Por Leandro Magrini
Cientista do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) ressalta em entrevista que status socioeconômico, cor da pele ou lugar de moradia tem muito a ver com o grau de exposição e vulnerabilidade às mudanças do clima. “Todo mundo vai ser afetado, mas algumas populações estão na linha de frente, as populações mais vulneráveis. A marginalização é a geografia onde os riscos se projetam, se materializam”, diz a doutora em ecologia humana pela Universidade da Califórnia. “São justamente os países subdesenvolvidos do Sul Global – que pouquíssimo ou praticamente nada contribuíram para o agravamento da crise climática – que estão sofrendo os maiores impactos.”
Um relatório especial do IPCC publicado em 2018 já havia alertado o mundo que o limite considerado mais seguro, de até 1,5ºC de aquecimento global almejado pelo Acordo de Paris de 2015, poderia ser alcançado até 2050, caso a humanidade continuasse com o mesmo padrão de emissões de gases de efeito estufa (GEE). Em meados de 2021, e neste ano, no final de fevereiro e na primeira semana de abril, tivemos a publicação, respectivamente, das três partes (ou volumes) do Sexto Relatório do IPCC, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU.
O Assessment Report (relatório de avaliação) 6 (AR6), mostrou em sua primeira parte um cenário pior em relação ao relatório de 2018, projetando que o aquecimento de 1,5ºC do planeta deverá ser alcançado em menor tempo, entre 2030 e 2040. No começo de maio deste ano, cientistas da Organização Meteorológica Mundial da ONU anunciaram a projeção de 50% de chance de o aquecimento do planeta em 1,5ºC ser atingido até 2026.
A segunda parte do AR6 mostrou, de modo inequívoco, que as ações humanas estão causando rupturas perigosas e amplamente distribuídas na natureza, exemplificadas por suas consequências já afetarem a vida de quase metade da população mundial, em torno de 3,5 bilhões de pessoas; e também que a mortalidade devido a frequência de eventos climáticos extremos – inundações, secas, ondas de calor e tempestades – foi 15 vezes maior na última década para os países que se encontram em situação de maior vulnerabilidade em relação aos demais.
A especialista Patricia Pinho, autora líder do capítulo sobre “Pobreza, Modos de vida e Desenvolvimento Sustentável”, que compõe a segunda parte do AR6, fala sobre o novo relatório do IPCC nesta entrevista para a revista ComCiência e para OEco. Pinho é doutora em Ecologia Humana pela Universidade da Califórnia e pesquisadora do IPAM, Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. A pesquisadora tem como interesses a perspectiva social e antropológica das mudanças climáticas, buscando compreender quais são os principais impactos das mudanças climáticas na vida das pessoas, sobretudo na Amazônia. Em seus estudos, Pinho investiga o que expõe e quais os fatores que levam as pessoas a uma maior vulnerabilidade aos impactos das mudanças ambientais e climáticas, considerando para isso a importância da natureza, dos recursos naturais e da biodiversidade para o bem-estar humano, e como esses fatores interagem, além de estudar como as pessoas tem experienciado as mudanças climáticas.
Nesta entrevista conversamos, dentre outras coisas, sobre os destaques de Pinho em relação às conclusões do relatório; o papel do Brasil no combate às mudanças climáticas; as contribuições e novidades trazidas para nosso país no capítulo de sua autoria, com ênfase para a região amazônica; e sobre os desafios, as estratégias e os limites de adaptação das pessoas para o enfrentamento das mudanças climáticas.
O relatório do IPCC é produzido por cientistas do mundo inteiro divididos em três Grupos de Trabalho (GT). O GT I se dedica às bases físicas das mudanças climáticas, ou seja, a parte de meteorologia e de modelagem da mudança do clima; o GT II estuda a adaptação e as vulnerabilidades às mudanças climáticas; e o GT III, mitigação das mudanças climáticas. No segundo semestre de 2022, com previsão para setembro, o IPCC publicará a última parte do AR6, que é uma síntese de todo o relatório.
Leia abaixo a entrevista completa:
Como começou sua relação com a Amazônia e o que a levou a estudar o modo de vida das populações amazônicas?
