Tema não foi a principal base de estudos do educador brasileiro, entretanto publicações recentes ressignificam seus trabalhos
Por Renan Augusto Trindade
Imagem: de Jean Galvão, publicada originalmente em Canal Um Brasil
“O significado da palavra infans: o que não fala. O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala”. O trecho do sermão do Padre Antônio Vieira ainda no século XVII no Hospital da Misericórdia da Bahia foi revisitado por Paulo Freire em uma carta para fazer uma crítica a um Brasil atemporal como uma criança que “não fala e quando fala não é ouvido, é reprimido”. A menção do educador pernambucano à infância faz parte do livro Cartas a Cristina que contém dezoito correspondências escritas por Paulo Freire à sua sobrinha Cristina. Entretanto, pesquisadores afirmam que a infância cronológica não foi a principal área estudada pelo professor.
O filósofo e pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Walter Omar Kohan, explica porque Paulo Freire se dedicou à educação de jovens e adultos e não de crianças pequenas. “Justamente por seu compromisso com a infância. Embora pareça contraditório, seu compromisso não era com a infância cronológica, mas sim com a infância como tempo. Os adultos não alfabetizados são os que mais têm a sua infância roubada, os que mais precisam recuperar sua infância”, afirma Kohan.
Walter é autor do livro Paulo Freire: um menino de 100 anos. Em um dos capítulos finais, o filósofo aponta como um dos motivos mais importantes para hoje se estudar Freire é a relação deste com a infância, como algo que não deveria apenas ser educado, mas que educa. É necessário, nesta perspectiva, estar atento a ela, escutá-la, cuidá-la, mantê-la viva, através do estímulo à curiosidade e à inquietação. Recentemente, a Universidade de Cambridge instalou em sua faculdade de educação uma escultura em homenagem a Paulo Freire.
Discutindo a inclusão
Para a professora Maria Teresa Eglér Mantoan, da Faculdade de Educação da Unicamp, a escola inclusiva, ao não fazer distinção entre os estudantes, proporciona aos docentes se depararem com pessoas singulares. Citando o filósofo francês Giles Deleuze, ela explica que todos nós, sejamos portadores ou não de deficiência, somos simulacros e, portanto, nossa fala e nossos gestos não representam de fato o que somos. “Então nenhum professor pode exercer sobre o outro esse estilo de ensino de A para B, no qual se deposita o conhecimento”, cita a professora em referência ao olhar crítico de Paulo Freire sobre o que ele chamava de educação bancária.
A autora do livro Inclusão escolar: O que é? Por quê? Como fazer? afirma que a ideia de ensino bancário, infelizmente, ainda está presente na educação escolar, como uma forma de assujeitamento do aluno ao professor. “O referencial freireano é pertinente quando tratamos da escola e seus modos de ensinar, hoje. Porém, as questões de fundo da inclusão não são freireanas”, pondera a pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped). A autora cita Gilles Deleuze, Michel Foucault e Jacques Rancière, dentre outros, como autores que estão nas bases de uma educação inclusiva. “Tais filósofos franceses fazem parte de um pensamento educacional pós-crítico. Já Paulo Freire faz parte do pensamento crítico”, finaliza Mantoan.
A infância e a tecnologia do oprimido
David Nemer, antropólogo e pesquisador da área de ciência da computação na Universidade de Virgínia, é autor do livro Tecnologia do oprimido publicado recentemente nos Estados Unidos pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), em que traça paralelos entre suas pesquisas na área de tecnologia e a obra de Paulo Freire Pedagogia do oprimido. Ele explica que com o amadurecimento dos estudos na área de ciência, tecnologia e sociedade (CTS), percebeu-se que as tecnologias também criavam opressões. “Por mais que Paulo Freire seja lembrado por sua abordagem pedagógica crítica, no livro uso o referencial dele para entender a opressão na era da informação”, resume.
Para Paulo Freire, uma opressão é dada a partir de uma prescrição. “E nada mais prescritivo que uma tecnologia”, afirma o docente associado da Universidade de Harvard. “Com essas definições, Paulo Freire se encaixa perfeitamente nessa era digital em que vivemos. Ele é atemporal”, complementa David.
Quando se fala em uso da tecnologia na educação e na infância, David se classifica como um cético. “As tecnologias nunca foram desenvolvidas com um plano pedagógico em mente. Foi a sala de aula que teve que se adaptar para usá-las”, afirma o professor, se referindo ao uso especialmente intensificado durante a pandemia.
Em seu estudo em favelas no Espírito Santo, do qual derivou o livro, Nemer explica que o uso da tecnologia por parte das crianças era diversificado e envolvia desde a utilização para jogos, até a realização de deveres de casa e para comunicação com familiares que moravam longe. “A tecnologia pode despertar a curiosidade na infância para que as crianças consigam se apropriar delas e entender como funcionam e, no futuro, possam ser mais críticos, adaptando a tecnologia para um mundo mais justo e igualitário”, enaltece.
Renan Augusto Trindade é formado em física (USP) e aluno da especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.