então é aquele negócio de reitor foi não sei onde, inaugurou uma nova pia num laboratório, tem anúncio dos eventos. Mas se vê pouquíssimos artigos sobre ciência, sejam da área de comunicação, reportagens mesmo, seja de docentes que escrevem, que se expõem.
A Unicamp, a USP, e mais algumas, são exceções. Muitas vezes isso que é publicado nos portais de algumas dessas universidades pautam a grande imprensa. Observei isso durante o meu tempo na SEC. Então é importante e eu acho que algo que precisa modificar é a postura das próprias universidades frente ao jornalismo científico. Essas instituições que promovem ciência, que produzem a ciência não devem simplesmente lamentar que não há destaque para ciência na imprensa geral e em vez disso promover divulgação por seus próprios canais, que já existem.
Faz tempo que não percebo isso diretamente, mas há uma queixa recorrente por parte da comunidade científica de pouco destaque, mas também há uma resistência de muitos para escrever, expor, colocar numa linguagem para um público geral sobre ciência e tecnologia. Então é um problema interno também. As próprias instituições que fazem ciência não buscam o suficiente divulgar a ciência ou fazer jornal ou fazer jornalismo científico nos canais que elas próprias já têm.
É uma coisa que não foi tão abordada nas entrevistas que eu vi no dossiê, não é?
É verdade. Agora, digamos que você fosse o professor responsável pelo primeiro semestre de oficina de jornalismo científico lá no Labjor, na especialização. Na sua cabeça, no seu planejamento, qual seria o foco, a prioridade?
Seria voltar alguns passos, e começar o semestre com uma pergunta básica: o que é ciência? Claro que não é para ser um semestre de filosofia da ciência. Mas fazer uma rápida abordagem de filosofia da ciência mostraria já que não há um consenso sobre o que é ciência, entre os que pensam sobre ciência e aqueles que praticam ciência. E os jornalistas têm uma ideia de ciência, mas que não necessariamente é a mesma ideia de ciência que os cientistas têm. Que aliás eles não concordam entre si, porque há diferenças muito grandes entre diferentes áreas sobre o que é ciência. Sem avançar muito, basta ver o confronto entre ciências naturais e ciências humanas, por exemplo. E o que é ciência para o público?
Existe algo muito vago que há em comum entre esses três grupos. Um conceito legal é que é a ciência é um objeto de fronteira, e alguma coisa mais ou menos vaga do que seja esse objeto, mas grupos diferentes enxergam isso de maneiras diferentes. Acho importante a percepção disso e tentar aprender a lidar com isso, ou seja, eu jornalista tenho uma visão de ciência, qual é a visão de ciência do cientista ou do grupo que fez aquela pesquisa sobre a qual estou agora fazendo uma matéria. E qual que é a expectativa, a visão do público. E como eu ligo esses três vértices do triângulo. Não tem uma resposta única, mas é algo que tenho a impressão de que é muito pouco problematizado. E a partir disso, o que cada um desses vértices do triângulo espera, qual a expectativa em relação à ciência.
E aí, claro, tem toda uma série de questões de mostrar a ciência como um processo, que aquele resultado não é o ponto final. Porque o cientista vende, o jornalista muitas vezes vende também, a partir do que diz o cientista, como se aquilo lá fosse o Santo Graal para resolver um determinado problema. Quando na verdade aquilo é apenas um passo que vai precisar de mais 20 anos para chegar a alguma coisa que o leitor acha que já foi alcançado.
Também tem aquela história de aprender a ler um artigo científico. Eu não acredito muito nisso, porque tenho uma prática já de décadas – como pesquisador, cientista, tudo bem que essa palavra é um pouco presunçosa – de ler artigos científicos, mas tem artigos de outras áreas que para mim são grego [risos].
Então o que eu faria na parte final do curso, talvez encaixar, não é aprender a ler um artigo científico, mas aprender a fazer uma metaleitura do artigo científico, uma análise de discurso para ver como é que o contexto é colocado. A famosa introdução e como é que as conclusões são colocadas. O que nas entrelinhas aponta para aquilo que os autores querem valorizar, mas que nas entrelinhas reconhecem que ainda tem um longo caminho pela frente. Na parte de metodologia é descrito que “nossa metodologia é inovadora em relação a não sei o quê”. Bom, não vou entender a metodologia, mas vou perguntar “opa! mas espera um pouquinho: fulano, é inovador em quê?” Entendeu? E aí acho que aprender a fazer uma metaleitura (aliás, gostei, bolei agora essa expressão “metaleitura do artigo científico”), que aí sim o estudante ali desse meu semestre pode perceber todas as pistas para apontar o que é importante: não só o resultado apresentado, mas o processo, como é que esse resultado se encaixa numa cadeia ou numa rede muito maior.