Por Raquel Torres
Discriminação ganhou outros contornos com a covid-19. Ainda que de modo bastante diferente do preconceito sofrido por indígenas e negros, os asiáticos foram alvo ao longo de toda a história do país.
Postagens ofensivas nas redes sociais, agressões a chineses no metrô, nas ruas e em espaços públicos, proibição da entrada de asiáticos em determinados lugares. A isso se somam declarações de autoridades do governo brasileiro, como a do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que afirmou, simulando um sotaque de um oriental falando português, que os chineses sairiam fortalecidos na geopolítica mundial após a crise decorrente da pandemia.
Mesmo que a origem do novo coronavírus não seja certa, o fato de em Wuhan terem sido registrados os primeiros casos de covid-19 fez com que os chineses fossem estigmatizados e os casos de preconceito contra orientais aumentassem. A pandemia não criou, mas intensificou e revelou a discriminação contra asiáticos, pouco debatida no Brasil.
Como resposta aos ataques contra chineses, diversas iniciativas foram pensadas e implementadas. A fundadora da Pula Muralha, empresa de educação em língua e cultura chinesa, Si Liao, e seu co-fundador, Lucas Brand, constataram aumento de comentários ofensivos e racistas e promoveram, no Brasil, a campanha #EuNãoSouUmVírus, já iniciada em outras partes do mundo.
O Instituto Sociocultural Brasil China (Ibrachina) lançou o Observatório do Coronavírus, diariamente atualizado com notícias sobre a pandemia, a fim de divulgar informações confiáveis, e combater as fake news. O instituto criou também uma central de denúncias, com o objetivo de receber os relatos e encaminhá-las a autoridades para que sejam tomadas as medidas cabíveis contra o racismo.
Histórico da imigração chinesa no Brasil
A chegada do vapor Malange, vindo de Portugal, ao porto de Santos, no dia 15 de abril de 1900 marca oficialmente a entrada dos chineses. Embora essa data tenha sido a escolhida para celebrar o dia nacional da imigração chinesa no Brasil, há dados que comprovam que a chegada foi muitos anos antes.
Apesar de a maioria dos poucos trabalhos acadêmicos apontarem o ano de 1812 como o início da imigração chinesa ao Brasil, há indícios da presença de trabalhadores chineses na exploração de ouro em Minas Gerais durante o século XVIII, provavelmente provenientes do sul da China, como comenta Eric Vanden Bussche, doutor em história, especialista em China moderna e contemporânea da Universidade de Stanford (EUA) e professor assistente na Universidade de Tokyo. Graças ao comércio ultramarino português, havia fluxo de pessoas e produtos entre Brasil e Macau durante o período colonial. Durante o século XIX, houve várias tentativas do governo, agricultores e comerciantes brasileiros de trazer trabalhadores chineses ao Brasil para suprir a carência de braços na agricultura. Em 1879, o Brasil chegou a enviar uma missão diplomática com o intuito de negociar um tratado com a dinastia Qing. Esse tratado chegou a ser assinado e ratificado em 1881-82, mas sem uma cláusula específica que garantiria a emigração chinesa ao Brasil. Apesar dessas tentativas, o número total de chineses que chegaram ao Brasil durante a segunda metade do século XIX não ultrapassou dois ou três mil imigrantes.
Há diversos motivos para o fracasso dessas tentativas, tanto do lado chinês, quanto do brasileiro, como esclarece o professor Bussche. Na China, havia o temor de que os chineses fossem submetidos a um regime de semiescravidão, uma vez que relatos detalhando as péssimas condições de trabalho na América Latina – em especial no Peru e em Cuba – circulavam na corte Qing. Além disso, havia também problemas com os altos custos do transporte.
A imigração chinesa, de acordo com o pesquisador, também foi um tema bastante controverso no Brasil. Na época, havia um grande debate sobre a formação do povo brasileiro. Muitos políticos, intelectuais e jornalistas contrários à essa imigração apresentavam argumentos ancorados em teorias racistas, em voga na época. Eles diziam temer que a introdução de um grande número de chineses no Brasil fosse uma ameaça para as instituições econômico-sociais. Desse modo, a imigração chinesa não se caracterizou como um grande fluxo migratório, e apenas atingiu números expressivos a partir do final da década de 1990.
Xenofobia: possíveis leituras
Pelo que nos aponta a história, diversas foram as tentativas fracassadas da imigração chinesa ao Brasil, tanto pelo medo dos chineses de viverem aqui em difíceis condições, quanto pelo receio dos brasileiros que ecoavam razões e teorias racistas bastante naturalizadas na época.
“A xenofobia contra chineses é antiga. O historiador Luis Felipe Alencastro argumenta que as práticas da vida privada no Brasil colônia definiram, de antemão, o que era ser brasileiro e as concepções de vida eram impostas aos que aqui chegavam, a partir dos critérios racistas da corte e da aristocracia”, afirma Allan Rodrigo de Campos Silva – doutor em geografia humana, e pesquisador do Laboratório de Geografia Urbana (Labur-USP) e do Observatório das Migrações no Estado de São Paulo (PUC-SP) – reconstituindo um pouco da história e do processo de formação do povo brasileiro.
De acordo com o pesquisador, a proibição do tráfico negreiro aconteceu em meio à formulação de uma política imigrantista para a colônia brasileira. Essa política defendia abertamente o embranquecimento da população brasileira, a partir da mobilização de imigrantes italianos, alemães, poloneses. De partida, a inserção das pessoas escravizadas como colonos foi vetada com a Lei de Terras (1850), ao mesmo tempo em que os entraves para imigrantes asiáticos eram construídos.
O império se alimentou do racismo para colocar em movimento suas políticas de imigração e colonização. Em 1857, tomou lugar na Câmara dos Deputados um debate sobre a imigração asiática para o Brasil que sintetiza essas posições: africanos eram vistos como bárbaros e asiáticos como indolentes. Somente em 1892, foi promulgado um decreto que autorizou a imigração de chineses e japoneses ao Brasil.
“A forma como o brasileiro vê o japonês ou o chinês foi, portanto, cozida neste caldo. Assim, a história do Brasil está relacionada à construção de um imaginário que deseja um Brasil branco e católico e que acaba por definir previamente todos os imigrantes que não são brancos e católicos como indesejáveis, apesar das particularidades para a recepção de cada nacionalidade. A partir desse critério xenofóbico, qualquer desculpa vale para justificar práticas racistas: desde as diferenças culturais e linguísticas, passando pelo higienismo até a eugenia”, complementa Campos Silva.
Raquel Torres é formada em comunicação (USP) e estudante de letras (IEL-Unicamp).