Por Adilson Roberto Gonçalves, Graciele Almeida de Oliveira e Virginia Vilhena
Atualmente, há cerca de 30 mil sítios arqueológicos protegidos no Brasil e este número pode ser muito maior – mais de mil pesquisas autorizadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) estão em andamento por todo o país. Porém, a continuidade desse trabalho está posta em xeque por uma série de normas, leis e decretos propostos, ligados aos processos de licenciamento ambiental.
O patrimônio histórico e artístico nacional inclui bens materiais e imateriais. “Bens arqueológicos, paisagísticos, etnográficos e históricos são alguns dos patrimônios materiais. Já saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão e até lugares que são referência para práticas culturais coletivas são considerados patrimônios imateriais”, explica Roberto Stanchi, coordenador nacional de licenciamento do Iphan. Dessa forma, o conjunto que faz parte do patrimônio, além de estar presente na cultura cotidiana, também tem elementos que datam de antes da chegada dos europeus por essas terras.
O licenciamento ambiental é um procedimento em que o poder público, por meio do órgão ambiental responsável, analisa a viabilidade de um empreendimento e depois libera a instalação, ampliação e operação em uma determinada localização levando em conta estudos de impacto ao meio ambiente. Esse licenciamento é regulamentado pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e leva em consideração o meio físico, como os subsolos, água, ar, clima; o meio biológico, incluindo os ecossistemas naturais (fauna e flora); e o meio socioeconômico. Este último engloba a socioeconomia, os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, ou seja, o patrimônio histórico e cultural.
O Iphan, que este ano completa 80 anos, participa diretamente da proteção do patrimônio histórico e artístico por meio de processos de licenciamento e fiscalização, todos regulamentados pela Instrução Normativa 001/2015, ou IN01, em vigor, desde março de 2015. A IN01 prevê a avaliação de impacto ao patrimônio, aprofundamento de pesquisas, prestação de contas e esclarecimentos à sociedade, na forma de divulgação científica, por exemplo.
Ainda que alguns aspectos de procedimentos de licenciamento precisem ser aprimorados, é inegável que, nos últimos anos, houve maior proteção e preservação de bens culturais. Diversos sítios arqueológicos extremamente relevantes foram encontrados em diferentes tipos de empreendimentos, como o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, considerado Patrimônio Mundial pela Unesco. Ele pode ser considerado o lugar mais importante de memória da diáspora africana fora da África, e as estimativas apontam que entre 500 mil e um milhão de negros desembarcaram ali.
Os desafios à preservação do patrimônio histórico e artístico
No final do século XIX surgiram as primeiras pesquisas arqueológicas no Brasil. Apesar da importância desse campo de estudo para a construção da história e identidade das populações, a profissão de arqueólogo encontra entraves para sua regulamentação – atualmente, são mais de três mil profissionais no país.
“Acreditamos que a profissão ainda não é regulamentada em virtude justamente de interesses contrários à proteção do patrimônio histórico e cultural. Desde o final dos anos 1980, a Sociedade de Arqueologia Brasileira acompanha procedimentos para a aprovação de uma lei que regulamente a profissão de arqueólogo”, explica Flávio Rizzi Calippo, presidente da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB).
A dificuldade na regulamentação da profissão de arqueólogo é apenas a ponta do iceberg dos desafios associados ao patrimônio histórico. A proteção ao patrimônio histórico e, consequentemente, à história e cultura brasileira, não foi mencionada em um projeto de resolução que tramita no Conama. Encaminhado pela Associação Brasileira das Entidades Estaduais de Meio Ambiente (Abema), o projeto quer substituir a atual resolução que regulamenta o licenciamento ambiental (nº 001/1986 e nº 237/1997) com a justificativa de aumentar a autonomia das entidades estaduais e acelerar os procedimentos de licenciamento nos estados. No entanto, não fazem menção ao patrimônio histórico e artístico. “O meio ambiente lato sensu não é apenas fauna e flora, biota e socioeconomia. Dentro, há o meio ambiente cultural e, dentro deste, o patrimônio”, destaca Stanchi.
Apesar de ser considerada um marco na preservação do patrimônio, a instrução normativa atualmente vigente corre risco de desaparecer. Há um Projeto de Decreto Legislativo que propõe sustá-la, argumentando que “acarreta uma burocratização excessiva e traz grande morosidade ao processo de licenciamento ambiental”. Ainda que tenha obtido parecer contrário da comissão de cultura, a proposta continua tramitando.
Em relação à morosidade, o tempo para análise e emissão de parecer do processo de licenciamento varia de acordo com a complexidade do empreendimento – podendo ser de 15 dias, dependendo da categoria da obra, até oito meses, para as mais complexas, como uma usina hidroelétrica.
Além do decreto legislativo, há ainda a possibilidade de aprovação de um projeto de lei que tira o Iphan do processo de licenciamento ambiental. As comissões que avaliam o projeto de lei já apresentaram pareceres favoráveis.
