Doutor em física atmosférica pela USP, Paulo Artaxo trabalhou na Nasa e nas universidades de Antuérpia (Bélgica), Lund (Suécia) e Harvard (Estados Unidos), sendo autor de mais 400 trabalhos científicos publicados nas últimas quatro décadas.
Atualmente é um dos representantes do Brasil membro do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas) e estava na equipe do órgão agraciada com o Prêmio Nobel da Paz de 2007.
É professor do Departamento de Física Aplicada do Instituto de Física da USP, onde recebeu a equipe da ComCiência. Nesta entrevista, ele faz uma reflexão sobre o cenário atual (explicando porque devemos falar em agora e não futuro), perspectivas (de urgência) e a necessidade de implantação de políticas públicas (em uma escala global) como única solução.
Por Maria Clara Ferreira Guimarães e Adriana Giachini
Por que o futuro é agora?
Visite a fronteira entre a Bahia e Alagoas para entender. Aquela região já se aqueceu 2,5ºC, e chove 30% menos do que chovia há 25 anos. Essa região, que antes era semiárida, está se tornando árida, ou seja, desértica. Será impossível viver lá, e a grande pergunta é o que vamos fazer com os 20 milhões de brasileiros que moram na região. Por isso digo que não são questões para o futuro, como a imprensa normalmente diz, são questões para o presente.
Veja a reversão do rio São Francisco. Poderia ser uma obra de mitigação das mudanças climáticas? Sim. O problema é que a precipitação na bacia do rio caiu tanto nos últimos anos que, depois de o Brasil ter gasto US$ 20 bilhões ao longo de 30 anos, não tem água para fazer a reversão.
Em Recife o mar está avançando tanto que partes das estradas fecham em determinados períodos do ano. A vulnerabilidade da área costeira brasileira precisa de atenção. O Brasil tem quase 8,5 mil km de área costeira e a previsão do último relatório dos oceanos do IPCC é um aumento do nível do mar da ordem de um metro, em média. Precisamos de um plano de adaptação para ver o que fazer com as cidades costeiras.
Não é no futuro, basta olhar para o mundo. As pessoas dizem que, no futuro, o clima vai ficar inóspito. Veja os incêndios na Califórnia. Um terço de Los Angeles está sendo evacuado por causa de ventos de 100km/h, levando fogo que já destruiu mais de 800 casas. Claro que ciclones sempre ocorreram, mas a questão é que a frequência e a intensidade de eventos climáticos extremos estão aumentando. E qual é a relação? Muito simples. O que alimenta a energia dos ciclones, de um tufão ou de um furacão é a temperatura da superfície do mar. O Atlântico tropical, por exemplo, já aumentou 1,8ºC.
Perguntei aos meus amigos que fazem trabalho de modelagem climática pelo mundo e não tem um que não diga que estamos indo para um aquecimento médio da ordem de 4ºC. A meta de 1,5ºC, que é a recomendada pelas entidades, é possível? Sim, se a partir de 2020 reduzir as emissões em 5% ao ano, zerar essas emissões até 2050 e, a partir de 2050, sequestrar 15 a 20 gigatoneladas de CO2 por ano permanentemente até o final do século. Não precisa ser expert para saber que não é possível.
A discussão sobre mudanças climáticas é, antes de tudo, sobre comportamento humano?
A ciência está inserida dentro de um contexto socioeconômico. Sempre esteve. O principal exemplo é que quando a ciência vai em direção do que um particular poderoso quer, ela é ótima, quando vai contra, não presta. Veja a polêmica com o Inpe. Quando o Inpe questiona o governo, é desacreditado, porém quando ele endossa o discurso, passa a ser elogiado.
A afirmação de que o aquecimento global não é causado por ação humana não é uma argumentação científica, então não precisamos nem rebater essa argumentação cientificamente. Porque é evidentemente algo derivado de posicionamento político.
Hoje 37% das emissões de CO2 são causados pela queima de combustível fóssil e 13% é desmatamento de florestas tropicais. Se olharmos as emissões globais por setores econômicos, a agricultura é responsável por 30% das emissões. O IPCC recomendou que tenhamos emissão zero em 2050 e isso é impossível. Os 30% da agricultura vão permanecer, pois precisamos comer. Hoje somos 6,7 bilhões de pessoas, seremos 10 bilhões em 2050 e a renda média de indianos e de africanos vai subir.
O que fazer, diante de tudo isso?
Temos que entender que esse não é o fim do mundo, continuaremos vivos, só que bilhões de pessoas vão morrer. E o que faremos? Precisamos discutir o que chamamos de governança, quem vai dirigir esse processo de mudança? Não é a ONU, que foi criada para resolver as pendências pós-guerra e sequer tem mandato para uma abrangência dessa. Atualmente nenhum órgão internacional pode fazer isso e sequer começou-se a discutir o tema. Não pode ter um Bolsonaro que decide queimar 30% da Amazônia e dane-se todo o resto. Não pode ter um Trump que comece a implantar usinas a carvão uma atrás da outra. Quando vamos montar um sistema de governança onde os limites nacionais que conhecemos hoje não vão existir? A economia é globalizada, os efeitos do clima são globais e a atmosfera é compartilhada por todo mundo. O que um americano médio faz influencia um índio no alto rio Negro. Por que não conseguimos resolver? A humanidade nunca enfrentou problemas dessa magnitude.
