Por Adriana Giachini e Maria Clara Guimarães
“Quem diz que as bibliotecas estão fora de moda não sabe o que está dizendo. Pelo contrário. Elas se fortalecem cada vez mais, contando parte da história de resistência das periferias. Vemos a oralidade indo para o papel, o crescimento das editoras pequenas, dos livros de autores locais, produzidos independentemente”, diz Bel Santos Mayer, gestora da biblioteca comunitária Caminhos da Leitura, em Parelheiros (zona sul de São Paulo) e coordenadora do LiteraSampa, uma rede de 14 bibliotecas em regiões periféricas da capital.
Pouco antes de conversar com a equipe da ComCiência, a pedagoga Bel Santos Mayer, 51 anos, explica ao grupo de 18 estudantes da Universidade de Ciências Aplicadas de Breda (Holanda), em visita a São Paulo, como as bibliotecas comunitárias são incubadoras de transformação social. Os verbos “ler e viajar” estão constantemente em seu discurso sobre o lugar da literatura nas periferias. “A leitura permite que façamos grandes viagens, mas não apenas metafóricas, e sim trajetórias de jovens que estão saindo da periferia e, pelas palavras, ocupando as universidades”, diz Mayer, cuja trajetória de vida vem, desde o final dos anos 1990, sendo dedicada ao fomento da leitura e sua popularização nas regiões mais carentes de São Paulo, justamente através de criação e gerenciamento de bibliotecas.
Aliás, a responsável por trazer o grupo até o Brasil é a “filha primogênita de Bel”: a biblioteca comunitária Caminhos da Leitura. O espaço ocupa a ex-casa de um coveiro, em um terreno de extensão do Cemitério da Colônia, o mais antigo de São Paulo, no distrito de Parelheiros, extremo sul da cidade, e tem fama internacional. Criado em 2009 pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) e jovens do bairro, destaca-se pelo envolvimento com toda a comunidade, especialmente na última década. Mayer atua no Ibeac e é uma das gestoras da biblioteca de Parelheiros.
Também faz parte da coordenação colegiada do LiteraSampa – uma rede composta por quatorze bibliotecas comunitárias e duas escolares cujo objetivo é estar em territórios muitas vezes ignorados pelas autoridades públicas, indicada este ano ao prêmio Jabuti com o projeto “A Periferia Lê”. “Quem diz que as bibliotecas estão fora de moda não sabe o que está dizendo. Pelo contrário. Elas se fortalecem cada vez mais, contando parte da história de resistência das periferias. Vemos a oralidade indo para o papel, o crescimento das editoras pequenas, dos livros de autores locais, produzidos independentemente e permitindo que o papel vire oralidade.”
A discussão trazida por Mayer exige que a sociedade brasileira olhe para as bibliotecas, especialmente as comunitárias, de uma nova forma. Se antes predominava o silêncio, hoje o que se pretende é um espaço “pulsante e falante”. Um local de interação com a sua comunidade e consciente do poder da leitura e da capacidade de transformação que os livros têm na vida de todos. “O que eu vejo na figura dos mediadores de leitura é que não se limitam mais a estar apenas na biblioteca. Ocupam as ruas, os estabelecimentos do bairro, promovendo a leitura através de ações que tiram os livros das prateleiras e os colocam nas mãos dos leitores”, conta Bel.
Sua fala é em sintonia com a do jornalista e técnico do Sesc Campinas, Cássio Quitério, responsável pela programação literária da unidade. “Eu sempre gostei de bibliotecas, gosto de ver como os assuntos são tratados de várias maneiras ao longo dos anos e sempre fui frequentador. Mas ultimamente, até por conta do trabalho, que envolve a literatura e o acervo das bibliotecas do Sesc, eu destaco sempre a importância de se ter um responsável por ser o ativador do acervo.”
