Por Peter Schulz
A prática de notícias falsas quando não existia a internet, muito menos as redes sociais, é iluminada por dois exemplos que nem sempre são lembrados como deveriam: o tabloide alemão anticomunista Bild Zeitung, criado em 1952, e o tristemente famoso Os protocolos dos sábios do Sião.
É quase impossível passar um dia sem ouvir ou ler a expressão “fake news”, o que, provavelmente, leva a uma circulação de diferentes definições dela por aí, algumas certamente “fakes” também. É e para isso que servem: além de disseminar embustes e falsidades, criam um caldo de falsas designações para que sobrevivam aos seus desmentidos. A prática de notícias falsas de autor muitas vezes incógnito, mas de intenções sempre explícitas, é antiga. No entanto a expressão é recente.
No universo acadêmico de âmbito internacional, fake news aparece em um artigo em 2005 e uma ou outra vez nos anos subsequentes. Em 2017, ano posterior à eleição de Donald Trump, que foi embalada por fábricas de notícias falsas, registraram-se na mesma base de dados pesquisada um pulo para 173 artigos publicados em periódicos científicos.
Com a prática se disseminando para os mais variados fins perversos, entre eles o negacionismo científico em torno da pandemia de covid-19, temos, em 2020, 983 artigos acadêmicos dedicados ao tema, segundo a mesma fonte, número que deverá ser superado em 2021.
A prática insidiosa virou área de pesquisa com muitas questões em aberto. O problema necessita de uma abordagem multidisciplinar e algumas questões evidentes são sobre sua prevalência, seu impacto e como combatê-las. Nesse terreno temos, por exemplo, um artigo de Jennifer Allen e colaboradores[i], que constatam que o consumo de fake news nos EUA corresponde a uma parcela ínfima da “dieta de mídia” dos americanos do norte. Os autores arriscam sugerir que a desinformação e polarização estariam mais ligadas às notícias convencionais ou ao esquivamento a elas do que propriamente às fake news. Gordon Pennicook e David Rand vasculham os mecanismos de ação das informações falsas sobre as pessoas[ii] e sugerem que a susceptibilidade teria mais a ver com acomodação (lazy thinking) do que com a polarização política em si. Se verificada a hipótese, teríamos uma pista adicional para combater essas “fakes”. Neste caminho, os mesmos autores com mais dois colaboradores percebem que induzir as pessoas a pensar sobre a acurácia das notícias falsas é uma maneira simples de qualificar as escolhas de cada um do que deve ou não ser compartilhado nas redes sociais[iii]. Por fim, para não alongar o inventário de pesquisas científicas, um estudo que saiu na Nature Human Behaviour[iv] detalha cientificamente o que intuímos no nosso cotidiano: a desinformação está associada ao declínio em intenções de vacinação. Com um detalhe: isso acontece principalmente com fake news com cara científica (scientific sounding misinformation).
Os cenários mundo afora são variados e voláteis. Pesquisas de opinião no Brasil mostram que a adesão às vacinas contra a covid-19 cresceu entre dezembro de 2020 e julho deste ano, apesar da campanha de notícias falsas disseminadas largamente. No entanto, foram os desmentidos constantes dessas fake news que levaram a esse aumento da adesão à vacina? Arrisco dizer que não sabemos ainda ao certo, mas temos a certeza de que o combate às inverdades não deve e não pode parar.
Os aspectos levantados pelos artigos mencionados acima remetem também às caraterísticas da prática de notícias falsas, sejam apócrifas ou de fonte conhecida, quando não existia a internet, muito menos as redes sociais e, às vezes, nem mesmo rádio e televisão. Cito dois exemplos, que nem sempre são lembrados como deveriam.
O primeiro é um tabloide alemão, o Bild Zeitung, criado em 1952 por Alex Springer, ou seja, quando já tinha televisão, mas a internet nem ficção científica era. O objetivo do tabloide? Combater o “inimigo comunista”, geralmente inimigos imaginários. Sua tiragem, com edições regionais, ultrapassou a marca de cinco milhões de exemplares no início dos anos 1980, alcançando mais de 25 milhões de leitores, aproximadamente a metade da população do país de então (Alemanha Ocidental). Eu cheguei a ler algumas vezes e jornal na minha adolescência e me perguntava: não tem texto? Notícias extremamente curtas, consumidas a rodo, versão impressa dos textos nas redes sociais de hoje. Notícias curtas com manchetes manipuladas e no meio notícias falsas, totalmente inventadas para manipular a opinião pública. Foi denunciado várias vezes, mas sempre seguiu em frente. A denúncia mais contundente é o livro do jornalista Günther Wallraff, que, sob pseudônimo, empregou-se em uma sucursal do jornal, para investigar como notícias falsas eram pautadas e construídas. O livro de 1977 tem o título Der Aufmacher (A manchete principal, no jargão jornalístico de lá), mas a tradução brasileira dos anos 1980 traz um título mais premonitório: Fábrica de mentiras (Editora Globo). Suas mentiras destruíram vidas, como também denunciado por Heinrich Böll em sua novela A honra perdida de Katharina Blum (personagem fictício, mas a semelhança com a realidade não era mera coincidência). Com isso temos a fabricação de notícias falsas em veículos convencionais já há bastante tempo. O Bild segue hoje com a mesma linha, como mostra a ilustração da capa de uma edição mais ou menos recente.
