Para além da saúde mental na escola

Por Maria Clara Rabelo

No contexto escolar não basta falar em saúde mental é preciso ir além. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) definem saúde mental como algo mais do que a ausência de transtornos mentais ou deficiências. Ela é parte integrante e essencial da saúde que é representada por um estado de bem-estar no qual um indivíduo pode realizar suas próprias habilidades, lidando com as tensões normais da vida, podendo trabalhar de forma produtiva e sendo capaz de contribuir com a sua comunidade.

Com o aumento no número dos diagnósticos de transtornos mentais entre crianças e adolescentes em idade escolar, cresce a demanda por informação e formação para os profissionais escolares a fim de que possam contribuir de forma segura e efetiva para a aprendizagem e qualidade de vida desses estudantes.

Mas, o que são esses transtornos mentais? A psicóloga Célia Balian distingue problema mental de transtorno mental e explica que o primeiro inclui em sua definição as situações passageiras de tensão mental intensa e de difícil adaptação, como a perda de pessoas, divórcio dos pais etc.; já o segundo caracteriza-se por uma síndrome que envolve perturbação cognitiva, comportamental ou reguladora emocional, acarretando em prejuízos ao sujeito que demandam a intervenção profissional.

A quinta versão do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-5) esclarece que a definição dos transtornos mentais parte de uma relação com normas e valores culturais, sociais e familiares, tendo em vista que os limites entre a normalidade e patologia variam em diferentes culturas com relação a tipos específicos de comportamentos. Logo, a avaliação diagnóstica deve partir da condição de que as experiências, os sintomas e os comportamentos individuais, se diferentes das normas socioculturais, podem conduzir aos problemas e às dificuldades de adaptação nas culturas de origem e nos contextos sociais ou familiares aos quais pertencem.

De acordo com a American Psychiatric Association (APA), essa última versão do manual foi elaborada com a finalidade de atender às necessidades de clínicos, pacientes, famílias e pesquisadores por descrições claras e concisas dos transtornos mentais, organizando-as a partir de critérios diagnósticos que vêm acompanhados de informações sobre fatores de riscos, características associadas, avanços em pesquisa científica e de diferentes expressões do transtorno – abordando as medidas dimensionais que permeiam os limites diagnósticos.

A médica pediatra Beatriz Ferreira, explica que o DSM é um instrumento desenvolvido pela psiquiatria a partir dos anos 1950 para classificar e catalogar as pessoas em diferentes nichos com relação à doença mental e aponta riscos que o circundam: autodiagnóstico, podendo comprometer o exercício profissional da medicina; catalogação de comportamentos e tendência à patologização. Ela o apresenta como padrão participativo de uma lógica onde é preciso criar doenças e apresentar tratamentos para o consumo, ponderando que sua crítica não é direcionada aos medicamentos ou tratamentos em si, os quais considera como avanços e necessários, mas sim às formas de uso que deveriam respeitar a individualidade de cada paciente avaliando-os um a um.

Em 2019, a Revista Nova Escola, abordou a medicalização excessiva entre estudantes com diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção (TDA) e constatou que, num período de dez anos, o uso de medicamentos entre crianças e adolescentes em idade escolar cresceu 775% – um índice alarmante que chama atenção para os critérios de diagnóstico associados à saúde mental, sugeridos pelo DSM-5, que se baseiam na simples frequência de sintomas.

Para a socióloga Tatiana Barbarini, a publicidade em torno dos transtornos, medicamentos e pesquisas financiadas por laboratórios farmacêuticos fazem com que a medicalização ainda seja uma tendência. A essa constatação soma-se o agravante de que na sociedade atual, não é permitido a dor ou o sofrimento, bem como se exige um aumento de performance – casos para os quais a Ritalina, principal medicamento para o tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), também vem sendo utilizada.