Quitério contextualiza como a história das bibliotecas acompanha as necessidades sociais, proporcionando sempre uma reflexão sobre sua missão na difusão da educação e na democratização dos livros. “Imagine que as bibliotecas eram para abrigar as coleções e manuscritos das famílias ricas, da realeza. Com o passar do tempo, os governos foram criando espaços públicos para esses acervos, mas sempre edificações luxuosas e até mesmo com entradas restritas. Ao longo dos anos, esse papel vem se transformando e hoje as instituições sabem que aquele cenário de silêncio, quase que sagrado, vai dando espaço para um coisa mais de acesso, de ativação da leitura, com mobiliário diferente, com exposições para entender o acervo, entre outros exemplos.”
Cores para ajudar
Na biblioteca de Parelheiros um sistema de cores foi adotado para ajudar os visitantes a identificar com mais facilidade os gêneros literários. “A gente precisa de bibliotecas que abram janelas e portas e mostrem que elas existem, sejam públicas ou comunitárias. Aliás acho importante pontuar que a existência de uma nem de longe elimina a necessidade da outra. Muitas vezes as comunitárias só existem porque o Estado não chegou até aquela comunidade”, diz Mayer.
Neste contexto, a ativista da leitura defende políticas públicas para as bibliotecas comunitárias, até como forma de garantir investimentos e vida financeira. “Porto Alegre foi a primeira cidade a ter um plano de ação do livro e da leitura. Em São Paulo, isso começa a caminhar. Hoje, muitas sobrevivem de doações, que não atendem a diversidade que os locais periféricos necessitam. Mas aos poucos temos conscientizado a sociedade. Recentemente, a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias, que abriga 115 espaços pelo Brasil, recebeu uma doação de 20 mil exemplares de uma editora, com pequenas avarias. Assim, temos conseguido atualizar os acervos.”
A Rede Nacional de Bibliotecas publicou este ano o livro O Brasil que lê, das autoras Cida Fernandes, Elisa Machado e Ester Rosa. A obra não apenas faz um retrato das bibliotecas comunitárias no país mas tenta mapear sua relevância, o público alvo, o que se lê nesses espaços. “O propósito de democratizar a leitura e a escrita passa, de maneira muito importante, pelas bibliotecas comunitárias, pois nelas está a semente da apropriação social dessas ferramentas do pensamento e da ação”, escreve no prefácio da obra Silvia Castrillón, autora de O direito de ler e escrever.
Destaca-se que Machado é autora também do artigo “A biblioteca pública no espaço público: estratégias de mobilização cultural e atuação sócio-política do bibliotecário” onde argumenta que a função da biblioteca pública é de “memória; preservação e fomento da cultura; organização e disponibilização dos registros do conhecimento; acesso e produção de conhecimento; difusão da informação à comunidade” onde está inserida.
Estudos como O Brasil que lê ajudam a dimensionar o universo da leitura nas regiões periféricas. “Essa pesquisa supera os limites de pesquisas anteriores, pelo menos as que eu conheço, tanto no Brasil como em outros países da América Latina, que têm estudado aspectos pontuais como o impacto das bibliotecas comunitárias no rendimento escolar ou têm dado conta de alguns aspectos quantitativos”, observa Castrillón na introdução a obra.
Mayer completa que as estatísticas, especialmente sobre as comunitárias de São Paulo, poderão ajudar a construir ações mais incisivas. “Pense que em uma cidade como São Paulo, onde tudo funciona 24 horas, por que não uma biblioteca que possa atender os trabalhadores de madrugada ou mesmo jovens que voltam para casa após os estudos? Os desafios ainda são muitos.”
Dados mais recentes do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), de 2015, registram 6.057 bibliotecas públicas, ou uma para cada 34,5 mil habitantes. O Sudeste abriga a maioria, com 1.957 bibliotecas públicas, seguida pelo Sul, com 1.293. O Norte tem 462 bibliotecas. A rede LiteraSampa pretende fazer um levantamento no próximo ano do total de comunitárias em São Paulo.
Adriana Giachini do Amaral é jornalista e cursa especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.
Maria Clara Ferreira Guimarães é formada em linguística e cursa especialização em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.