A manchete (der Aufmacher) não deixa dúvidas quanto ao polo ocupado e as intenções: “Alemanha mais socialista (em vermelho) do que a China!”. Mas as pessoas se polarizavam por lerem as “fake news” ou liam as fake news por já estarem polarizadas?
Os mecanismos da manipulação e seus efeitos deletérios ficam ainda mais claros com um exemplo que começou antes que existissem rádio e TV, mas que continuam a se propagar pela internet de hoje: Os protocolos dos sábios do Sião. O texto apócrifo sem autor declarado surgiu na Rússia no finalzinho do século XIX.
A história toda é contada magistralmente pelo famoso quadrinista Will Eisner (1917-2005) na sua novela gráfica O complô – a história secreta dos protocolos…, prefaciado por Umberto Eco, que traz outros elementos [clique aqui para ler a resenha]. Os tais protocolos teriam sido escritos por um ativista russo chamado Matvei Golovinski e, independentemente da versão sobre a autoria assumida por Eisner, era um escancarado plágio de O diálogo no inferno entre Maquiavel e Montesquieu de Maurice Joly, uma sátira contra Napoleão III. De sátira a um tirano, passou, via plágio com pequenas modificações e novos personagens, a defesa de um tirano (o czar russo, já enfrentando forte resistência) e difamação de todo um povo, o judeu, que seria responsável por uma grande conspiração para, resumidamente, perversamente controlar o mundo. Fake news em forma de novela anônima.
O plágio foi verificado por um jornalista inglês em 1921, quando o texto já havia se disseminado por vários países e línguas. E mostrar que era falso não refreou essa disseminação. Não é necessário lembrar que era livro de cabeceira de Adolf Hitler, entre outros nazistas, fascistas e integralistas.
Sua disseminação continua até hoje, como a edição brasileira que ilustra esse artigo em homenagem ao centenário de Gustavo Barroso, que foi um fervoroso integralista e antissemita brasileiro. Notem ali que se trata de uma quinta reimpressão.
Os “protocolos…” seguem sendo alardeados, mesmo com a demonstração há mais de um século de que é falso e depois de inúmeros processos judiciais em diferentes países condenando a “obra” e confirmando a fraude. Como isso é possível?
Uma pista está nos quadrinhos de Eisner, que não reproduzo aqui sem permissão. Mas podemos ir ao texto do prefácio do livro de Eisner, onde Umberto Eco destaca a argumentação de uma autora antissemita que promove os tais protocolos: “Como os ‘Protocolos’ dizem o que eu digo em minha história, eles a confirmam”, ou “Os ‘Protocolos’ confirmam a história que depreendi deles e, portanto, são autênticos. Melhor ainda, como pontuou Eco antes de nova citação da autora em questão: “Os protocolos podem ser falsos, mas dizem exatamente o que os judeus pensam, e devem, portanto, ser considerados autênticos”.
A conclusão de Eco, lembrando que o livro de Eisner é de 2005, antecipa uma pista que alguns artigos científicos estão explorando atualmente: “Não são os ‘Protocolos’ que geram o antissemitismo, é a profunda necessidade das pessoas de isolar um Inimigo que as leva a acreditar nos ‘Protocolos’”.
O modo de operação é o mesmo para outros inimigos (como nós somos hoje neste país), ou, como escreve Will Eisner:
“Sempre que um grupo de pessoas é ensinado a odiar outro grupo, inventa-se uma mentira para insuflar o ódio e justificar o complô”.
A semelhança com o que assistimos não é mera coincidência e, mesmo uma vez todos vacinados e um presidente afastado, de um modo ou de outro, temo que os novos protocolos dos espertos de plantão tenham vida longa e seus autores ainda se orgulhem publicamente da autoria.
Peter Alexander Bleinroth Schulz foi professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em física e cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010). Foi secretário de comunicação da Unicamp.
[i] https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.aay3539
[ii] https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S001002771830163X
[iii] https://journals.sagepub.com/doi/full/10.1177/0956797620939054
[iv] https://www.nature.com/articles/s41562-021-01056-1
Clique aqui para o índice do Dossiê Fake News, outubro de 2021