Os humores do mercado como instrumento de governança neoliberal: autoritarismo econômico e hegemonia ideológica

Por David Deccache

Os governos que se submetem – por interesse, medo ou ignorância – ao terrorismo mitológico das elites econômicas estão colocando em risco não apenas a democracia, mas também o nosso próprio futuro como humanidade, algo totalmente incompatível e irresponsável com os desafios do nosso tempo.

Introdução

Ao abrirmos os cadernos de economia dos grandes jornais nos deparamos, invariavelmente, com notícias e alertas sobre o humor do mercado. Além disso, toda vez que alguma política econômica é proposta, o guia definitivo sobre as suas qualidades e viabilidade é a aceitação ou rejeição por parte dele. Os humores do mercado são vistos por parlamentares e interessados em economia como o crivo final das políticas públicas. Parece não haver alternativas: qualquer proposta econômica só pode ser implementada com o aval do mercado e a insistência em medidas que o irritem terá como efeito líquido e certo uma enorme desorganização sistêmica, no geral, descrita pela seguinte sequência: desvalorização da moeda doméstica frente ao dólar, seguida de pressões inflacionárias e aumento das taxas de juros que, por sua vez, irá gerar constrangimentos ao crescimento, emprego e renda.

Esse mesmo mercado, que parece possuir o poder de determinar o que é positivo ou negativo para a sociedade, moldando toda a sua forma de organização, é frequentemente apresentado como um espaço de neutralidade e objetividade, regido apenas por forças naturais da oferta e demanda movidas pela interação de agentes econômicos simétricos e livres para negociar, em conformidade com o que ensinam os livros-texto de introdução à economia. Portanto, aceitos os pressupostos anteriores, supõe-se que se trata de um espaço de liberdade e igualdade entre ofertantes e demandantes, sendo seus sinais um guia ótimo sobre o que é socialmente adequado.

É importante notar que esse modo de governança, que subordina toda a nossa organização social aos humores e desejos do mercado, ganhou força especialmente a partir dos anos 1980 quando o neoliberalismo se impôs como a forma dominante de gestão e acumulação do capitalismo global (Anderson, 1995).

Neste contexto, o presente artigo tem por objetivo analisar a aderência à realidade da hipótese do mercado ser um guia eficiente e politicamente neutro de gestão social à luz da tão esquecida Economia Política, que entende o mercado, ao contrário de uma esfera de livre interação de agentes individuais simétricos, como a arena onde se dá a disputa de classes pelo excedente socialmente produzido pelos trabalhadores. Para tal, vamos apresentar as linhas gerais do projeto neoliberal para a economia e sociedade e, na sequência, explorar como a governança social guiada pelos humores do mercado se tornou uma forma antidemocrática de consolidação do projeto econômico neoliberal que se assemelha a uma verdadeira seita autoritária e charlatã.

Para exemplificar a diferença de percepção política sobre o mercado no liberalismo econômico clássico e da sua atual especificidade, é interessante lembrar que o entendimento de Adam Smith, considerado o pai do liberalismo econômico, acerca das relações entre trabalhadores e capitalistas era bem distinto do que o senso comum contemporâneo acredita. Para Smith (1983):

Os trabalhadores desejam ganhar o máximo possível, os patrões pagar o mínimo possível. Os primeiros procuram associar-se entre si para levantar os salários do trabalho, os patrões fazem o mesmo para baixá-los (...).

Não é difícil prever qual das duas partes, normalmente, leva vantagem na disputa e no poder de forçar a outra a concordar com as suas próprias cláusulas (...).

Tem-se afirmado que é raro ouvir falar das associações entre patrões, ao passo que com frequência se ouve falar das associações entre operários. Entretanto, se alguém imaginar que os patrões raramente se associam para combinar medidas comuns, dá provas de que desconhece completamente o assunto. Os patrões estão sempre e em toda parte em conluio tácito, mas constante e uniforme para não elevar os salários do trabalho acima de sua taxa em vigor. Violar esse conluio é sempre um ato altamente impopular, e uma espécie de reprovação para o patrão no seio da categoria. Raramente ouvimos falar de conluios que tais porque costumeiros, podendo dizer-se constituírem o natural estado de coisas de que ninguém ouve falar frequentemente, os patrões também fazem conchavos destinados a baixar os salários do trabalho, mesmo aquém de sua taxa em vigor (Smith, 1983, p.92-94)

Portanto, é necessário, antes de explorarmos o que ou quem é o tal mercado, bem como quais são os reais determinantes dos seus humores e quais objetivos persegue, caracterizar brevemente o neoliberalismo, já que é nesta especificidade histórica do capitalismo que o mercado passou a ser visto de forma absolutamente hegemônica como o guia definitivo dos rumos da sociedade, inclusive subordinando toda e qualquer determinação democrática, bem como os anseios comunitários, aos seus humores. Alguns, entretanto, ousam caracterizar o modo de governança neoliberal como a mais pura ciência – livre de ideologias e viés político, assentado apenas nos mais rigorosos métodos científicos.

