Por Tássia Biazon
Durante séculos, a febre amarela foi um grande desafio à medicina. A origem do vírus causador – um arbovírus do gênero Flavivirus – data de cerca de 3 mil anos, na África, continente que concentra 90% dos 200 mil casos anuais da doença – o restante localiza-se em regiões da América do Sul e Central. Com efeitos variáveis, a doença pode ser desde assintomática à grave – sendo que, em alguns casos, leva à morte em cerca de uma semana.
Considerando o local da ocorrência e a espécie de vetor, a febre amarela apresenta dois ciclos epidemiológicos: o silvestre e o urbano. O silvestre acomete os macacos, que são os hospedeiros do vírus transmitido pela picada dos mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes. Conforme o artigo “Histórico da febre amarela no Brasil e a importância da vacinação antiamarílica” (2011), “dentre as diversas espécies de Haemagogus envolvidas na transmissão da febre amarela silvestre, o principal transmissor do vírus no Brasil é o Hemagogus janthinomys, considerado altamente susceptível à infecção, com hábitos silvestres e que possui, como principal fonte de alimento, os primatas não humanos (ex: sagui) e, secundariamente, a espécie humana”.
A febre amarela urbana acomete o homem e é transmitida pela picada do mosquito do gênero Aedes, sendo a espécie Aedes aegypti o principal vetor desse ciclo epidemiológico – o mesmo que transmite a dengue, o zika e a chikungunya. A transmissão da doença ocorre quando o mosquito pica uma pessoa doente e depois outra não vacinada. É importante ressaltar que o vírus da febre amarela nunca é transmitido pelo contato de pessoa para pessoa e que, seja no ciclo silvestre ou urbano, as manifestações clínicas são iguais.
“Na mata, o regime de chuvas é intenso e a influência das atividades humanas nesses locais é suspeitada, porém ainda não comprovada. Na área urbana, as consequências da atividade humana são mais evidentes: o avanço de fronteiras agrícolas com consequente desmatamento nas áreas periurbanas, faz com que se fique mais exposto às áreas intermediárias entre urbano e silvático, com aumento do risco de transmissão da doença”, avalia Plínio Trabasso, professor da área de infectologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
A denominação “febre amarela” foi empregada pela primeira vez pelo inglês Griffith Hughes (1707-1758), em seu livro Natural history of Barbadoes (1750), em alusão às manifestações clínicas mais características da doença (a febre e a icterícia), conforme informa o livro À sombra do plátano – crônicas de história da medicina (2009), do médico brasileiro Joffre Marcondes de Rezende.
A doença não era conhecida na antiguidade – só a partir da “descoberta” da América, ela começou a ser reportada. De acordo com o livro História da febre-amarela no Brasil (1969), de Odair Franco, em 1495, quando Cristóvão Colombo estava em expedição na América, ocorreu uma batalha entre espanhóis e indígenas. Depois de um tempo, apareceu uma epidemia que fez numerosas vítimas. Pelos relatos do médico francês Bérenger-Féraud (1832-1900), a referida epidemia era de febre amarela.
Com sintomas de febre, dor de cabeça, calafrios, náuseas, dores no corpo, fadiga, icterícia e hemorragias diversas, a doença não tinha nenhuma semelhança com as enfermidades até então conhecidas pelo Velho Mundo. Conforme o livro de Odair Franco, antes da chegada dos espanhóis na América, os maias já haviam registrado a existência de uma grave enfermidade “que se apresentava por surtos epidêmicos, parecendo vir do fundo das selvas para invadir as povoações e dizimar seus habitantes”. Mas surge a dúvida de como esses povos contraíram a doença, já que por meio de estudos genéticos cientistas descobriram que o vírus da doença surgiu na África, antes de os escravos chegarem à América.
Ainda segundo o livro de Odair Franco, em 1635 o jesuíta francês Raymond Bréton (1609 – 1679) relatou uma epidemia entre os imigrantes franceses na ilha de Guadalupe, no México, e relacionou “a derrubada de árvores e a doença, ao registrar que ‘à medida que cortavam os bosques, a terra arrojava seu veneno’”. Além disso, o livro cita o padre Jean-Baptiste du Tertre (1610-1687), que chegou à ilha cinco anos depois e também fez um relato da epidemia, observando que as pessoas doentes “estavam ocupadas no corte de matas”. Historiadores consideram os relatos de Bréton e Du Tertre como a primeira descrição aceitável de uma epidemia de febre amarela silvestre.
