Paleoclimatologia busca desvendar o passado das mudanças climáticas

Por Tatiana Jorgetti Fernandes

Foi investigando o clima do passado que o cientista Wallace Broecker percebeu indícios da mudança climática provocada pelo homem. Broecker foi responsável pela primeira publicação científica em que aparece o termo ‘aquecimento global’, em 1975.

Quando ouvimos falar sobre mudanças climáticas, sem hesitar pensamos no atual aquecimento global que vivenciamos. Apesar de essa mudança atual ser comprovadamente causada pelo homem, o clima da Terra já mudou muito em função de variações naturais experimentadas ao longo dos seus bilhões de anos.

Olhar para o passado nos permite entender como o clima mudou ao longo do tempo, quais foram os gatilhos dessas mudanças e as respostas dos ecossistemas. Um profundo conhecimento sobre as variações do clima da Terra nos permite separar os processos climáticos naturais daqueles gerados pelo ser humano.

Foi justamente investigando o clima do passado que o cientista Wallace Broecker percebeu indícios da mudança climática provocada pelo homem. Ele foi responsável pela primeira publicação científica em que aparece o termo “aquecimento global”, em 1975[1] e, desde então, esse termo foi popularizado. Sua hipótese, hoje comprovada, era de que um acelerado aquecimento ocorreria nas próximas décadas em função do aumento exponencial dos gases de efeito estufa.

Mas o que difere o estudo do clima do passado e o estudo do clima do presente?

Atualmente definimos o clima através das condições do tempo acumuladas em um intervalo de pelo menos 30 anos, obtidas por medições instrumentais. As coletas de dados de temperatura, pressão, chuva, ventos e muitas outras variáveis é bastante recente, iniciada há alguns séculos e amplamente disseminados a menos de 100 anos. Apesar da grande relevância de todas as informações climáticas atuais, elas representam uma ínfima parte da história do clima da Terra.

Antes disso a natureza se encarregou de guardar muito bem tudo o que aconteceu no passado, e alguns cientistas se empenham em buscar esses vestígios naturais para, a partir deles, inferir como era a temperatura e o regime de chuvas muito antes de existirem termômetros e pluviômetros – na realidade, muito antes de o homem habitar a Terra.

Essa é a tarefa da paleoclimatologia, ciência que busca descrever a história do clima, de centenas a milhões de anos atrás. Para alcançar esse objetivo é necessário um esforço multidisciplinar de geólogos, geofísicos, oceanógrafos, glaciólogos, biólogos, químicos, arqueólogos, paleontólogos, geógrafos, astrônomos, meteorologistas e matemáticos.

A importância da paleoclimatologia para compreensão da atual mudança climática e seus impactos sempre foi bastante clara para os cientistas do clima. Desde o primeiro relatório de Avaliação Científica das Mudanças Climáticas do IPCC, em 1990[2], um dos capítulos já era dedicado especificamente a essa área.

Da herança na natureza aos avanços científicos e tecnológicos

As marcas do clima do passado estão registradas de muitas maneiras na natureza em indicadores ambientais, conhecidos como proxies. Esses registros geológicos são medidas indiretas do clima passado, que podem ser analisados e relacionados com parâmetros climáticos ou ambientais.

Normalmente os proxies mais conhecidos são os anéis de árvore e os testemunhos de gelo, mas pistas do clima do passado podem ser encontradas em muitos outros indicadores como documentos históricos, sedimentos de lagos e oceanos, rochas de cavernas, corais, entre outros.

Os proxies são encontrados na superfície continental, no fundo dos oceanos, no topo de montanhas e em todas as latitudes, fornecendo informações do passado em todo o mundo. Suas características físicas, químicas ou biológicas são analisadas e podem conter informações representativas de diversos parâmetros climáticos e em diferentes escalas de tempo.

Os anéis de árvores fornecem informações dos padrões de chuva e temperatura de cada ano – desde o presente até mais de mil anos – pois essas condições climáticas influenciam o crescimento da árvore. Os testemunhos de gelo guardam informações da temperatura e indícios da composição da atmosfera, uma vez que aprisionam bolhas de ar de períodos que podem chegar a centenas de milhares de anos. Sedimentos marinhos podem revelar quanto gelo existia no mundo e como a temperatura variou, resguardando vestígios das características da fauna e da flora de milhões de anos atrás.

Exemplos de proxies climáticos. Fonte: National Centers for Environmental Information – National Oceanic and Atmospheric Administration

Além dos proxies, a paleoclimatologia conta com outra importante ferramenta, os modelos climáticos, que são representações matemáticas dos principais componentes desse complexo sistema (atmosfera, superfície continental, oceano, gelo) e de suas interações.

Modelos bastante complexos desenvolvidos nas últimas décadas com modernos recursos computacionais são capazes de representar como era o clima do passado. Essas representações, conhecidas como simulações climáticas, são verificadas com os proxies e, à medida em que temos maior quantidade e mais detalhes das informações do clima do passado, os modelos são melhorados.

Os mesmos modelos que são utilizados e aprimorados para representar o clima do passado também são usados para prever o clima do futuro e mostram-se ferramentas cada vez mais robustas e confiáveis. As simulações paleoclimáticas têm contribuído muito para um melhor entendimento dos sistemas naturais, levando em consideração sua multidisciplinaridade[3]. Avanços no entendimento da sensibilidade climática às alterações de dióxido de carbono (CO2) na cobertura de gelo, no nível do mar, na ocorrência de eventos climáticos extremos, no abastecimento de água e nos ecossistemas são exemplos de contribuições da modelagem paleoclimática. Além disso, os resultados dos modelos paleoclimáticos fornecem maior detalhamento espacial e temporal da história do clima, preenchendo as lacunas deixadas pelos proxies.