  1. O neoliberalismo e o autoritarismo do mercado

Após uma grande crise econômica e duas dramáticas guerras mundiais acompanhadas de uma disputa crescente contra o ideário socialista, os países do capitalismo central caminharam na direção de um modelo econômico de forte planejamento estatal cujo objetivo era a garantia do pleno emprego e do bem-estar social, conforme as diretrizes teóricas expostas por Keynes na Teoria geral do emprego, do juro e da moeda (1936) e em outros trabalhos, como o The Beveridge Report[1], elaborado e publicado  pelo economista William Beveridge em 1942.

Durante três décadas, a gestão estatal keynesiana da demanda efetiva e a ampliação dos gastos sociais e investimentos públicos permitiu ao capitalismo dos países centrais alcançar a combinação de estabilidade social, crescimento e controle de preços. Período conhecido na literatura como “os anos de ouro” do capitalismo (Hobsbawm, 2007).

Porém, nem todos aceitaram essa construção social que, apesar de assentada no modo de produção capitalista, guardava elementos de solidariedade e, até mesmo, esferas relevantes de socialização e universalização de serviços essenciais e de setores estratégicos. Milton Friedman, Hayek e outros intelectuais que advogavam o individualismo extremista buscaram construir uma ofensiva a esse modo de organização social e, já a partir da década de 1930, assentaram as bases teóricas para um capitalismo livre de regras e de intervenções, sendo para eles a concorrência entre os indivíduos, e não mais a solidariedade, o elemento (i)moral fundante (Anderson, 1995).

Tratava-se de um ideal que podemos sintetizar como uma espécie de darwinismo econômico radical, onde os considerados mais fracos deveriam ser eliminados. Para os extremistas neoliberais, a desigualdade era um valor e todas as esferas da vida – desde a gestão governamental, passando pelas relações familiares e chegando nas subjetividades – deveriam ser geridas como se empresas fossem.

Nas três décadas de ouro do capitalismo central, o neoliberalismo esteve confinado a uma pequena seita de extremistas. Era um ideal fortemente desprezado pelo conjunto da sociedade. Contudo, com a estagflação e crise de acumulação capitalista dos anos 1970, tudo mudou. Estavam assentadas as bases para a sua hegemonia, que se consolidaria – com base em muita violência – uma década mais tarde (Anderson, 1995; Hobsbawn, 2007).

Os teóricos neoliberais culparam o Estado pela crise e inflação crescente, mesmo que ambas tenham sido ocasionadas, dentre outros fatores, por dois choques de custos petrolíferos, em 1973 e 1979, o que guardou pouca relação com gastos sociais de fato excessivos ou descontrole da base monetária. Prometiam que com a eliminação do Estado de bem-estar social por intermédio de políticas de dura austeridade fiscal com a consequente mercantilização generalizada dos serviços públicos combinada com uma série de desregulamentações extremas em diversas esferas – trabalhista, financeira e nos fluxos internacionais comerciais e financeiros – as taxas de lucro dos capitalistas seriam retomadas e o crescimento derivado acabaria por beneficiar a todos.

Neste sentido, também defendiam a redução dos tributos dos mais ricos, reforçando ainda mais a concepção de que os benefícios para o topo da pirâmide eram necessários para o bem geral. Esta última abordagem ganhou, inclusive, status teórico com a concepção de trickle-down economics. A desigualdade passou a ser um valor (Anderson, 1995).

Portanto, do ponto de vista histórico, podemos categorizar o neoliberalismo como uma violenta reação teórica e política contra o estado planejador e de bem-estar social. O projeto neoliberal consistia em impor uma organização econômica baseada puramente na lógica da competição egoísta entre indivíduos, não cabendo nenhum espaço para a solidariedade e o comum.

Essa concepção pareceu música aos ouvidos dos super-ricos e das poderosas corporações, ávidos pela retomada das taxas de lucros e disciplinamento da classe trabalhadora e de seus sindicatos. Os que estavam no topo da pirâmide agora poderiam defender, sem constrangimento, a redução dos seus próprios tributos e a privatização de bens e serviços públicos e, ainda assim, justificar essas ações como socialmente legítimas e economicamente eficientes. A tendência se acentuou com a queda das potências socialistas no fim dos anos 1980, já que os constrangimentos políticos outrora impostos pelo socialismo real perderam força e a exploração poderia ser potencializada sem maiores riscos ideológicos. O caminho estava aberto para um novo tipo de acumulação sem concessões aos trabalhadores.  