Desafios para além do patrimônio histórico e artístico
Não é apenas o patrimônio histórico e artístico cultural que está em perigo. De acordo com Stanchi, o problema é o próprio licenciamento ambiental. “Há uma falsa premissa de que esses estudos [de licenciamento ambiental] seriam um obstáculo ao desenvolvimento. Os países mais desenvolvidos do mundo têm processos de licenciamento ambiental, em muitos casos, mais rígidos que no Brasil”.
De fato, em 2015, a Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional aprovou uma decisão (PLS 654 toilet partition) que, na prática, cria um tipo de licença sem necessidade de estudos de impacto ambiental. Este projeto aguarda a decisão da convocação de audiências públicas no Senado para ir à votação em plenário.
Em 2016, ressurgiu ainda uma Proposta de Emenda à Constituição, PEC 65, originalmente apresentada em 2012, que extingue o processo de licenciamento ambiental de obras públicas. Nesta proposta, apenas é necessária a apresentação de um estudo de impacto ambiental prévio para que a obra seja liberada. Uma vez aprovada, fica assegurada a continuidade da obra, ou seja, além de não levar em conta a necessidade de licenciamento ambiental, também exclui a fiscalização do processo. A proposta, que conta com manifestação negativa de 99% dos internautas no site do Senado, aguarda a realização de audiência pública desde dezembro de 2016.
A justificativa apresentada pelo então senador Acir Gurcacz para a PEC 65 é de que “Uma das maiores dificuldades da administração pública brasileira e, também, uma das razões principais para o seu desprestígio, que se revela à sociedade como manifestação pública de ineficiência, consiste nas obras inacabadas ou nas obras ou ações que se iniciam e são a seguir interrompidas mediante decisão judicial de natureza cautelar ou liminar, resultantes, muitas vezes, de ações judiciais protelatórias”.
Essas propostas podem significar um grave retrocesso à proteção do patrimônio arqueológico e aos direitos de populações tradicionais, como as indígenas e quilombolas.
Daniel Munduruku, renomado escritor e um dos vencedores do Prêmio Jabuti de 2017, denuncia que a memória brasileira está sendo destruída por “etnocidas de plantão” e defende a sacralidade do território indígena, que não se trata apenas da floresta, mas também os lugares por onde os antepassados passaram e viveram. Como representante de seu povo que leva a voz de sua aldeia para o mundo, ele compreende a importância de órgãos reguladores desse patrimônio, como o Iphan, e acredita no “resgate da memória brasileira para a construção da autoestima do povo, e na necessidade de oferecer ao brasileiro um retorno à sua memória ancestral para que perceba e tenha orgulho de seus antepassados”. Munduruku externa sua preocupação com as mudanças propostas nos projetos que estão em tramitação e a relação com a identidade dos povos indígenas: “No atual contexto político, os povos indígenas estão lutando para tentar manter o pouco que conseguimos nos anos anteriores. Nossa preocupação não é avançar, mas evitar retroceder nos direitos duramente conquistados”.
Uma política de preservação versus a de desenvolvimento?
O Ministério Público Federal está atento às questões legais relacionadas à proteção do patrimônio histórico e artístico, mas “não pode tentar se sobrepor ou mesmo substituir os entes que participam do licenciamento ou a sociedade civil”, enfatiza a procuradora Zani Cajueiro, em entrevista concedida ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA/MG).
Contrariando a ideia de que há uma dicotomia entre desenvolvimento e preservação, presente em vários países, Cajueiro afirma, na entrevista ao IEPHA/MG, que “isso é uma falácia; caso administrado com seriedade, e não somente sob uma ótica de lucros, o desenvolvimento certamente auxiliará na preservação”. Stanchi vai na mesma direção e propõe um diálogo entre as propostas, ao afirmar que “o dilema não está entre preservação versus desenvolvimento, mas em dotar as instituições para que possam dar as respostas preventivas necessárias, como a sociedade entende, de forma que isso ocorra sem prejuízos à preservação do meio ambiente e do patrimônio”.
“O que está em xeque? Simples: que preço vamos pagar pelo nosso desenvolvimento? Não se discute a necessidade de desenvolvimento, todos nós o queremos, mas a que preço? Com a supressão das questões patrimoniais e ambientais? Com licenciamentos feitos ‘a toque de caixa’, com resultados absolutamente questionáveis, haja vista Mariana? O exemplo de um desastre como o que ocorreu em Mariana demonstra bem isso. Ou seja, o que precisamos não é acabar com o licenciamento achando que vamos resolver os problemas inerentes ao desenvolvimento, mas, sim, dotar os órgãos responsáveis pelas análises de capacidade técnica para realizar as avaliações com precisão e eficiência, sem prejuízo às questões patrimoniais e ambientais, assegurando o desenvolvimento no tempo em que a sociedade necessita”, ressalta Stanchi.
Adilson Roberto Gonçalves é bacharel em química (Unicamp), doutor em ciências (Unicamp), pesquisador da Unesp e pós-graduando em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp
Graciele Almeida de Oliveira é bacharel em química (USP), doutora em ciências – bioquímica, graduanda em educomunicação (USP) e pós-graduanda em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp
Virginia Vilhena é bacharel licenciada em ciências biológicas (UFMG), mestre em parasitologia pela mesma instituição, professora de ensino superior e pós-graduanda em jornalismo científico pelo Labjor/Unicamp