Por Cristiane Bergamini
Medir a passagem de cada momento com precisão foi uma necessidade histórica.
A contagem do tempo se faz de diversas formas e com o uso de inúmeras tecnologias. Para saber as horas, por exemplo, recorremos aos celulares, tablets, computadores e, claro, aos inúmeros formatos e modelos de relógios que funcionam à base de microchips, baterias e cristais. Na antiguidade, o homem media o tempo sem muitos artefatos, apenas de acordo com a própria sombra.
A necessidade de contar o tempo surgiu ainda na pré-história para o atendimento às questões mais básicas de sobrevivência e, pode-se dizer, tal necessidade continua atual. Nossos afazeres, lazer, trabalho e até mesmo o sono estão atrelados à contagem de tempo para cada atividade. No trabalho, por exemplo, o valor do serviço, ou seja, a remuneração, é medida pelo tempo de dedicação em horas. Pelas leis brasileiras, um trabalhador tem que ter uma dedicação de 44 horas semanais para receber o salário, cujo valor é mensurado por hora/dedicação.
Mas como contar o tempo? Como saber quanto tempo o tempo tem?
De acordo com a professora de história medieval do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Neri de Barros Almeida, estabelecer mecanismos de fração e contagem do tempo foi uma necessidade muito antiga entre os primeiros homo sapiens. “Penso em uma situação como a da caça, que exige duas coisas importantes. Em primeiro lugar, o afastamento de parte do grupo dos ninhos e, portanto, a diminuição da segurança – o que, necessariamente, impunha limites temporais à ausência dos caçadores. Em segundo lugar, cito a necessidade de coordenação das ações de caça de animais, geralmente mais fortes e velozes do que o homem. Essa limitação tornou essenciais táticas de cooperação para que o homem atingisse seus alvos nutricionais. Assim, a medição do tempo pode ter surgido por causa da necessidade de melhorar os níveis de cooperação altruísta entre os homens que é, segundo o biólogo norte-americano Edward Wilson, a verdadeira chave que explica a sobrevivência de nossa espécie”.
Os registros históricos mostram que a primeira forma de identificar o período do dia era pela posição do sol – a sombra formada em relação a um objeto na superfície da terra. Primeiramente, a observação era pela própria sombra do homem, até que se percebeu que uma vareta fincada na terra proporcionava o mesmo efeito, ou seja, conforme a posição do sol e a sombra causada pela vareta era possível estabelecer o momento do dia no qual se estava. Nos períodos da manhã e no fim de tarde a sombra era mais longa e exatamente ao meio dia ficava bem curta. Esse foi o primeiro tipo de instrumento de medição do tempo, surgido há 1.500 anos a.C., o mais antigo que se tem registro, chamado de relógio de sol ou Gnômon.
Em 1.400 a.C. surge o relógio de água, ou Clepsidra. Com o mesmo princípio da ampulheta, mas movido à água, funcionava por gravidade, com o auxílio de uma boia ligada a um ponteiro.
No século VIII surgem outros dois sistemas: o relógio de vela, que nada mais era do que uma vela normal com marcações escalonadas em que o tempo era marcado pela velocidade com que a vela era queimada. Era usado principalmente à noite e, assim, tinha duas funções à época, marcar o tempo e produzir luz. O outro instrumento que surge nesse mesmo período foi o relógio de areia que, através de dois cones com uma passagem bem estreita, permitia saber o tempo pelo caminho que a areia percorria de um recipiente ao outro. É a ampulheta.
Todos esses modelos, no entanto, estavam com o tempo contado, pois apresentavam problemas e não garantiam a precisão necessária para a medição do tempo. Era apenas uma ideia indicativa do momento do dia naquele determinado instante. Além disso, havia o desgaste natural do instrumento e o atrito com o meio em que se encontrava, água ou areia. E, ainda, a natureza não contribuía muito para tal precisão, pois, como bem se sabe, os dias não têm a mesma duração em determinadas épocas do ano, e o movimento do sol varia de acordo com as estações.
A precisão era cada vez mais desejada. Em 1656, é criado pelo holandês Christiaan Huygens um sistema que utiliza pesos para o fornecimento de energia e movimentação dos ponteiros. Trata-se do relógio de pêndulo, existente até hoje – mais por suas características artísticas, estéticas e culturais, do que pela própria precisão. Esse modelo foi estudado por Galileu Galilei pela regularidade da movimentação dos pêndulos.
