Por Alanis Mahara
No debate contemporâneo, a aplicação do pânico moral se relaciona com as fake news, apoiadas na estigmatização de pautas sociais para propagar mensagens fraudulentas e interferir em disputas políticas.
O fenômeno do pânico moral foi observado na década de 1970 pelo sociólogo Stanley Cohen, que publica a obra Demônios populares e pânicos morais, um estudo da reação da sociedade britânica diante de um comportamento desviante. No contexto, grupos sociais como Mods e Rockers, refugiados, lésbicas e mães solo eram alvos de notícias exageradas e manipuladas e tinham seus comportamentos estigmatizados. Baseado nesse contexto, o autor cria o conceito de pânico moral para caracterizar a forma como a mídia, a opinião pública e os agentes de controle social reagem a determinados rompimentos de padrões normativos.
Na ativação desse preceito, atuam ao menos três instâncias fundamentais para a popularização do pânico. Uma condição, um episódio, uma pessoa ou um grupo de pessoas passa a ser definido como um perigo para valores morais vigentes; seus traços são apresentados de forma estilizada e estereotipada pela mídia de massa; o tema é especulado sob a ótica do caráter moral por editores, bispos, políticos e pessoas interessadas em pautas conservadoras; o tema ganha notoriedade e espaço na opinião pública e então criam-se alternativas de combate ao fato anunciado. Esses agentes desviantes também são alvo de um olhar estereotipado responsável pela criação dos chamados “demônios populares”, como Cohen define. Algumas vezes, a narrativa que cria esses “demônios” é passageira, mas, em outras, ganha repercussões mais sérias e duradouras e pode produzir “mudanças tais como aquelas em política legal e social ou até mesmo na forma como a sociedade se compreende”.
Inicialmente, o conceito se aplicava ao ramo da criminologia, mas se expandiu ao longo dos anos para outras áreas, sem deixar de seguir alguns códigos. Assim, três são os pontos que acionam o pânico moral: a grande especulação de um tema gerido por um conjunto de mídias; um grupo que deseja mudar normas sociais e suas aplicações e; por último, um grupo ou comportamento que será hostilizado e submetido à indignação coletiva.
No tripé estabelecido por Cohen, os veículos de comunicação de massa ocupam um lugar centralizante na propagação do pânico, porque capturam as imagens ligadas a um fato ou grupo social e as submetem à distorção e ao exagero. A forma e o conteúdo dos boatos são importantes porque servem para validar um determinado posicionamento diante de mudanças sociais, incitando uma postura violenta, além de manipular narrativas eleitorais e intervir em projetos de leis que reivindicam pautas ligadas às transformações sociais de cunho progressista.
A construção do pânico moral é objeto de estudo no Brasil atribuído principalmente às pautas que competem à sexualidade e ao estudo de gênero. Não por acaso, as falsas notícias, frequentemente disseminadas por agentes conservadores, acionam discussões sobre casamento gay, aborto ou estudo de gênero nas escolas. Esses importantes debates perdem, na construção das fake news e do pânico moral, sua dimensão histórica, pois relatam episódios da maneira mais simplificada e maniqueísta possível, impossibilitando qualquer diálogo com perspectivas concorrentes. Além desse muro levantado contra discussões progressistas, os boatos e as fake news criam a sensação de que “algo deveria ser feito” a respeito de indivíduos ou comportamentos desviantes. Segundo Cohen, essa mobilização fortalece o aparato de controle social, ou seja, cria hostilidade na esfera pública e privada a determinado estilo de vida.
A obra de Cohen, mesmo depois de décadas, se mostra como influente guia para entender a manipulação de narrativas com o intuito de barrar transformações sociais. Atualmente o projeto de lei apresentado no Senado, o PL 2.630/2020 – ou Lei das Fake News, aborda mudanças na forma como fatos noticiosos são difundidos na internet e levantam novamente debates sobre a regularização das mídias.
A leitura de Demônios populares e pânicos morais apresenta conceitos presentes no debate público e se torna indispensável por estruturar um fenômeno que até hoje se mostra como objeto de crise na sociedade. A obra não foi publicada em português, sendo mais divulgada por meio de artigos que se utilizam do conceito para entender o fenômeno no atual contexto social brasileiro.
Cohen, S. Folk devils and moral panics. London: Routledge, 2004.
Alanis Mahara cursa Artes Cênicas (Unicamp), jornalismo e é bolsista Labjor (BAS-Unicamp)