Por Daniel Rangel
Imagem: Fundação Museu do Homem Americano
Segundo o filósofo Thomas Kuhn, as ciências operam em períodos de normalidade, quando paradigmas e conceitos estão bem estabelecidos, e em períodos de crise, quando as ideias vigentes não são capazes de explicar incongruências de novos dados e experimentos. A tentativa de estabelecer uma história sobre a ocupação humana no continente americano passou por um período de consenso, mas desde a década de 1970 novas descobertas aumentam a complexidade e o leque de perguntas sem respostas sobre essa história.
“A ocupação inicial do continente americano é uma das grandes questões em aberto da história humana no planeta. Seu apelo vem de uma dúvida essencial da condição humana: de onde viemos?”, escreve o jornalista e doutor em história da ciência Bernardo Esteves em seu livro Admirável novo mundo: Uma história da ocupação humana nas Américas. “Essa polêmica fascina porque não diz respeito apenas ao mistério sobre quem foram os primeiros americanos, de onde vieram e quando chegaram, mas também porque põe em questão o que é um achado arqueológico confiável e quem tem legitimidade para validá‑lo”, reflete Esteves sobre a forma como a ciência é estabelecida.
A comunidade científica possuí consenso em alguns pontos dessa história: os primeiros humanos surgiram por volta de 300 mil anos no continente africano, de onde iniciaram a dispersão pelo planeta. Eles chegaram ao continente americano vindos da Sibéria pela Beríngia (região que conectava a Ásia e a América durante os períodos glaciais) – e daí para frente as controvérsias dominam o debate. “O que as evidências mostram com clareza é que, por volta de 13 mil anos atrás, o continente americano estava amplamente ocupado de norte a sul. Havia grupos humanos em ambientes muito diferentes, explorando recursos variados e adaptados a um mundo que já não era novo para eles”, conta Esteves.
Pedro da Glória, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará que possui experiência em arqueologia e antropologia, reúne em seu trabalho de pesquisa o atual entendimento da comunidade científica sobre as ocupações iniciais das Américas. Pedro explica que há temas de forte consenso, como a rota de entrada pela Beríngia, vindos da Sibéria. “A rota inicial de entrada é o tema com maior consenso entre os pesquisadores, apontando para a Beríngia como a única via de chegada de populações asiáticas nas Américas. Ainda assim, há grupos minoritários que defendem entradas adicionais via Europa, África e Polinésia, porém sem evidências empíricas fortes.”, explica da Glória. Questões como a data de entrada dos primeiros humanos nas Américas, assim como o número de migrações ocorridas não possuem o mesmo nível de consenso na comunidade científica.
Bernardo Esteves apresenta três grandes modelos sobre as hipóteses a respeito da ocupação humana no território americano. O primeiro estipula um período de entrada há aproximadamente 13 mil anos, após o Último Máximo Glacial. O segundo modelo sugere um cenário em que a migração para o continente ocorreu em algum momento entre 18,5 e 13 mil anos atrás, também após o Último Máximo Glacial. E, por fim, há a defesa de que a ocupação ocorreu há mais de 19 mil anos, durante ou até mesmo antes da Era do Gelo.
A primazia de Clovis
Apesar das controvérsias recentes, já houve um tempo em que os cientistas dedicados a entender a ocupação humana no território americano estavam em maior consenso. A primazia de Clovis foi um paradigma dessa área do conhecimento durante a segunda metade do século XX, formulado e sustentado por pesquisadores dos Estados Unidos. Segundo essa ideia, os primeiros habitantes do continente americano seriam um povo que viveu por volta de 13 mil anos atrás, espalhados na região onde hoje é o território dos Estados Unidos. Eles ficaram conhecidos como povo de Clovis, um grupo de caçadores de grandes mamíferos que seriam os responsáveis por colonizar a América Central e do Sul. “A partir de então, toda e qualquer discussão relativa ao povoamento da América do Sul deve, inexoravelmente, se reportar ao contexto arqueológico do centro dos Estados Unidos, que passa a ser visto, segundo esse paradigma, como centro fundador do povoamento e de toda a diversidade cultural existente nas Américas”, considera Lucas Bueno, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina, em seu texto sobre a arqueologia do povoamento inicial da América
O que já foi considerado consenso, porém, hoje é considerado como incorreto. “Se não está claro se os humanos entraram nas Américas antes ou depois do Último Máximo Glacial, uma coisa que parece bem resolvida entre os arqueólogos é que o povo de Clovis não foi o primeiro a ocupar o continente”, pondera Bernardo Esteves. “O modelo da primazia de Clovis foi desbancado em 1997, com o reconhecimento da ocupação de Monte Verde, há mais de 14 mil anos”, completa. Atualmente o povo de Clovis não é mais reconhecido como o primeiro a habitar o continente americano, mas como um dos diversos grupos que constituíram a riqueza de diversidade cultural do continente.
A queda de Clovis
Desde a década de 1970, a primazia de Clovis vinha sendo abalada por novas descobertas. Uma das personagens dessa história é a pesquisadora franco-brasileira Niède Guidon, que há décadas defende e luta pela preservação do sítio arqueológico da Serra da Capivara, no Piauí. Em 1986, Niède publicou na respeitada revista científica Nature um artigo relatando a presença de vestígios humanos na América do Sul há pelo menos 32 mil anos, descoberta feita no sítio da Serra da Capivara e a datação feita com carbono-14. No entanto, as evidências apresentadas por Niède não foram completamente aceitas pela comunidade científica. A queda do modelo da primazia de Clovis só se tornou consenso quando o trabalho de escavações de um norte-americano, Tom Dillehay, encontrou vestígios de ocupação humana no sítio de Monte Verde no Chile, com datação de 14,6 mil anos.
Desde a queda do paradigma de Clovis, outras evidências têm surgido para tornar a história mais complexa. Escavações na caverna de Chiquihuite, no México, lideradas pelo arqueólogo Ciprian Ardelean, da Universidade Autônoma de Zacatecas, levaram os cientistas a concluir que um grupo ocupou o local há pelo menos 31 mil anos, muito antes do povo de Clovis. Pegadas humanas, datadas de aproximadamente 23 mil anos atrás, também foram encontradas na beira de um lago que secou no Parque Nacional de White Sands, nos Estados Unidos, aumentando as evidências de as Américas eram ocupadas antes do povo de Clovis.
Diante de tantas controvérsias, como saber a verdadeira história sobre o processo de povoamento das Américas? Para Bernardo, “a solução passa necessariamente por mais dados. Só será possível construir uma narrativa coerente, que consiga juntar os pontos fora da curva, com o estudo de mais sítios arqueológicos, mais remanescentes humanos, mais genomas antigos e contemporâneos”, ou seja, só com mais pesquisas e mais coletas de informações será possível tentar traçar com clareza como foi a ocupação humana no continente americano. “Enquanto isso, a arqueologia da ocupação das Américas continuará sendo um campo em busca de paradigma”, finaliza.
Daniel Rangel é formado em jornalismo e ciências, doutor em biotecnologia e monitoramento ambiental (UFSCar). Cursa especialização em jornalismo científico no Labjor/Unicamp.