Por Gustavo Steffen de Almeida
O setor sucroenergético, ou sucroalcooleiro, tem inegável importância para a economia brasileira. De acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), a renda estimada do setor em 2015 foi de R$ 113,26 bilhões. Centros de pesquisa têm buscado desenvolver tecnologias para contribuir com a área, como o Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas da Universidade Estadual de Campinas (CPQBA/Unicamp). Em parceria com a indústria, o CPQBA conseguiu selecionar leveduras que propiciam maior rendimento na transformação da matéria-prima em etanol.
A cadeia produtiva da cana-de-açúcar é muito relevante para o agronegócio brasileiro, e o estado de São Paulo tem grande responsabilidade pelos números alcançados ano após ano pelo setor. Em tempos de busca por energias limpas e renováveis, cresce a importância estratégica do potencial brasileiro de produção de etanol. O produto é o carro-chefe do setor, contabilizando na última safra 11,07 bilhões de litros, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Os números são, em larga medida, influenciados por pesquisas científicas de ponta realizadas em diversos institutos de pesquisa e universidades paulistas.
Fazer que o setor seja cada vez mais produtivo e minimizar os potenciais impactos ambientais da produção sucroalcooleira – que ainda são um desafio –revelam-se alguns dos campos de pesquisa mais promissores na área. Quanto à produtividade, além do melhoramento das plantas e técnicas de cultivo no campo, há uma frente essencial que é a otimização constante do processo de produção do álcool. Nesse âmbito, as usinas contam com as instituições de pesquisa para entender e aperfeiçoar o processo de transformação da cana em etanol, a fermentação alcoólica.
“Fermentação é uma coisa bem complicada, o que você tem hoje não tem amanhã”, explica Cláudia Steckelberg, coordenadora da Divisão de Bioprocessos do CPQBA, que há mais de dez anos atua em parceria com o setor sucroenergético na tarefa de fazer a fermentação funcionar da melhor maneira possível.
Conhecido, mas complexo
Apesar de ser conhecido há muito tempo, o processo de fermentação alcoólica pode apresentar variabilidade e inconsistências em diversos momentos, prejudicando o rendimento da produção de etanol. Esse é o principal foco de atuação de Steckelberg e sua equipe. Apesar de a levedura usada nos processos fermentativos de produção alcoólica ser sempre a mesma espécie, a Saccharomyces cerevisiae, existem diferentes cepas – ou linhagens – de leveduras, cujas caraterísticas diferem quanto a diversos critérios e atuam de forma distinta na fermentação do caldo ou mosto.
Como explica a bióloga Patrícia Kitaka, que atua como técnica na divisão laboratorial há quase uma década, frequentemente as usinas utilizam uma cepa comercial de levedura, cujas características fermentativas e de produtividade são bem conhecidas, para dar início ao processo fermentativo – a chamada levedura starter [leia mais sobre isso ao fim do texto]. “No processo de fermentação alcoólica utilizam-se leveduras para fazer a fermentação do açúcar, e algumas leveduras já são selecionadas porque têm um perfil de bons fermentadores. Têm um rendimento alto, fazem melhor o etanol. As usinas começam a safra com essas leveduras e a gente acompanha durante a safra toda para ver se permanecem no processo”, detalha Kitaka. Por tratar-se de um processo aberto, mais de um tipo de levedura pode estar presente no mosto e os tipos naturalmente presentes na matéria-prima – chamados nativos ou selvagens – podem acabar sobrepujando a levedura starter.
“Às vezes as leveduras nativas são boas, às vezes não”, diz Kitaka, e é aí que entra o trabalho de cooperação das usinas com a equipe do CPQBA. Os pesquisadores utilizam técnicas moleculares para identificar as leveduras que estão presentes em cada etapa do processo, para saber se é a mesma que foi, inicialmente, introduzida. Por uma técnica laboratorial chamada cariotipagem é possível identificar o perfil cromossômico dessas linhagens de leveduras, comparando-as. “É mais ou menos como um teste de paternidade”, compara a pesquisadora.
Empregando essa metodologia, as pesquisadoras chegam a várias informações relevantes, como saber se é a levedura com a qual a usina começou a safra, se é outra, quantos tipos aparecem, qual a porcentagem populacional.
Durante o processo, as leveduras comerciais perdem força e vão sendo eliminadas, abrindo espaço para leveduras que vêm ou da cana ou do mosto – são estas que acabam dominando o processo. Algumas leveduras a princípio indesejadas podem ser isoladas e mostrarem-se ótimas fermentadoras, despertando o interesse de usá-las em grande escala. “A gente seleciona para as indústrias”, afirma Steckelberg. “Se interessou, começamos aqui em volume baixo, mandamos para eles e eles começam a replicar em maior escala. A gente fornece a levedura isolada para eles darem o start”. A pesquisadora conta que em uma determinada usina por várias safras uma determinada levedura nativa acabava dominando o processo e eliminado a cultura starter. Desse modo, a equipe do laboratório isolou a nova levedura e a forneceu à usina, que passou a adotá-la, desde então, em seu processo fermentativo. Ela tem sido usada para todo começo de fermentação e por duas vezes já ficou durante a safra toda, conta Steckelberg.