No século XX, os relógios de quartzo superam os pêndulos no quesito precisão. O funcionamento se dá por pequenos cristais de quartzo que vibram, gerando impulsos elétricos quando colocados a uma pressão física ou guiados por uma corrente elétrica. A precisão é ainda maior do que a dos relógios mecânicos, que surgiram no final da Idade Média, por volta do século VII, causando grande impacto social, associados às torres das igrejas, se contrapondo aos sinos.
De acordo com a historiadora Neri, o sino, à época, impunha um ritmo mais lento ao tempo, soando de acordo com as horas canônicas. Essas horas não são precisas em sua repetição diária, uma vez que obedecem ao ciclo de iluminação natural, que varia segundo as estações do ano, e não obedecem a critérios matemáticos de fração interna de cada jornada. Por sua vez, o relógio mecânico (que inicialmente contava apenas com o ponteiro das horas), trouxe uma precisão que leva a pensar que eles realizaram uma verdadeira revolução no cotidiano. Essa revolução teve enorme impacto na capacidade de planejamento e cálculo do valor das atividades diárias. O tempo se torna, assim, objeto de negociação, conclui Neri.
Transformações no mundo e a regulação do tempo
Ainda de acordo com a professora, o relógio que surge no século XIII – como mostra o historiador Jacques Le Goff – repercute as transformações no mundo do trabalho e do comércio, que demandam um controle mais preciso do ritmo da atividade humana. “Até o século XIX, a reunião e organização da força de trabalho é promovida por outros mecanismos – como o sistema de moradia de trabalhadores e os sistemas coletivos de controle do tempo: sinos, apitos das fábricas, relógios das igrejas. O relógio afirma o nascimento da ideia de que o homem é primeiramente um produtor, e que a finalidade da vida humana é gerar e consumir produtos”, analisa Neri. Nessa época é criado o relógio de pulso, que se populariza, no entanto, durante a Primeira Guerra Mundial como um instrumento prático, aliado aos soldados.
O filósofo e professor da Faculdade de Educação da Unicamp, Régis de Morais, explica que, com a complexificação das sociedades e setores civilizatórios, o uso científico (com base em meridianos) das divisões horárias se fez cada vez mais importante; e possibilitou uma organização comportamental mais precisa – e os relógios (mais modernamente) a serem fontes de ansiedade.
Com os novos instrumentos que atribuíam maior precisão na medição do tempo surgem também os cronômetros, que auxiliaram os sistemas de navegação. E, em 1970, são criados os relógios digitais, que funcionam à base de energia elétrica fornecida por uma bateria. Popularizou-se tanto, devido ao seu tamanho e preço, que hoje acompanha diversos equipamentos eletroeletrônicos como o telefone celular e micro-ondas.
Porém, na década de 1950, surge uma nova forma de medição de tempo, e que foi, a partir de 1967, considerada como a definição internacional de tempo, pois atrasa somente um segundo a cada 65 mil anos. É o relógio atômico, cujo funcionamento é baseado nas trocas de energia que acontecem no interior do átomo.
A precisão ficou, então, muito próxima à perfeição. O relógio de pulso, à base de quartzo, fornece 32.768 pulsos elétricos por segundo para um microchip, que é abastecido pela energia de uma bateria. A margem de erro não chega a mais que um milésimo de segundo – enquanto os melhores aparelhos mecânicos atingiam 1 décimo de segundo ao dia.
Tempo e filosofia
Tantos estudos, pesquisas e tempo dedicados para atingir a maior precisão garantiu inúmeros benefícios para a humanidade, mas, no contraponto, trouxe também a dependência, servindo como instrumentos de controle. “O relógio se tornou um fator de adoecimento. Seu ritmo inumano se prova a cada dia inadequado, ou mesmo incompatível, com a vida humana. A compartimentação do tempo e das tarefas tem nos dilacerado. Chegamos a um impasse. Estamos no momento de – sem precisar pensar em queimar relógios – dar um belo passo atrás e afirmar que queremos programar nossos relógios para que se tornem objetos simpáticos à vida humana. Para que isso aconteça, temos de mexer no sistema de trabalho, de produção, de consumo, na tecnologia, nas prioridades da produção do conhecimento científico e, sobretudo, em nossa filosofia de vida – só precisamos de tempo para isso”, argumenta a professora Neri de Barros.
“Fazemos hoje, em cada um de nossos dias, dizem os antropólogos, o que a humanidade pré-tecnológica (até o século XVIII) fazia em um mês e meio. Para grande parte da humanidade, a contagem do tempo é desesperadora”, aponta o professor Régis.
Cristiane Bergamini é formada em comunicação social (PUC Campinas), com mestrado e doutorado em planejamento de sistemas energéticos (Unicamp). Atualmente é aluna do curso de especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).