Por Bruno de Sousa Moraes
A história da “memória imunológica”, responsável pela efetividade das vacinas, envolve o embaralhamento de genes, uma diversidade astronômica de moléculas e uma infecção que acabou sendo um golpe de sorte.
A temporada de vacinação contra gripe chega ao fim no dia 15 de junho. Até lá, as unidades de saúde continuam a receber filas e mais filas de pessoas que fazem parte dos grupos de risco. Idosos, crianças e gestantes esperam para receber injeções contendo partículas inativas do vírus da gripe, que serão reconhecidas pelo sistema imune, de forma a “preparar” o organismo para lidar com o vírus. Dessa maneira, caso a pessoa vacinada seja exposta à tosse ou espirro de alguém infectado — que carrega partículas virais que estão muito bem, obrigado — suas defesas já estarão a postos para cuidar da infecção antes que ela se instale.
Este fenômeno, denominado “memória imunológica” é mediado por células chamadas linfócitos. Os linfócitos são as grandes estrelas do que chamamos de “sistema imune adaptativo” que, como o nome sugere, tem a capacidade de se adaptar ao contexto e responder de maneira direcionada para cada ameaça apresentada ao organismo. O sistema imune adaptativo, além de ser o principal aliado do Zé Gotinha, é o que permite que se enfrente uma diversidade de doenças, lembrando-se delas e se mantendo capaz de responder de forma rápida caso ele encontre novamente os vírus, bactérias ou fungos. Ele também é uma espécie de privilégio no reino animal, já que não são todos os bichos que, como a espécie humana, são dotados dessa capacidade de “aprender” com as doenças passadas.
Os mecanismos que permitem aos linfócitos reconhecer e agir contra moléculas específicas são impressionantes e complexos. Mais impressionante, porém, é a história a respeito de como nossos antepassados adquiriram esses mecanismos pela primeira vez. Essa é uma história para se ler com certo tempo e atenção. Quem sabe uma leitura para te acompanhar enquanto você espera para tomar sua próxima vacina?
Anticorpos, receptores e impressões digitais
Não é incomum que se ouça a expressão “não faz mal, é bom que cria anticorpos!” quando alguém pega uma bolacha que acabou de cair no chão e coloca na boca. Vale a pena, então, falarmos um pouco mais sobre o que são esses tais anticorpos, já que a geração dos mesmos — bem como de outras moléculas e processos — é exatamente o objetivo da vacinação.
Anticorpos são moléculas produzidas por um tipo de linfócitos que recebe o nome de B. A natureza química dos anticorpos produzidos pelos linfócitos B é proteica, e proteínas são famosas na biologia pela sua capacidade de interagir com outras moléculas. É exatamente isso que os anticorpos fazem: em uma de suas pontas, eles têm estruturas que reconhecem e se ligam de maneira específica a moléculas chamadas de antígenos. Depois de ligados, podem neutralizar ou destruir microrganismos invasores de várias maneiras, auxiliados por outras células e mecanismos do sistema imune.
Mas parte do que torna os anticorpos tão especiais é a capacidade de reconhecer e se grudar a um único antígeno de forma muito específica. Ou seja, um anticorpo que reconhece uma proteína do vírus da gripe não é capaz de reconhecer proteínas do vírus da Zika, por exemplo. Essa especificidade garante que se consiga diferenciar os “inimigos”, e responder a cada infecção. E a grande diversidade de anticorpos que cada um de nós possui garante que o organismo seja capaz de reconhecer um número imenso de antígenos.
“Os receptores que se ligam a antígenos existem numa enorme diversidade, estimada em cerca de mil milhões de milhões de receptores diferentes. Acredita-se que formam um sistema completo, capaz de se ligar a todo tipo de molécula, natural ou sintética, de tamanho mínimo”, diz Alberto Nóbrega, professor do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Alberto fez seu doutorado em imunologia, mas essa foi uma mudança de área e tanto: sua graduação e mestrado haviam sido na matemática. Segundo ele, a existência de um sistema dotado de tanta diversidade foi uma atração inevitável para essa mente acostumada ao mundo dos números. De fato, lidar com “mil milhões de milhões” (uma ordem de grandeza que envolve QUINZE zeros) parece um trabalho mais adequado para um matemático do que para um biólogo.