Neste contexto, Margaret Thatcher foi além das simples recomendações teóricas neoliberais. Atacou sindicatos e usou o braço opressor do Estado para quebrar as resistências populares e impor a lógica neoliberal no Reino Unido. A ex-primeira-ministra britânica defendeu que não haveria alternativas às recomendações econômicas dos teóricos neoliberais. O fim dos direitos trabalhistas, as privatizações generalizadas, a liberdade de fluxos comerciais e financeiros e a destruição dos serviços públicos, tudo isso em prol dos lucros privados, não só seriam benéficos, mas, também, urgentes e inevitáveis. Não haveria outra opção. Daí surgiu o famoso acrônimo TINA, do inglês There Is No Alternative (não há alternativa). Curioso notar que, para Thatcher, o Estado deveria continuar forte em uma esfera específica: na sua capacidade de opressão e de rompimento violento do poder de organização da classe trabalhadora em sindicatos (Anderson, 1995).

Notoriamente, ao contrário das promessas, as políticas neoliberais implementadas a partir dos anos 1970 no mundo culminaram em baixo crescimento econômico. Pior: o pouco crescimento se concentrou nas mãos de uma pequena elite, cada vez mais rentista e desatrelada da produção real. Os rendimentos e direitos da classe trabalhadora foram esmagados, a seguridade social e serviços públicos desmontados, os níveis de desemprego se mantiveram em níveis disciplinadores, o mercado de trabalho desregulamentado e a desigualdade alcançou níveis insustentáveis até para a manutenção da aparência democrática do sistema (Hobsbawm, 2007; Piketty, 2013)

O único rendimento que cresceu em escala exponencial foi o dos rentistas e corporações financeiras, que passaram a lucrar com o empobrecimento e consequente endividamento das famílias. A classe trabalhadora, que via os salários despencarem e o desemprego crescer, tinha que acessar cada vez mais o mercado para comprar serviços que antes eram públicos. O endividamento era a única saída. Dessa forma, o capital financeiro se apropriava de uma parcela cada vez maior da renda de famílias empobrecidas (Dowbor, 2017).

A mesma lógica se estendeu às dívidas externas dos países periféricos contraídas em moedas fortes, principalmente o dólar. Neste caso, as grandes corporações e países imperialistas credores, representados por instituições como o Banco Mundial e o FMI, passaram a obrigar as nações periféricas a adotarem políticas econômicas neoliberais radicais e a venderem suas riquezas naturais e patrimônios públicos para transnacionais do centro do capitalismo.

  1. Ideologia, governança e subjetividades: o neoliberalismo para além das políticas econômicas

Como tudo isso foi possível sem uma fortíssima resistência popular e convulsão social generalizada mesmo em países que não precisaram recorrer à repressão explícita e suspensão da democracia liberal? Uma hipótese é que a resiliência do neoliberalismo frente aos resultados sociais desastrosos deriva, dentre outros, da sua dimensão ideológica e da construção de racionalidades e subjetividades aderentes à alienação da exploração e favorável à governança pública em um modelo puramente empresarial, conforme apontam os trabalhos pioneiros de Focault (1979) e os atuais de Dardot e Laval (2016).

Neste sentido, o neoliberalismo não é apenas uma teoria econômica ou política, mas também uma forma de governabilidade implicitamente autoritária que molda e é moldada pelas subjetividades que são, essencialmente, produtos da forma de produção/reprodução da vida. A classe trabalhadora – submetida ao desemprego, informalidade e desregulamentação das relações trabalhistas – passa a internalizar os valores e as práticas associadas ao mercado e à concorrência como normas sociais naturais. Com a predominância de relações trabalhistas altamente exploratórias que simulam acordos empresariais, o trabalhador submetido a esse modo de produção passa cada vez mais a se enxergar como uma marca em constante competição consigo mesmo e com os outros trabalhadores (Antunes, 2018; Dardot e Laval, 2016).

Como nos ensinou Marx e Engels, “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes” (Engels, F; Marx, K. 2007. p.72). Neste sentido, os capitalistas, cujo poder financeiro é cada vez maior na especificidade neoliberal, ampliaram de forma acelerada o controle de todas as esferas da reprodução da vida social, não só no âmbito econômico, mas também no político, social e cultural.