Ilustração de como o modelo climático representa a atmosfera e um supercomputador utilizado para executar bilhões de operações durante as simulações climáticas
Fontes: MIT e Nasa 

Um pouco da história do clima

Os proxies aliados aos modelos paleoclimáticos proporcionam a reconstrução da história do clima da Terra, que permite compreender como e por que as mudanças climáticas naturais aconteceram.

Hoje são bastante conhecidos diversos gatilhos que provocaram mudanças no clima, sendo um dos principais a diferença na quantidade de energia do Sol que a Terra recebe. Essa diferença pode ser gerada por alterações na atividade solar ou por variações dos parâmetros orbitais da Terra, que afetam a quantidade e a distribuição da energia que chega no planeta. Os ciclos dos parâmetros orbitais da Terra foram responsáveis pelos principais períodos de aumento e retração de gelo sobre a superfície da Terra, conhecidos como períodos glaciais e interglaciais, na escala de dezenas de milhares de anos.

Mudanças climáticas naturais também podem ser originadas da movimentação das placas tectônicas, através de alterações na distribuição dos continentes e oceanos, formação de cadeias de montanhas ou variações na composição da atmosfera, por exemplo em períodos de atividade vulcânica muito intensa.

Além de explicar a origem das mudanças climáticas, a paleoclimatologia também investiga como essas mudanças evoluem com o tempo, e quais são os impactos gerados por elas, como é o caso da relação entre temperatura e CO2, importante gás de efeito estufa. A reconstrução de séries globais históricas dessas duas variáveis aponta para uma forte relação entre elas, onde períodos mais quentes sempre acompanharam um aumento de CO2.

Embora o principal gatilho dos períodos glaciais-interglaciais seja a mudança da energia solar recebida, as alterações na concentração atmosférica de CO2 desempenham um papel fundamental na evolução desses períodos[4]. O CO2 amplifica o sinal climático através de um mecanismo de retroalimentação, em que o aquecimento provoca a liberação de CO2 para a atmosfera enquanto o próprio CO2 é responsável por aumentar o aquecimento.

A forte evidência paleoclimática de que o clima é sensível às variações de CO2 preocupa os climatologistas, pois a concentração atual de gases de efeito estufa é a maior dos últimos 800 mil anos, de acordo com análises de testemunhos de gelo[4]. A taxa de aumento desses gases é a maior registrada nos últimos 22 mil anos[4], atual período interglacial em que ocorreu um significativo aquecimento da Terra após o Último Máximo Glacial, que ocorreu há 21 mil anos.

Evolução da temperatura e do CO2 baseada em testemunho de gelo da Antártica ao longo de 800 mil anos. Fonte: Nasa – Earth Observatory 

No Brasil a paleoclimatologia avançou principalmente nas últimas duas décadas, mas ainda há muito a ser explorado uma vez que alguns dos biomas mais importantes do mundo estão presentes aqui. Entender como os diferentes biomas responderam às variações climáticas do passado ajuda a entender como esses biomas podem responder no futuro. Os registros paleoclimáticos referentes ao Último Máximo Glacial indicam condições mais secas na região tropical e mais úmidas em regiões subtropicais[5]. Há 6 mil anos a Terra atingiu o auge de temperatura no atual período interglacial e o clima do Brasil era mais seco, com exceção do Nordeste[6]. Compreender os padrões climáticos estabelecidos nesses dois períodos-chave do passado e as diferenças entre eles pode ajudar a responder atuais questionamentos como, por exemplo, o papel da floresta amazônica no clima regional e global.

As perspectivas para a paleoclimatologia estão em aprimorar ainda mais a pesquisa multidisciplinar que visa ao entendimento da evolução do clima da Terra. Afinal, compreender o passado é a única maneira de descobrirmos o impacto da humanidade no clima, e o quanto os sistemas naturais e sociais são vulneráveis e adaptáveis às mudanças climáticas que estamos vivenciando.

Tatiana Jorgetti Fernandes é meteorologista formada pela USP, onde fez mestrado e pós-doutorado em paleoclimatologia. Atualmente cursa especialização em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp.

Referências

[1] Broecker, W. S. “Climatic change: are we on the brink of a pronounced global warming?”. Science, 1975, v. 189, p. 460–463.
[2] Houghton, J.T.; Jenkins, G.J,; Ephraums, J. Climate change 1990: The IPCC scientific assessment. Cambrigde University Press, 1990. https://www.ipcc.ch/report/ar1/wg1/
[3] Haywood, A. M.; Valdes, P.J.; Aze, T. et al. “What can paleoclimate modelling do for you?”. Earth Syst Environ, 2019, p. 1-18.
[4] Delmotte, V. M.; Schulz, M. “Information from paleoclimate archives”. In: Climate change 2013: the physical science basis. Contribution of working group I to the fifth assessment report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press. https://www.ipcc.ch/report/ar5/wg1/
[5] Sifeddine, A. et al. “Informações paleoclimáticas brasileiras”. In: Ambrizzi, T.; Araujo, M. (org.). Base científica das mudanças climáticas. Contribuição do Grupo de Trabalho 1 do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas ao primeiro relatório da avaliação nacional sobre mudanças climáticas. Rio de Janeiro: COPPE, 2014, p. 126-180.
http://www.pbmc.coppe.ufrj.br/documentos_publicos/GT1/GT1_volume_completo_cap4.pdf
[6] Perretti, A. R. et al. “Evolução climática e oceanográfica no Brasil e no oceano adjacente durante o Pleistoceno Superior e o Holoceno: uma atualização”. In: Ambrizzi, T.; Jacobi, P. R.; Dutra, L. M. M. (org.). Ciência das mudanças climáticas e sua interdisciplinaridade. São Paulo: Annablume, 2015, p. 149-167.