Segundo o professor, uma analogia para entender a diversidade e a especificidade dos anticorpos seria a de “um sistema de reconhecimento de impressões digitais, capaz de distinguir uma gigantesca diversidade de digitais. Só que em nível molecular, reconhecendo e distinguindo as diferentes moléculas entre si”.
Alberto dedica-se a estudar os mecanismos que permitem que sejamos capazes de ler tantas “impressões digitais”. Ou seja, estuda o repertório de moléculas receptoras que dão origem aos anticorpos. Uma das coisas mais impressionantes encontradas por quem se debruça sobre essa tarefa está no fato de que aquele número impressionante de anticorpos não faz sentido se olharmos para o genoma. O genoma humano possui apenas um número aproximado de vinte e quatro mil genes. Esse número é quarenta e um bilhões de vezes menor do que o número de anticorpos, o que significa que mesmo que todos os nossos genes fossem destinados à produção dessas moléculas, a conta não fecharia. O que explica, então, a diversidade de anticorpos presentes no organismo?
É possível descobrir essa resposta ao olhar para as células que produzem os anticorpos, os linfócitos B. Essas células se organizam em linhagens de células praticamente iguais entre si, e cada linhagem produz um anticorpo específico. Isso significa mil milhões de milhões de linhagens. E se você comparar o material genético dessas linhagens de células, verá que os genes de cada linhagem são diferentes dos das outras. E diferentes de todas as outras células do organismo. Isso porque, no processo de se tornarem linfócitos, as células perdem uma parte do seu DNA, em uma série de etapas que envolvem o “embaralhamento” de regiões específicas do genoma. Essas são exatamente as regiões que contêm os genes responsáveis pelos anticorpos. E é nesse embaralhamento que reside o truque de mágica da diversidade.
Recombinação genética e os vírus ancestrais
Para entender como o embaralhamento e a perda de material genético resultam em quantidades astronômicas de linhagens de linfócitos específicos, vale a pena usar mais uma analogia, dessa vez para falar a respeito de como genes dão origem a proteínas. Pense nas suas células como impressoras 3D, que montam moléculas com base em instruções contidas nos genes. Um gene possui as informações que a célula precisa para saber quais aminoácidos colocar na ordem certa para fazer uma proteína. E a forma final dessa proteína é importantíssima para que ela cumpra sua função. Modificações nas “instruções de impressão” dos genes — que ocorrem, por exemplo, em mutações — podem alterar a forma de uma proteína, interferindo na sua função.
A região do genoma dos linfócitos que é embaralhada e cortada contém as instruções para a “impressão” dos receptores, que nos linfócitos B darão origem aos anticorpos. Essa região possui vários pedaços de genes, que funcionam como blocos de montar. No processo, chamado de “recombinação”, cada linfócito acaba com uma mistura diferente desses blocos de montar. Ou seja, instruções diferentes para a montagem de receptores diferentes. Como esse embaralhamento tem várias etapas e várias combinações possíveis, o número final de possibilidades é gigantesco. É dessa forma que o sistema imune consegue reconhecer até mesmo moléculas sintéticas. Ou seja, graças a esse processo de recombinação, temos a capacidade de nos defender até contra aquilo que não existe na natureza. Mas isso é apenas metade dessa história impressionante. Porque essa recombinação genética só é possível pela contribuição de um ser ancestral.
Como dito no início do texto, esse mecanismo de recombinação — e, por consequência, o sistema imune adaptativo como um todo — é um privilégio de alguns, uma aquisição mais recente na história do reino animal. Ele ocorre apenas em organismos mais complexos. Não há evidência dos mecanismos da imunidade adaptativa em nenhum invertebrado (como estrelas do mar, insetos e polvos) ou peixe primitivo sem mandíbula, como a lampreia. Apenas os vertebrados que descendem dos peixes com mandíbula (que incluem todos os mamíferos, aves, anfíbios e répteis) possuem as enzimas que promovem a recombinação, que são chamadas de proteínas RAG (do inglês Recombination Activating Genes; ou Genes de Ativação da Recombinação). Como nossos antepassados peixes adquiriram os genes RAG?