Patricia Pinho: Sou bióloga de formação e fui trabalhar na Amazônia antes do doutorado porque já estava mais interessada pela área de ecologia humana. O modo de vida, as relações sociais e os tipos de organização com relação a recursos naturais, da biodiversidade, recursos pesqueiros e enfim, a cultura daquelas pessoas na Amazônia me intrigaram e me interessei em investigar isso. Fui então estudar ecologia humana na Universidade da Califórnia. Em meu doutorado, sob a perspectiva da ecologia humana e da ciência de políticas públicas investiguei formas de arranjos coletivos em comunidades ribeirinhas na várzea da Amazônia para a proteção de recursos naturais – espécies da biodiversidade utilizadas como recursos pesqueiros ameaçadas, como o tambaqui e o pirarucu.
Minhas principais linhas de investigação são centradas em uma perspectiva social e antropológica das mudanças climáticas, que busca avaliar quais são os principais impactos das mudanças climáticas na vida das pessoas, sobretudo na Amazônia, mas também me aventurei em estudos em outras regiões do Brasil, nos biomas da Mata Atlântica e mais recentemente no Cerrado, junto ao IPAM.
Estudo o que expõe e quais os fatores que levam as pessoas a uma maior vulnerabilidade aos impactos das mudanças ambientais e climáticas. Também considero os serviços ecossistêmicos para mostrar a importância da natureza, dos recursos naturais e da biodiversidade para o bem-estar humano, investigando como essa relação acontece e como as pessoas têm experimentado as mudanças climáticas.
Pelas conclusões do 6º Relatório do IPCC (AR6), você diria que a emergência climática que vivemos é muito mais grave e urgente do que a sociedade poderia imaginar?
Um exemplo que eu uso fazendo referência às mudanças climáticas é que todos estamos vivendo a mesma tempestade, vamos dizer. Todos estamos sob esse mesmo ‘teto’ e, no entanto, o tipo de barco que a gente está é diferente. O tipo de equipamento que nós temos para enfrentar essa tempestade não é o mesmo. As condições que você está, o status socioeconômico, a cor da sua pele ou o lugar onde você mora – têm sim muito a ver com o grau de exposição, a vulnerabilidade que você vai ter. Esse risco… Embora todo mundo vai ser afetado, algumas populações estão na linha de frente, que são as populações mais vulneráveis.
De todas as conclusões da segunda parte do novo relatório do IPCC, quais você diria que são as principais mensagens para o mundo?
Acho que a primeira conclusão é que as emissões de gases do efeito estufa de origem antropogênica [humana] têm gerado impactos adversos expressivos e significantes em todos os países ao redor do mundo, conferindo-se genuinamente como uma ameaça à humanidade.
Trouxe também com muita propriedade que essa vulnerabilidade, essa ameaça é real para a sociedade, para a humanidade globalmente, mas existe um componente de alta desigualdade nos impactos, o que significa que esses impactos e os riscos não são experienciados de maneira homogênea ao redor do mundo, por todos os ecossistemas ou por todas as pessoas. Então existe um componente de assimetria das mudanças climáticas que é a contribuição histórica das maiores emissões de gases do efeito estufa. Elas são em sua maior parte oriundas de países desenvolvidos, que também têm sofrido com os impactos compostos das mudanças climáticas na sociedade, na economia. No entanto, esses países têm uma maior capacidade de adaptação justamente por serem países desenvolvidos economicamente. Embora de base não sustentável, possuem a capacidade de implementar as respostas – têm recursos econômicos, capital social, cultural, governança e instituições que podem promover isso.
Por outro lado, os impactos mais negativos, mais expressivos, têm sobrecaído nas populações ou regiões do Sul Global, onde a capacidade de resposta é reduzida porque existe uma alta concentração de pobreza, desigualdade social – desigualdades de interseccionalidades, como estão sendo chamadas. São justamente os países subdesenvolvidos do Sul Global – que pouquíssimo ou praticamente nada contribuíram para o agravamento da crise climática – que estão sofrendo os maiores impactos.
Como devem ser entendidas as estratégias e os limites de adaptação para as mudanças climáticas?
O relatório destaca com grande propriedade que embora os impactos e riscos para os ecossistemas ao redor do mundo e também para a humanidade sejam comuns, sejam altos, a gente tem diferentes pontos de partida para implementar estratégias de adaptação para os próximos anos, ou implementar o que o IPCC chama de trajetória de resiliência climática. Isso quer dizer que dependendo em que espectro de vulnerabilidade a pessoa ou um país se encontra, será a partir daí que as estratégias de adaptação terão que ser tomadas. Então isso mostra quais são as maiores barreiras de adaptação para se implementar.