Desde a educação das crianças e jovens, controlada por grandes corporações privadas, passando pela grande imprensa financiada pelos poderosos conglomerados e super-ricos, chegando nos debates políticos no parlamento, cuja composição é determinada em última instância pelo poder econômico de setores capitalistas poderosos, há um amplo domínio de atores que advogam o mercado como uma espécie de divindade a ser respeitada e as políticas econômicas de redução de direitos e intensificação da exploração do trabalho como o sacrifício necessário para a classe trabalhadora alcançar o paraíso em algum momento do longo prazo – que, como ensinou Keynes, é definido como o período em que todos estaremos mortos. Para esses ideológicos do capital, a riqueza dos mais ricos em meio à pobreza da maioria é apenas um resultado natural e desejável da meritocracia. O único remédio que oferecem aos trabalhadores empobrecidos é a promessa de que caso eles se esforcem mais irão superar a miséria, nem que seja no paraíso, depois de mortos (Althusser, 1985).

Logo, a grande imprensa cartelizada e seus supostos especialistas, bem como os políticos de espectros políticos alinhados com a ideologia dominante, possuem enorme poder de moldar a opinião pública e generalizar determinados valores e crenças de livre-mercado, excluindo ou marginalizando perspectivas críticas. A funcionalidade desses aparelhos ideológicos é legitimar e naturalizar as relações de poder existentes e eliminar as possibilidades de questionamento e mudança social.

Neste sentido, pelo menos três concepções ideológicas, assentadas no modo de produção capitalista em sua especificidade neoliberal, ganharam algum grau de aceitabilidade social e foram fundamentais para a sobrevivência do neoliberalismo em meio à destruição social e ambiental: (i) de que a competição é a única forma justa e eficiente de organização social e econômica; (ii) que a desigualdade é um resultado natural e desejável desse processo e, por fim, (iii) que o mercado é o principal mecanismo de avaliação dos governos e das suas políticas econômicas. Este último ponto nos interessa em especial e será desenvolvido na próxima seção.

  1. Transformando os dogmas em teoria aparentemente científica

A ideia de que o mercado deve ser um avaliador divino e guia de todas as políticas socioeconômicas foi sintetizada na forma de teorias – apresentada como científicas – nos anos 1990. Tratava-se de teses como a da contração fiscal expansionista e teorias correlatas que subordinam as diretrizes econômicas aos humores do mercado, que puniria governos que não seguissem as suas diretrizes e premiaria os que praticassem as políticas que deseja (Krugman, 2010).

No caso da “contração fiscal expansionista”, desenvolvida por Alberto Alesina e outros economistas italianos em meados da década de 1990, alegava-se que a austeridade fiscal, em especial quando focada em cortes de gastos públicos, melhoraria o humor do mercado e confiança do mercado, e por consequência, induziria à redução das taxas de juros. Com taxas de juros menores, haveria um intenso estímulo ao consumo e investimento privados que mais do que compensariam a contração inicial, implicando, portanto, crescimento (Alesina e Perotti, 1995).

Entretanto, até mesmo pesquisas realizadas no âmbito do FMI comprovaram o fracasso da austeridade fiscal para alcançar os objetivo que os seus defensores fingem perseguir: crescimento e estabilidade.  Ball et al. (2013), em artigo publicado pelo FMI, estimaram, com base em uma análise de 17 países da OCDE entre 1978 e 2009, que a aplicação de políticas de austeridade fiscal no período gerou efeitos distributivos regressivos significativos, elevando a desigualdade e diminuindo a geração de empregos no longo prazo. Ficou comprovado empiricamente que as contrações fiscais, com raríssimas exceções, são – perdão pela redundância – contracionistas.

Contudo, a austeridade tem obtido êxito na sua real intencionalidade. Historicamente, o efeito prático das políticas de austeridade fiscal, longe de ser o crescimento econômico, vem sendo a redução da capacidade dos governos em manter a qualidade e funcionamento dos serviços públicos e investimentos estatais, abrindo espaços cada vez maiores para o setor privado atuar e lucrar, seja pelo sucateamento e redução dos serviços públicos, seja pelas rodadas intermináveis de privatizações e parcerias público-privadas.

As políticas de austeridade também tendem a manter as taxas de desemprego estruturalmente elevadas, de forma a reduzir o poder de barganha da classe trabalhadora por salários e direitos. O medo do desemprego, nas economias capitalistas, exerce um poder disciplinador sobre a classe trabalhadora (Kalecki, 1983)

Em síntese, a austeridade fiscal imposta por meio de fortes constrangimentos orçamentários tem sido um poderoso instrumento de governança do capital para impor a sua lógica de mercantilização generalizada do que é público, gratuito e universal ao mesmo tempo que se revela uma arma para desorganizar politicamente a classe trabalhadora.