Em 2011, a reportagem Diferentes Perspectivas sobre um mesmo tema, publicada no dossiê Transtornos Mentais da ComCiência, abordou a reformulação do DSM, cuja quarta e última versão havia sido publicada em 1994. Definitivamente publicado em 2013, o número cinco, é a mais recente versão do manual e constitui-se no principal subsídio teórico no qual os profissionais da saúde se pautam para a realização de diagnósticos médicos relacionados às doenças e transtornos mentais.

Entretanto, o diagnóstico médico já não é mais o único caminho para o acompanhamento da saúde mental de crianças e adolescentes no ambiente escolar. Atualmente, para a observação e desenvolvimento de ações pedagógicas junto aos estudantes da Educação Básica, os profissionais da educação contam com uma nova aliada, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Em 2018, a versão definitiva desse documento foi publicada estabelecendo entre as suas normativas o desenvolvimento das chamadas competências socioemocionais que, devido à possível contribuição para o desenvolvimento individual e coletivo dos estudantes em suas dimensões humanas e nas relações delas decorrentes, são vistas como estratégias válidas para as práticas relacionadas à prevenção e tratamento da saúde mental na escola.

A expressão educação socioemocional vem da língua inglesa social and emotional learning (SEL) e foi proposta em 1994, quando um time de especialistas das áreas da saúde e da educação conhecido por Collaborative for Academic, Social and Emotional Learning (CASEL) apresentou uma classificação que continha cinco competências socioemocionais fundamentais: autoconhecimento, consciência social, tomada de decisões responsável, habilidade de relacionamento e autocontrole.

Nesse contexto, Barbarini coloca o trabalho com as competências socioemocionais como alternativa viável, desde que com os cuidados necessários para que se evite a criação de novos padrões e novos rótulos.

Uma preocupação compartilhada por Ferreira que questiona o papel do educador nesse processo: quando lhe é apresentado um programa que vai girar em torno das competências, como ele vai considerar as incompetências? O incompetente será considerado doente mental? Quem determina as competências? As competências socioemocionais dos alunos serão colocadas na roda, mas e aquelas do educador? Por esse viés, além do desserviço às questões da saúde mental na escola, também poderia ocorrer um aumento do que a psiquiatria chama de Síndrome de Burnout que, mais do que a exaustão, trata-se da perda de desejo por parte dos profissionais, nesse caso, os professores.

Balian afirma que a escola precisa se reorganizar e abrir novos espaços para os estudantes, sendo que a Base oportuniza uma nova forma de ensinar, possibilitando um estudante mais crítico, colaborativo e que possa experimentar e refletir em relação aos seus sentimentos e emoções. Desta forma, os educadores podem abrir espaços de conversa, de escuta e de reflexão em relação às dificuldades do mundo de hoje. Vivências desse tipo podem fazer a diferença em relação aos estudantes com ansiedade e depressão.

Na prática diária, o desenvolvimento do que é proposto pelo documento ainda não funciona como deveria, afirma a diretora escolar Melissa Junqueira – ressaltando que ainda não pode mensurar seu impacto, por tratar-se de um período de transição.

A assessora pedagógica Mariah Tagliatti acredita que as competências socioemocionais vêm para ajudar de forma positiva nessas e em outras questões, pois os alunos terão mais oportunidade de ter voz ativa, as individualidades serão respeitadas, suas potencialidades reconhecidas e as diferenças valorizadas. Além da oportunidade que terão de se autoconhecer e conhecer o outro através da empatia e cooperação.

Desde a publicação da BNCC, os discursos se acirraram em torno da atenção dispensada à formação integral de crianças e adolescentes, reforçando a importância e a complexidade do tema da saúde mental no contexto escolar, cujos desdobramentos e implicações não estão limitados às questões educacionais e de saúde pública. Ao referenciar tanto os aspectos cognitivos, quanto os socioemocionais da educação, o documento atribui às equipes gestoras e pedagógicas das escolas, bem como aos próprios familiares e à sociedade como um todo, o papel de assegurar o desenvolvimento dos estudantes da Educação Básica em suas múltiplas competências.