É sabido que a marginalização – os grupos étnicos, as questões de gênero, as mulheres, as crianças, os idosos – é a geografia onde os riscos se projetam, se materializam. Eles produzem impactos diferenciados. Essas desigualdades também foram pautadas para que estratégias de adaptação e trajetórias resilientes sejam possíveis.
O relatório também destaca os limites de adaptação que a gente tem que evitar, os tipping points (pontos de inflexão ou pontos de virada) ecológicos. O aumento da temperatura global leva a uma degradação ou praticamente à eliminação de alguns ecossistemas. Muito se tem falado sobre a questão da Amazônia em relação aos tipping points sociais, e sobre limitar o aquecimento global a 1,5ºC. Com esse limiar de temperatura, muitos recifes de corais serão extintos, com alto grau de confiabilidade.
E existem também os limites de adaptação que são mais suaves. São suaves não porque sejam fáceis ou menos impactantes economicamente ou em relação a perda de vidas, mas porque são factíveis de serem implementados. São limites sociais, na esfera mais sócio-política. Por exemplo, ao se implementar um mecanismo de proteção social você reduz as condições de pobreza e evita como consequência a insegurança alimentar; e trazendo vegetação, implementando soluções baseadas na natureza em meio urbano você reduz o estresse térmico. Como consequência, a incidência de internações por doenças associadas a ondas de calor são reduzidas. Além de beneficiar também o próprio clima, ou seja, deixar de promover o agravamento da crise climática.
Em relação ao Brasil, quais você considera as principais mensagens trazidas pelo grupo de Trabalho II?
O que a gente vê é que o Brasil tem de média a alta vulnerabilidade aos impactos das mudanças climáticas. Primeiro por ser um país de muita dependência econômica de base agrícola. Alto número de pessoas ou populações, comunidades vivendo intrinsecamente dependentes de atividades que são sensíveis ao clima, como agricultura e pesca. Trabalhadores que exercem suas atividades no meio externo, sujeitos ao clima. Há também alto número de populações ainda em situação de pobreza, e uma alta desigualdade socioeconômica. Mas também tem interseccionalidades como gênero, etnia, cor da pele e geografia. Então para o Brasil a gente tem uma vulnerabilidade já observada.
O país possui uma das mais longas extensões costeiras, o que o torna extremamente suscetível ao aumento do nível do mar e erosão costeira, afetando populações que moram e/ou dependem dessas áreas costeiras. O que a gente também vê é que para o Brasil existem impactos já observados em todos os ecossistemas, com perda acelerada de biodiversidade. E em um futuro próximo, com projeções até 2030 ou 2040, quando há a expectativa de o planeta atingir 1,5ºC de aquecimento na temperatura global, teremos um severo comprometimento para as espécies e ecossistemas tropicais, e para suas funções ecológicas, como já têm sido observadas para a Amazônia.
Também há processos acelerados de desertificação, sobretudo para a área do Nordeste brasileiro ocupada pelo bioma da Caatinga, com comprometimento e efeitos cascata, como na segurança alimentar, no que diz respeito à habilidade da população se manter; desses modos de vida que são dependentes da agricultura, da pesca ou de ecossistemas, tal como a população indígena e tradicional. Então há um cenário de alerta para a vulnerabilidade do país.
Quais as novidades/conclusões para o Brasil e para a Amazônia no capítulo sobre “Pobreza, Modos de vida e Desenvolvimento Sustentável” em que você foi a autora líder, na segunda parte do AR6?
Dentre as principais novidades estão trazer com muita proeminiência, para a linha de frente, o conceito de justiça climática e o conceito de limites de adaptação – a necessidade de implementar estratégias de adaptação urgentes para evitar pontos de inflexão, sejam eles ecológicos como também sociais com relação ao aquecimento da temperatura global.
O capítulo também trouxe o papel do desenvolvimento, da trajetória de desenvolvimento socioeconômico, tanto no Brasil como globalmente, que é algo que tem levado a uma maior exposição dos ecossistemas e amplificado os impactos e os riscos para a população e para as economias.
Outra contribuição foi mostrar que mesmo implementando estratégias de adaptação urgentes e necessárias, uma vez que ainda existem lacunas, algumas populações em algumas regiões do mundo, e alguns ecossistemas vão experienciar impactos residuais, ou seja, impactos que vão ocorrer, sejam eles econômicos ou não-econômicos independente dos esforços de adaptação. Esses são os riscos residuais com que vamos ter que lidar, e é isso que tentamos minimizar.