“Sem dúvida é um caso de herança genética por transferência lateral [quando um organismo recebe genes diretamente de outro, de maneira não-hereditária], e não por descendência vertical na linhagem do organismo”, explica Alberto. E completa: “as RAGs nos foram doadas por vírus, num passado remoto, há cerca de 500 milhões de anos”.
Os genes que pulam
Os vírus que nos deram as proteínas RAG deixaram de ser vírus há muito tempo. Eles se tornaram uma classe de entidade biológica que os geneticistas chamam de transposon ou elemento de transposição. O biólogo e pesquisador do Instituto Aggeu Magalhães, da Fundação Oswaldo Cruz, Gabriel da Luz Wallau, começou a estudar os transposons ainda na graduação, e conta que eles funcionam de um jeito que parece ficção científica: “Os transposons são, literalmente, um pedaço de DNA capaz de se mover de um lugar para o outro do genoma. Essa movimentação é realizada por uma ou algumas poucas proteínas que são codificadas pelo próprio transposon e que são transcritas e traduzidas utilizando a maquinaria molecular do genoma hospedeiro. As proteínas então vasculham o genoma hospedeiro até encontrar a sequência característica onde está o transposon. Por exemplo, existem regiões repetitivas no limite do transposon que permitem à proteína reconhecer onde ele inicia e termina”.
Se você estranhou o uso da palavra “hospedeiro”, mais utilizado no contexto de doenças, a história do primeiro contato de Gabriel com os transposons vai esclarecer um pouco as coisas. Ela também parece bastante ter saído de uma ficção científica, especialmente para quem já assistiu o remake de David Cronenberg do filme A mosca.
“Meu orientador desenvolveu seu doutorado caracterizando populações naturais de drosófilas [as mosquinhas de frutas] hipermutáveis. Ou seja, uma linhagem mantida em laboratório na qual um grande número de mutantes aparecia a cada geração”, diz ele. E as mutações eram dignas de um filme de terror. “Por exemplo, havia indivíduos com olhos brancos em vez do característico vermelho, ou com bolhas nas asas. Alguns indivíduos sem asas, e até com uma pata no lugar da antena. E na ponta dessa falsa antena se desenvolveram novos olhos. Ele descobriu, no seu doutorado, que essas mutações estavam diretamente relacionadas às atividades dos elementos genéticos móveis, os transposons”.
Essas mutações perturbadoras eram frutos da movimentação dos transposons ao longo dos genes das moscas. Não é incomum que transposons ativos despertem e recomecem a saltar pelo genoma. E quando eles se inserem no meio de algum gene importante, podem alterar o funcionamento dele, ou mesmo silenciá-lo completamente. Em seres humanos, nos quais os transposons correspondem a aproximadamente 44% do genoma, já existem evidências do envolvimento de transposons ativos em doenças como a esclerose lateral amiotrófica, a doença degenerativa que acometeu o astrofísico Stephen Hawking. Mas não precisa se preocupar tanto. Ao que parece, os transposons costumam ficar parados, e as nossas células têm suas artimanhas para mantê-los quietos.
“Até o momento, a maioria das evidências mostram que os transposons que invadem um determinado genoma entram em uma fase de replicação ativa e, ao longo do tempo, vão se degenerando até serem perdidos, ou acumulam tantas mutações que não conseguimos mais reconhecê-los como originários de transposons”, diz Gabriel. “Outras evidências também apontam que eles podem ser regulados pelo genoma hospedeiro, mas tão logo essa regulação para de funcionar, ou os transposons conseguem escapar desses mecanismos, os mesmos voltam a se mobilizar e gerar novas cópias. Eventualmente algumas cópias dos transposons podem ser cooptadas e selecionadas para novas funções no genoma hospedeiro, perdendo a capacidade de movimentação e trazendo benefícios ao mesmo”.