Nesse sentido, Tatiana enfatiza a necessidade de que gestores escolares e outros profissionais da educação busquem por orientações, informações e conhecimento para a mediação das situações relacionadas à saúde mental na escola.

Essa mediação é classificada por Beatriz como a maior responsabilidade dos gestores escolares e deve estar pautada no interesse e na busca por informações e conhecimento. Para elucidar essa importância ela esclarece que em situações de encaminhamento de estudantes para profissionais da saúde por evidências de que os mesmos necessitem de atenções, acompanhamentos e possíveis diagnósticos relacionados ao comprometimento de suas saúdes mentais, o gestor deve ter alguma noção sobre o que faz, uma vez que tem responsabilidades atribuídas. Precisa refletir quando, para quem e como fará um encaminhamento, ressaltando que também lhe cabe o discernimento de que antes de qualquer providência é preciso conversar com o aluno a partir da posição de quem não sabe o que se passa e esperar que o aluno diga o que sabe sobre sua dor, o que pode dar espaço para que algo possa ser construído.

Balian esclarece que cabe ao gestor escolar apoiar não só ao estudante que está demonstrando um comportamento vulnerável, mas também ajudar seu grupo de professores, propiciando espaços de estudo e reflexão sobre os transtornos mentais na escola. E, ressalta que os espaços de formação são fundamentais para ajudar a desmistificar o assunto.

Tagliatti também destaca o papel gestor frente a organização de formações continuadas, levando conhecimento científico aos professores, oportunizando reflexões sobre os temas e promovendo palestras e cursos com profissionais da área.

Um exemplo desta ação vem de Junqueira que menciona os momentos de Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC) como espaços para reflexão sobre a saúde mental dos estudantes, atribuindo à atuação do professor o papel de ator principal no processo de identificação e acompanhamento dos casos individuais, uma vez que lhe cabe o papel de observação próxima e atenta dos estudantes em sala de aula.

No cotidiano escolar, os professores são aqueles que se encontram mais próximos aos estudantes e por essa razão possuem a oportunidade de observá-los em diferentes contextos de aprendizagem, o que lhes permite conhecê-los e identificar possíveis casos que demandem por atenção com relação às questões de saúde mental.

Além de observadores, Tagliatti ressalta que os professores também precisam ser observados pelos gestores para que sejam subsidiados com informações e conteúdos, bem como auxiliados através de conversas e orientações que salientem os aspectos da prática do docente.

Atender às especificidades de um diagnóstico sem prejuízo à rotina escolar, à ação pedagógica ou à aprendizagem coletiva não são tarefas fáceis, segundo Balian. O educador precisa interagir de forma criativa e motivadora, fomentando autonomia do estudante. Cabe a ele combater o estigma, evitando a segregação do mesmo e discutir o assunto saúde mental, criando espaços de fala, dúvidas etc.

A gestão escolar tem se deparado com situações difíceis e para enfrentá-las é preciso formar a equipe docente no tema. Dessa forma, essas questões deixarão de serem vistas como bicho de sete cabeças e temas como depressão, ansiedade e tratamento psiquiátrico deixarão de ser considerados temas tabus pela comunidade escolar, conclui a psicóloga.

Para saber mais:

American Psychiatric Association (APA)

Base Nacional Comum Curricular – educação é a base (BNCC)

Collaborative for Academic, Social and Emotional Learning (CASEL)

Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS)

Déficit de atenção: há um excesso de medicalização (Revista Nova Escola)

Diferentes perspectivas de um mesmo tema (ComCiência)

OPAS/OMS apoia governos no objetivo de fortalecer e promover a saúde mental da população (OPA/OMS)

 

Esse artigo é resultado do trabalho apresentado para obtenção do título de especialista (MBA) em Gestão Escolar, “Saúde Mental no Contexto Escolar: O papel gestor do diagnóstico ao acompanhamento” – Maria Clara Vieira Jacheta Rabelo, em dez./2019 (ESALQ/USP).