O relatório também traz a novidade das perdas não-econômicas, que são tidas como perdas mais subjetivas e não quantificáveis, mas que dão qualidade de vida ao indivíduo, a uma cidade, a um país. Trouxemos essas evidências e também a própria evidência do ponto de inflexão social.
E o que são esses pontos de inflexão sociais?
Os pontos de inflexão sociais são uma das grandes novidades do capítulo que fui autora líder e tiveram bastante destaque. São pontos em que alguma pequena perturbação, seja ela ambiental ou climática, gera uma desestabilização social – na sociedade, na comunidade – e isso faz com que exista uma transformação radical do comportamento, nas opções de modo de vida. Nesse processo existem alguns mecanismos. Os pontos de inflexão sociais podem ser positivos mas o que a literatura tem mostrado é que pontos de inflexão sociais têm sido geralmente muito negativos, estando muito vinculados a um processo de erosão do modo de vida das populações – aumento de conflitos, violência, crises humanitárias e migração.
Como você vê o papel que o Brasil representa no combate às mudanças climáticas?
O Brasil tem uma posição estratégica para contribuir com a diminuição global da temperatura, sobretudo evitando o desmatamento em qualquer uma de suas formas. O Brasil tem que zerar o desmatamento e já mostrou que é possível aliar crescimento econômico e reduzir taxas de desmatamento, principalmente no bioma da Amazônia, mas também em outros ecossistemas tal como o Cerrado.
O país se comprometendo com o desmatamento zero vai estar deixando de contribuir com a emissão de gases de efeito estufa (GEE). Mais de ¼ do total das emissões de GEE do país vêm do desmatamento. Com isso o Brasil também estaria deixando de aumentar os riscos significativos dos impactos das mudanças climáticas na sua própria agricultura, em sua própria geração de renda e receita econômica, e também evitando perdas de recursos econômicos com a incidência de eventos climáticos extremos afetando a infraestrutura, segurança alimentar, energética e hídrica da população.
Conseguindo fazer esses esforços de redução do desmatamento o país estará colaborando significativamente através de sua NDC (contribuição nacionalmente determinada, na sigla em inglês) de emissões de GEE para o acordo de Paris globalmente, e estará reduzindo os impactos e riscos para o próprio país. A gente já mostrou que é capaz de ter um tipo de desenvolvimento mais sustentável, que resulta em maior chance para atingir uma trajetória climaticamente resiliente.
Como o comprometimento da resiliência já observada da Amazônia devido ao aquecimento e as mudanças climáticas globais se soma ao aumento vertiginoso do desmatamento no atual governo em seus efeitos sobre os modos de subsistência das comunidades tradicionais que vivem na região?
O comprometimento da resiliência do ecossistema para a Amazônia tem promovido uma erosão no modo de vida, um efeito cascata no modo de vida das populações que são dependentes da floresta, sobretudo os povos indígenas e as populações mais tradicionais como ribeirinhos, e também da população urbana pobre. O que a gente tem visto é que devido ao aumento dos vetores de desmatamento existe uma maior exposição do ecossistema da floresta aos extremos climáticos. Então estamos tendo para a região uma maior incidência de secas, nunca antes vista, e também enchentes de magnitude expressiva. Esses eventos estão não apenas se alternando ano a ano mas também estão se sobrepondo no ano. Temos visto uma seca em um ano seguida depois de uma enchente no próximo ano, ou você tem uma enchente extrema num ano e uma seca extrema no mesmo ano. Então a incidência e a magnitude desses eventos extremos estão aumentando na região.
Isso leva a uma erosão do modo de vida, ao comprometimento da habilidade de se desenvolver uma agricultura – seja ela de subsistência ou para o mercado. E também afeta os recursos pesqueiros que são a base econômica e do modo de vida da população, bem como sua qualidade nutricional.