Parceria necessária
O CPQBA tem atuação destacada como ponte entre setor privado e universidade. “Esse link é o centro de pesquisa que faz: universidade e indústria, no caso a sucroalcooleira. Um papel bem importante, talvez não tão visível em termos de pesquisa acadêmica, mas para o setor é uma contribuição imensa”, diz Steckelberg.
Os trabalhos da Divisão de Bioprocessos são, em grande medida, voltados à prestação de serviços às indústrias do setor sucroenergético, especialmente na produção de etanol. O viés voltado à aplicabilidade acaba influindo também nas pesquisas acadêmicas e publicações científicas realizadas pelo grupo. Para Kitaka, trabalhar entre a indústria e a academia traz benefícios para ambas. “A partir das informações que temos de pesquisas que são feitas na interface indústria x academia, conseguimos gerar novas tecnologias, novos processos que sejam de fato aplicados.” A pesquisadora ressalta a importância de pesquisas acadêmicas nas áreas de cromatografia, onde se consegue saber quanto a levedura produz de etanol, o quanto consome de açúcar e quais os açúcares, e de cinética de crescimento, onde são obtidos dados valiosos sobre velocidade de crescimento da levedura, massa produzida, rendimento em etanol, tempo de fermentação (mais rápida ou mais lenta para consumir o açúcar), presença ou ausência de floculação (a característica que algumas leveduras apresentam de unirem-se, formando agrupamentos) etc.
As pesquisas envolvendo a seleção de linhagens robustas de leveduras são fundamentais para o processo em escala industrial. “O que acaba acontecendo é que se tem uma levedura que não é muito boa em termos de rendimento, o impacto é muito grande”, analisa Kitaka. “Mesmo que seja uma diferença de, digamos, 0,2%, em termos de litros de etanol produzidos faz diferença. Outra coisa é que algumas leveduras têm uma característica de floculação, que pode, dependendo do processo adotado pela usina, atrapalhar e, na hora de fazer a centrifugação, traz um impacto muito grande, tendo por vezes que parar o processo e mesmo trocar o fermento todo.” Os principais benefícios para a indústria em utilizar as leveduras selecionadas pelo CPQBA são a produtividade, baixa floculação, rendimento, estabilidade do processo e permanência da levedura.
A coordenadora da divisão argumenta que a grande quantidade de dados obtida a partir dos trabalhos com as usinas é uma fonte muito rica de informação para ser usada nas publicações científicas – respeitados prazos e eventuais contratos de sigilo acordados com o setor privado. “A gente pega essas amostras, isola as leveduras, faz a fermentação – transforma mosto em álcool –, separa as leveduras (com o equipamento de análise molecular chamado finger print), e analisa isso durante a safra”, elenca Cláudia Steckelberg. A partir dos dados da pesquisa com a indústria é possível observar teor de proteínas, quanto fazem de álcool etc. Tais informações podem ser usadas para os trabalhos acadêmicos da equipe.
Culturas starter A fermentação é um processo muito antigo conhecido pelas sociedades humanas. Estudos indicam registros milenares de processos fermentativos primitivos. A fermentação alcoólica é uma das mais utilizadas, sendo empregada na obtenção de alcoóis, bebidas ou na panificação. A fermentação pode ocorrer, em condições adequadas de temperatura e umidade, naturalmente – é um mecanismo através do qual micro-organismos obtêm energia sem a necessidade de oxigênio. Os micro-organismos naturalmente presentes na matéria-prima podem, ao realizar a fermentação, produzir compostos químicos específicos, que alteram as características sensoriais originais do produto. O processo, que pode deteriorar a matéria-prima em alguns casos, pode também torná-la mais atrativa para consumo ou conferir-lhe outras funções, como é o caso do álcool, que além de bebida, é combustível, solvente e substância esterilizante. Com a ciência moderna, os micro-organismos (bactérias ou fungos, dependendo do caso) responsáveis pelos processos fermentativos foram isolados e preservados, de acordo com sua eficiência em realizá-los. Assim, introduzindo estes micro-organismos eficientes a um processo, pode-se ter maior garantia de que vai ocorrer corretamente. Essas são as culturas starter (“inicializadoras”). “Todas as leveduras comerciais já foram nativas um dia, mas foram caracterizadas para serem inseridas nos processos fermentativos”, explica a bióloga Patrícia Kitaka. A Divisão de Bioprocessos do CPQBA-Unicamp mantém um acervo com centenas de linhagens de leveduras nativas isoladas da cana-de-açúcar, vindas de diferentes regiões do país, diferentes climas e épocas. Essa riquíssima coleção pode fornecer culturas starter para diferentes situações e necessidades específicas.
Gustavo Steffen de Almeida é graduado em ciências dos alimentos (USP), mestre em ciências de alimentos (Unicamp) e especialista em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.
Legenda da imagem em destaque: Fotomicrografia de levedura (Saccharomyces cerevisiae). Crédito da imagem: SciMAT / Photo Researchers