A história da febre amarela no Brasil nasce no século XVII, quando a doença foi trazida por via marítima em embarcações procedentes das Antilhas. A primeira epidemia ocorreu em 1685, em Recife, Pernambuco. Rezende enfatiza que a doença “foi tema de um dos três primeiros livros de medicina escritos no Brasil, intitulado Tratado único da constituição pestilencial de Pernambuco, de autoria de João Ferreira da Rosa, publicado em Lisboa, em 1694”. A doença se tornaria o maior problema brasileiro de saúde pública no século XIX.
Atualmente, o Brasil vive o maior surto de febre amarela silvestre envolvendo principalmente os estados da região Sudeste, em particular Minas Gerais e Espírito Santo, de acordo com o Ministério da Saúde. “A última ocorrência de febre amarela urbana no Brasil foi em 1942, no Acre” informa Trabasso. O infectologista aponta que a febre amarela silvestre é impossível de ser erradicada e que há riscos de reaparecer a febre amarela urbana, uma vez que os mosquitos do gênero Aedes, capazes de transmitir a doença, foram reintroduzidos no Brasil e se expandiram por todo o território nacional. “Se por acaso um indivíduo adquirir a doença na floresta, for à cidade no período de viremia e exatamente neste período ele for picado pela fêmea de um mosquito Aedes, este mosquito será infectado pelo vírus da febre amarela”, explica o professor.
Como a transmissão dos vírus no mosquito se dá de forma transovariana (para ovos e larvas), sua prole estará automaticamente também infectada, amplificando de modo exponencial a contaminação dos mosquitos urbanos. Trabasso diz que há diversos fatores que contribuem para a ocorrência da febre amarela urbana, como o número de indivíduos susceptíveis à doença – ou seja, não vacinados – e o aumento da população de Aedes. “Quanto mais pessoas não imunes entrarem na mata, maior será o número de pessoas possivelmente infectadas e, por conseguinte, maior o número de possíveis pessoas retornando para a área urbana durante o período de viremia o que, associado a um maior número de Aedes em circulação, aumenta o risco de infecção deste mosquito”, relata.
Etiologia da doença
Nem sempre os cientistas souberam que o agente etiológico da febre amarela era um vírus. Alguns estudiosos defendiam que a enfermidade poderia ser contraída por bactérias. “As narrativas sobre a vitória da medicina científica contra a febre amarela privilegiam ora os Estados Unidos, ora Cuba, conforme o valor atribuído a dois episódios: a formulação da hipótese da transmissão pelo mosquito, por Carlos Juan Finlay, em 1880-81, ou sua demonstração pela equipe chefiada por Walter Reed, em 1990”, conta o livro Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada (2001).
A etiologia viral da doença só foi estabelecida em 1927, por investigadores da Fundação Rockefeller, criada em 1913, culminando numa vacina que seria fabricada em 1937, relata o livro Dos micróbios aos mosquitos: febre amarela e a revolução pasteuriana no Brasil (1999).
A partir de então, o combate à doença se tornou mais expressivo – mas embora a vacina seja segura e eficaz, nem todos podem tomá-la ou têm acesso a ela. Hoje o maior produtor mundial dessa vacina é o Brasil, por meio do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “A campanha contra a febre amarela no Rio de Janeiro é uma das páginas gloriosas da medicina brasileira, que consagrou o nome de Oswaldo Cruz e projetou o nosso país no cenário internacional”, ressalta Rezende em seu livro.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a doença cause a morte de 60 mil pessoas anualmente. “Existe uma variabilidade individual acerca da resposta imune às infecções, o que acarreta em diferentes manifestações clínicas. Em geral, não é o vírus que é mais letal, é o indivíduo que é mais susceptível. A letalidade da febre amarela gira em torno de 50%”, informa Trabasso.
A OMS contabiliza que 47 países sejam endêmicos ou tenham zonas de febre amarela endêmica – sendo 34 da África e 13 da América Central e América do Sul. A organização destaca que uma pessoa que esteja viajando em um país com febre amarela endêmica pode levar a doença para países livres da doença. Nos séculos XVII a XIX, a febre amarela foi levada para a América do Norte e Europa, causando enormes surtos.
“Eventualmente, uma pessoa pode contrair o vírus da febre amarela e não saber, principalmente se a manifestação clínica da doença for muito sutil e se o antecedente epidemiológico não for considerado – por exemplo, uma viagem para uma área de transmissão silvestre. Em casos assim, pode ser que o exame para diagnóstico da doença não seja realizado e, então, a pessoa fica sem saber se foi ou não infectada”, finaliza Trabasso.
Tássia Oliveira Biazon é formada em ciências biológicas pela Unesp Botucatu, com dupla diplomação pela Universidade de Coimbra, Portugal. Possui pós-graduação em jornalismo científico pela Unicamp e desenvolve um projeto de divulgação científica do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (Iousp), financiado pela bolsa Mídia Ciência da Fapesp.