E ainda há a forte associação com o desmatamento e efeitos em cascata…
A incidência de episódios de fogo e incêndios florestais têm levado ao comprometimento da saúde, sobretudo de jovens, crianças e idosos, e maior incidência de outras doenças que estão vinculadas ao desmatamento e a fatores de extremos climáticos como a malária e a dengue. Isso está fazendo com que a população abandone o seu modo de vida e sua moradia, indo buscar ajuda ou soluções nos meios urbanos. Consequentemente está havendo maior migração, o que temos reconhecido como uma má adaptação na realidade, porque essas populações tradicionais de indígenas vão ocupar as áreas mais marginais das cidades onde há o maior comprometimento da qualidade de vida. Além disso, também são áreas sujeitas a extremos de inundação e de seca, onde falta saneamento básico. Nas áreas urbanas a população estará ainda mais marginalizada, sem conseguir fazer parte da força de trabalho. Esse é um exemplo de efeito em cascata. Há uma erosão cultural da população, o que é praticamente um ponto de inflexão social.
Foi possível considerar a pandemia de covid-19 no relatório e sua influência sobre os impactos das mudanças climáticas?
Sim, a pandemia foi analisada. Ela escancarou e levou ao aumento da pobreza, das desigualdades; das múltiplas desigualdades. A pandemia mostrou que as populações tradicionais, indígenas, a população pobre no meio urbano, a população negra, as mulheres, as crianças, os idosos são os grupos mais suscetíveis e impactados. E existem grandes paralelos com os impactos e os riscos das mudanças climáticas já que são justamente nesses mesmos grupos em que primeiro sobrecaem, de forma muito mais dramática e imediata, os impactos das mudanças climáticas.
Como você vê a percepção das pessoas no Brasil (ou de grupos específicos) sobre a relação entre episódios (eventos) climáticos extremos e as mudanças climáticas?
A gente tem tido evidência sobre o Brasil – sobre o que a população pensa em relação às mudanças climáticas. A maioria da população, sobretudo as que dependem de atividades agrícolas, atividades extrativistas, pesca – essa população já está percebendo e já tem convivido e experienciado o que são as perdas econômicas e não-econômicas. Perdas como saúde, cultura e modo de vida atreladas aos impactos de extremos climáticos como alterações da sazonalidade, isso é, o período de plantio e colheita tem mudado. E essa mudança tem sido não só para se estabelecer um novo calendário, mas também tem mudado a cada ano. Então são perdas que não são esperadas, de modo que existe um grande grau de incerteza para os indivíduos com relação ao que fazer porque a cada ano você tem um comprometimento diferente e mais exacerbado. Por exemplo, ondas de calor têm sido experienciadas pela maior parte da população.
Agora eu vou falar de um estudo que está saindo e tem o professor David Lapola do Laboratório de Ciência do Sistema Terrestre da Unicamp como coautor. O estudo investigou, realmente, o que as pessoas em diferentes bacias hidrográficas no estado de São Paulo tem experienciado de impactos das mudanças climáticas. Mais de 97% das pessoas disseram que têm sentido e experienciado um aumento da temperatura, e isso consequentemente está afetando a saúde, o bem-estar, a renda, além de estarem lidando também com comprometimentos de infraestrutura.
Há medidas ou estratégias já adotadas no Brasil para a adaptação das pessoas às mudanças climáticas?
No país ainda não existem medidas de adaptação estabelecidas e implementadas em grande escala. O que a gente tem visto são adaptações autônomas de pessoas, comunidades, de indivíduos tentando se adaptar aos eventos e às mudanças climáticas. O que tem sido mostrado é que há um comprometimento nessa habilidade autônoma de resposta. Por isso é necessário institucionalizar e dar escala às estratégias de redução de risco no país, tanto para as pessoas como para a economia, porque a gente vai atingindo pontos onde em algum momento, como em relação à perda de ecossistemas, a ação humana não será capaz de repor serviços (ecossistêmicos) perdidos.
Que estratégias para aumentar a resiliência climática das pessoas e da natureza em nossos biomas podem ser citadas?
O que se mostra como estratégias factíveis é sobretudo para a população mais vulnerável. Sabemos que mecanismos de proteção social como Bolsa Família e Bolsa Floresta reduzem muito os riscos dos impactos da mudança climática. Reduzem a insegurança alimentar, hídrica, a proliferação de doenças e a aumentam a habilidade das pessoas em terem respostas. Outra estratégia é a realocação das pessoas através do próprio ordenamento territorial, que evita e tira as pessoas de situações de risco diário. E a gente também tem estratégias bem-sucedidas como o pagamento sobre serviços ambientais.
Há ainda soluções baseadas na natureza, trazendo biodiversidade para a recuperação do meio urbano, desde jardins filtrantes – que limpam, filtram a água – até a redução da temperatura atmosférica com o plantio de árvores.