A crise que o Brasil passa agora é por uma recessão de 0,5%. Quando falamos de redução de emissões de 5% ao ano em um sistema dependente de emissão de gases de efeito estufa, estamos falando de recessão econômica de 3%, 5%, 10%. Então, como lidaremos com as questões socioeconômicas que viriam? O modelo econômico que temos hoje é baseado em crescimento positivo contínuo, mas isso não existe em um planeta que tem recursos limitados. Assim, todo nosso sistema econômico é baseado em premissas falsas de que podemos crescer economicamente mesmo que seja 1 ou 2% ao ano, para sempre. Isso não é possível. Como sair dessa? Sem mudar o sistema econômico, não tem saída. E como se muda o sistema econômico planetário? Não é algo trivial. Terá de ser construído, e ninguém fez esse modelo ainda.
O que você tem a dizer sobre a importância da floresta amazônica não só para o Brasil, mas para o mundo?
A importância da Amazônia é global. Ela armazena no seu ecossistema cerca de 150 a 200 gigatoneladas de carbono. Para ter ideia, queima-se em torno de 10 gigatoneladas por ano de combustíveis fósseis. Ou seja, a Amazônia contém, em carbono, o equivalente a 20 anos de toda a queima de combustíveis no planeta. Quando esse carbono todo for para a atmosfera, a concentração aumentará em 30 partes por milhão e a temperatura aumenta 2,5ºC só devido ao desmatamento.
Dados do Inpe mostram que a taxa de desmatamento de 2019, comparada a de 2018, subiu cerca de 40% e o número de focos de queimada subiu 60%. A razão é que todos os órgãos de fiscalização foram afrouxados, como o Ibama, cujo sistema prevfogo deixou de ser ativo. O Estado brasileiro está desmontado do ponto de vista de proteção ambiental e obviamente quem está no governo é ruralista. Fazem o que interessa a eles e não à população.
Os apelos para atitudes individuais numa tentativa de mudança na forma de consumo, como eliminar canudos e sacolas plásticas têm real impacto nas mudanças climáticas? Ou mesmo um movimento como o veganismo?
Atitudes individuais não vão resolver, nem contribuir para mudanças. É algo absolutamente irrelevante. Você pode ir trabalhar de bicicleta, isso fará bem ao seu ego e sua saúde, mas se todos os outros moradores saírem com seus carros, o que você reduz em emissões é irrelevante.
A única saída individual eficiente é eleger políticos que tenham uma agenda de compromisso com sustentabilidade, comprometidos em defender interesses reais da população.
Mas se você olhar as propagandas das indústrias poluentes, elas tentam incutir exatamente esse tipo de pensamento: faça sua parte. Como se a culpa fosse sua e não da companhia. Mas a culpa é da empresa, ela tem responsabilidade sobre o que produz. Elas tentam incutir a ideia de que não é a Nestlé a maior jogadora de plástico nos oceanos, a culpada, é você, que pega sua garrafa de coca-cola e descarta no lixo. Muita gente cai nessa ideia.
As empresas de petróleo ganharam trilhões e trilhões de dólares ao longo dos últimos 20 anos e continuam até hoje com venda de gás que causa o efeito estufa. Quem paga a remediação? São os governos, ou seja, nós. As empresas ficam com o lucro e os governos com o prejuízo.
O movimento do veganismo ajuda, mas você não vai resolver todos os problemas deixando de comer carne. É necessário taxar mais, pois cada quilo de carne tem 10 ou 15 vezes mais emissão de gás de efeito estufa do que um quilo de proteína vegetal. Isso tem de ser levado em conta. Mas o cerne da questão é lutar por políticas públicas que pensem no interesse da população.
Que tipo de políticas públicas são essas?
O relatório do IPCC traz a necessidade de erradicação de pobreza. Esse mesmo item está entre os objetivos de desenvolvimentos sustentável da ONU. Isso não é política no sentido que conhecemos, é do ponto de vista da ciência uma vez que se erradicarmos a pobreza, diminuiremos as emissões. Por quê? Porque temos 1% da população muito rica que tem um grau de emissões absolutamente insustentável. Se houvesse 1 bilhão de indianos com o mesmo grau de emissão dos Estados Unidos, nós nem estaríamos mais conversando aqui nessa sala. Não são questões políticas, são questões sociais.
Por isso precisamos discutir o que nos trouxe até aqui e como saímos dessa situação. Tem solução? Tem, não precisamos inventar nada. São Paulo poderia ter metade da sua frota de carros feitos de veículos elétricos, porque não faz sentido ter 8 milhões de automóveis nas ruas. Em Singapura tomaram a decisão de que no país inteiro só poderão circular 150 mil automóveis. É o quanto suportam. Para ter um carro novo, você precisa comprar uma licença do governo que custa em torno de 70 mil dólares, dinheiro que é investido em transporte público. O país inteiro tem metrô de qualidade a meio dólar e ônibus gratuito. Lá não há poluição do ar, trânsito, estacionamento. Isso é política pública.
A tecnologia de carros elétricos é eficiente e barata, então por que isso não foi implantado há 20 anos? Por causa dos interesses econômicos. Além disso, há a questão da governança. Como funciona o sistema de produção de eletricidade no mundo? São grandes companhias que constroem usinas elétricas gigantescas que custam até 5 bilhões de dólares e ganham muito dinheiro para que a eletricidade chegue à sua casa. Imagine um modelo em que você gerasse energia no teto da sua casa. O sistema inteiro, a base do capitalismo atual, deixa de ter sentido. Passamos de um sistema centralizado para um sistema descentralizado. Isso não interessa às companhias de eletricidade e para os governos. Precisamos de um sistema de governança global, para pensar políticas públicas de forma internacional.
Maria Clara Ferreira Guimarães é formada em linguística e cursa especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.
Adriana Giachini do Amaral é jornalista e cursa especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.