Aparentemente, foi esse o caso do transposon que deu aos nossos antepassados o sistema imune adaptativo. Ao se inserir num lugar específico do genoma, ele conferiu acidentalmente uma grande vantagem no que diz respeito à sobrevivência em um mundo cheio de outros parasitas, que é a capacidade de reconhecê-los com alta precisão e ir além dos limites da informação do código genético. Provavelmente muitos dos peixes primitivos que foram vítimas desse parasita genético morreram ou desenvolveram doenças terríveis. Como Gabriel conta, os eventos mais catastróficos não deixam registros, porque os indivíduos são eliminados na corrida da evolução. O que sobra são as combinações mais harmônicas, como a das proteínas RAG. Mas o transposon também ganha algo no processo.
Uma combinação de milhões de anos
“As interações têm uma influência enorme na evolução das espécies. O próprio Darwin, no final de A origem das espécies, descreve a natureza como uma grande teia de interações, e as conexões que ligam essa enorme teia são fascinantes para mim”. A dona desse fascínio pela grande teia das interações é a bióloga e professora do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná Karla Magalhães Campião. Karla estuda interações ecológicas, nas próprias palavras “buscando entender como as interações entre espécies influenciam e são influenciadas pelo mundo à nossa volta.”
Ao favorecer o organismo no qual se inseriu, o vírus ou transposon do qual os vertebrados herdaram as proteínas RAG também acabou favorecendo a si mesmo. Isso porque ele se reproduz e se mantém na grande história da vida sempre que esse hospedeiro deixa descendentes. E se pensarmos em toda a diversidade de vertebrados que carregam os genes responsáveis pela diversidade de receptores de linfócitos, podemos ver que essa combinação deu bastante certo para ambas as partes.
“Mutualismo é o termo que usamos para classificar a associação que aumenta o valor adaptativo de ambos os organismos que estão interagindo. Quando essa ou outra interação biológica é muito próxima, chamamos de simbiose. O termo foi definido pelo micologista (estudioso de fungos) Anton de Bary, em 1879, e significa literalmente o ‘morar junto’ de ‘organismos dissimilares’”, diz Karla.
A ideia de vírus ou transposons como simbiontes é um pouco estranha mesmo para estudiosos das interações ecológicas. Isso porque, mesmo sendo entidades biológicas, esses pequenos elementos genéticos não são encarados pela biologia como formas de vida propriamente ditas. Além disso, é mais comum pensarmos nesses pedaços de DNA apenas como parasitas. Mas não é impossível que interações ecológicas mudem de direção.
“Parasitismo e mutualismo podem ser vistos como extremos em um continuum, e as espécies interagem de forma dinâmica no gradiente entre os extremos. Considerando a dinâmica da evolução pelo processo de seleção natural, o que vemos é apenas um recorte da realidade, e mudanças em ambas as direções devem ser muito mais comuns na natureza do que imaginamos. Acredita-se que a associação mutualística entre a vespa que poliniza a flor do figo já foi um parasitismo no passado. Por outro lado, muitos parasitos de pele de vertebrados devem ter sido mutualistas, que prestavam um serviço de limpeza aos seus hospedeiros”, diz Karla. Ela explica que essas mudanças de direção podem ocorrer até mesmo no chamado “tempo ecológico”, ou seja, durante o tempo de vida de um indivíduo, sem depender da passagem de várias gerações.
“Por exemplo, os mutualistas de limpeza que mencionei, que se alimentam de microrganismos que habitam a pele dos hospedeiros, podem passar a se alimentar da própria pele onde vivem em um contexto de escassez de recurso ou mudança no ambiente. Ou seja, uma mesma espécie pode ser classificada como mutualista ou parasita, dependendo do contexto. A literatura científica é cheia de exemplos assim, e mostra que a natureza de fato desafia a nossa lógica e conceitos”.
Dos exemplos que desafiam a lógica humana, talvez a história dos vírus, transposons e linfócitos seja um dos mais fascinantes. No mínimo, ele é responsável por salvar milhões de vidas no mundo inteiro, em campanhas de vacinação como a da gripe. Afinal de contas, vírus que mudam de parasitas para simbiontes são extremamente raros. Na dúvida, é melhor se proteger.
Saiba mais
O episódio do podcast Oxigênio aborda os transposons em plantas.
Bruno de Sousa Moraes tem graduação em ciências biológicas (UFRJ), mestrado em ecologia (UFRJ) e é aluno do curso de pós-graduação em jornalismo científico do Labjor/Unicamp.