Percebe-se, nitidamente, que este modo de governança se assemelha a uma seita autoritária que visa controlar e sujeitar a sociedade aos interesses espoliativos das elites econômicas. Como já deu para perceber, o mercado financeiro não é uma entidade autônoma e neutra, mas sim uma construção social e política, moldada por interesses particulares de classe e por relações de poder.

  1. Considerações finais: há alternativa?

Apesar de poder muito, o mercado não pode tudo. Não podemos temê-lo como se fosse uma entidade divina onipresente, onisciente e onipotente.  Os Estados nacionais, especialmente aqueles que possuem soberania monetária e baixa dívida externa, possuem a capacidade política e ampla autonomia para determinar o volume de seus gastos, o tipo de estrutura tributária socialmente desejável e o patamar da taxa básica de juros da sua moeda. As restrições reais para os gastos domésticos não estão dadas por indicadores fiscais aleatórios de resultado primário, gastos ou patamar de dívida, mas sim pela capacidade produtiva concreta da economia, incluindo a limitações externas. Restrições que visem a desestruturação de serviços e investimentos públicos em economia com alto desemprego e ociosidade são, portanto, politicamente impostas com os objetivos de governança neoliberal já mencionados (Dalto et al, 2020; Deccache, 2021).

Toda essa possibilidade de autonomia e potencialidade fiscal e monetária, que poderiam ser usadas para reduzir as desigualdades e salvar o meio-ambiente, têm sido obstruídas pelo mercado e liberadas apenas quando o sistema financeiro precisa ser socorrido. Nesse modelo econômico, bancos são grandes demais para quebrar e devem ser salvos pelo poder fiscal-monetário do Estado se correrem qualquer risco de falência. Já a classe trabalhadora, para os adoradores do deus mercado, é irrelevante e pequena demais para ser socorrida da fome e da miséria.

Os governos que se submetem – por interesse, medo ou ignorância – ao terrorismo mitológico das elites econômicas estão colocando em risco não apenas a democracia, mas também o nosso próprio futuro como humanidade, algo totalmente incompatível e irresponsável com os desafios do nosso tempo.

A boa – e não tão nova – notícia é que, ao contrário do que Margaret Thatcher afirmava, há uma alternativa que não passa pelas políticas autoritárias do mercado. Ainda no século XIX, Marx propôs a saída, essa sim a única possível para a classe trabalhadora: “Trabalhadores do mundo, uni-vos, vós não tendes nada a perder a não ser vossos grilhões”. À medida que a exploração e as desigualdades se aprofundam em paralelo aos riscos ambientais crescentes que estão nos conduzindo à tragédia final, as palavras de Marx permanecem atuais e inspiradoras.

David Deccache é diretor financeiro do Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento e doutorando em Economia na UnB

Referências

ALESINA, A; PEROTTI, R. Fiscal expansions and adjustments in OECD countries. Economic policy, Oxford University Press Oxford, UK, v. 10, n. 21, p. 205-248, 1995.

ALTHUSSER, Louis. Aparelho Ideológico de Estado. Nota sobre os Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985

ANDERSON, Perry et al. Balanço do neoliberalismo. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 9-23, 1995.

ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018. 325 p.

BALL , Laurence M et al. The Distributional Effects of Fiscal Consolidation. Working Paper  No. 13/151, FMI,  junho 2013.

DALTO; GERIONI, E. M.; OMIZZOLO, J. A.; DECCACHE, D.; CONCEICAO, D. N. . Teoria Monetária Moderna: a chave para uma economia a serviço das pessoas. 01. ed. Fortaleza: Nova Civilização, 2020. v. 01. 252p

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: Ensaios Sobre a Sociedade Neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DOWBOR, L. A era do capital improdutivo – a nova arquitetura do poder: dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta. São Paulo: Outras Palavras & Autonomia Literária, 2017.

FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

KALECKI, M. Aspectos políticos do pleno emprego. In: KALECKI, M. Crescimento e ciclo das economias capitalistas. São Paulo: HUCITEC, 1983

KRUGMAN, P.. Myths of austerity. The New York Times, v. 1, n. 7, p.  10, 02 julho 2010. 

PIKETTY, T. O capital no século XXI. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2014.

[1] https://www.parliament.uk/about/living-heritage/transformingsociety/livinglearning/coll-9-health1/coll-9-health/