Como as novas conclusões do IPCC interferem e/ou influenciam as pesquisas desenvolvidas por você?
Estou há mais de seis anos trabalhando junto ao IPCC porque eu fui autora do relatório (especial sobre o aquecimento) de 1,5ºC em 2018, e depois fiquei mais quase cinco anos participando do relatório atual (AR6) do Grupo de Trabalho 2. Então as minhas pesquisas têm sido muito vinculadas ao que eu desenvolvi para o IPCC, enfatizando que o IPCC faz a revisão da literatura, ou seja, traz o que a literatura tem mostrado. Minhas pesquisas continuam lidando com os limites de adaptação como tema central. Mais recentemente passei a trabalhar com pontos de inflexão sociais, o que tem sido estimulado sobretudo para a Amazônia. E também tenho trabalhado com a caracterização (tipologia) por tipo de perigo climático, população afetada e vulnerabilidade na Amazônia, trazendo tanto as perdas materiais como não-materiais associadas a perda do modo de vida, de identidade, de cultura, de saúde, e que estão muito vinculados à qualidade ecossistêmica ou do meio ambiente.
Em pesquisa recente realizada pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS-Rio) foi revelado que o brasileiro tem bastante interesse pelo tema das mudanças climáticas, mas em sua maioria (79%) considera que sabe pouco sobre o assunto. Quais as principais referências que você indicaria para as pessoas?
Realmente a gente precisa falar mais com as pessoas. Trazer mais a mudança climática para o dia a dia para que tenha escala e aderência à necessidade de adaptação urgente; para a redução de riscos.
Como sugestão vou fazer uma propaganda; vocês olharem um pouco o canal do IPAM. A gente tem promovido uma série de vídeos curtos (2-3 minutos) que falam especificamente sobre as mudanças climáticas. Por exemplo, agora estamos falando de justiça climática e trazendo especificidade sobre adaptação. O que seria mudança climática na prática. Então é bem ilustrativo sobre o que poderíamos falar e ter de ações em relação às mudanças climáticas.
Sugiro olharem no site do próprio IPCC, e seguirem também a professora Katharine Hayhoe, que é uma cientista climática, professora na Universidade Tecnológica do Texas e que escreveu um livro interessantíssimo, Saving Us (2021). Hayhoe fala muito sobre o papel das ciências sociais; o papel da gente poder falar uns com os outros e se conectar realmente com a mudança climática para entender que qualquer solução importa.
Sugiro também a gente olhar para o nosso próprio país. Pensar em pessoas e autores como Davi Kopenawa ou nas comunidades indígenas que deixaram sua literatura das evidências do grau de exposição que o modo de vida ocidental tem provocado nessas populações – o desenvolvimento econômico predatório – e ao mesmo tempo os impactos da mudança climática e como elas lidam com isso. E gosto também muito do Ailton Krenak.
Alguma mensagem final?
Gostaria de lembrar que esse relatório é fruto da literatura, da mensagem global do que a literatura tem dito, mas também é fruto de 270 autores – muitos deles mulheres, muitos deles jovens, muitos deles cientistas sociais, que é uma vertente de inclusão nova nos relatórios do IPCC. Eu queria que as pessoas atentassem, quando lerem o relatório, que se trata de um alerta do sofrimento humano às mudanças climáticas.
Então esse relatório é uma visão de cada um de nós, de cada cultura que a gente tem na medida do possível representada, e sobretudo uma busca por soluções para nossa humanidade. Eu queria que todos lessem esse relatório com isso em mente. Que essa é realmente uma mensagem dos autores da literatura científica sobre o estado da nossa habitabilidade no sistema terrestre, que é comum a todos. E lembrar que qualquer ação importa. Mesmo falar sobre isso já estará dando um passinho a mais sobre o estágio em que a gente se encontra e sobre a necessidade de reverter esse processo para evitar mais riscos, perdas de vida e de qualidade de vida na Terra.
Ouça episódio do podcast Oxigênio sobre o 6º relatório do IPCC:
Leandro Magrini é doutor em Ciências/Biologia Comparada pela USP e cursou a especialização em jornalismo científico do Labjor-Unicamp, sendo bolsista Mídia Ciência (Fapesp) do projeto “Divulgação científica para fortalecer a defesa pela preservação da Biodiversidade”