Por Jorge Antônio M. Abrão
Desde a segunda metade do século XX temos passado por um processo crescente de virtualização das atividades humanas, ou seja, temos cada vez mais rompido a barreira entre o que costumeiramente é chamado de mundo real e virtual. Esse processo engloba desde a virtualização dos processos comunicativos e das relações de trabalho até o consumo e as relações pessoais – o qual foi acelerado e intensificado neste ano devido à pandemia de covid-19. Assim, pretendo rever alguns dos principais pontos desse processo sob o olhar do interacionismo simbólico tentando entender se o virtual é o novo real, a partir da premissa de que a internet se constitui um espaço de interação social.
Apesar ser um elemento novo da trajetória humana a internet instaura uma simultaneidade na comunicação mediada, por trabalhar em tempo real, e altera as dimensões do espaço, por tornar presente e disponível algo que está completamente distante no espaço geográfico. Assim, é possível afirmar que ela não é uma nova mídia: é uma nova dimensão, espaço de circulação simbólica, de fluxos incessantes, arquivo vivo e renovado de ideias, produtos e informações.
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer o que se entende por interacionismo simbólico. Criado por Herbert Blumer, em meados da década de 1937, o termo nomeia uma perspectiva de estudo da sociedade baseada em um modelo de comunicação interacional. Nessa perspectiva teórica, as comunidades são formadas por indivíduos ativos guiados pela interpretação dos significados dados. Esses significados são construídos na interação social da comunicação e, portanto, são um elemento-chave na compreensão dos processos de interação, destacando a comunicação como instrumento de criação da realidade através de um processo dinâmico e interativo, assim, não se pode estudar ou entender as associações humanas fora do contexto comunicativo.
No conceito de interação social identificam-se duas formas: a não-simbólica e a simbólica. A interação simbólica é a interação em que um processo social é percebido e redefinido, não pela ação direta do indivíduo, e sim pela interpretação a partir dos significados atribuídos a esse processo. Tais significados são construídos na interação social a partir da comunicação e, assim, são um elemento-chave para entender esses processos. A teoria, então, se baseia em três premissas: a) o indivíduo age diante de situações e de outras pessoas de diferentes formas devido ao significado dado a essas coisas e pessoas; b) esse significado é construído a partir das interações sociais e c) pode se manter ou ser alterado mediante um processo interpretativo próprio ao indivíduo[i].
O interacionismo simbólico se torna um conjunto teórico adequado para o estudo das relações na internet, já que essa teoria parte do pressuposto que uma comunidade é formada por indivíduos que agem conforme os significados construídos na interação social e dados aos atos, fatos e coisas. Se em seu início – em um contexto urbano que permitiu o contato de diferentes culturas e modos de ver o mundo, como dito anteriormente – os interacionistas voltaram suas pesquisas essencialmente para as interpelações face a face, agora, em um momento em que as possibilidades de contato se potencializam devido ao surgimento da cibercultura, é possível dizer que o interacionismo simbólico obtém um novo ponto de interesse e uma nova força. Se antes a cidade e as interações que possibilitava eram o ponto de partida para a pesquisa, agora a internet e as tecnologias digitais se firmam como tal.
Meyrowitz intensifica nossa compreensão da internet como lugar de interação simbólica quando diz que “o contato social não ganha significado apenas pela presença física e pelo lugar físico para interação, mas ganha significado a partir da mídia que utiliza”[ii].
Os sites e aplicativos de redes sociais – como Facebook, Instagram, Whatsapp, Twitter, e, mais recentemente, o TikTok – são, se não essenciais, presentes na vida de grande parte da população. Sendo usado desde a troca de mensagens entre amigos sobre o dia a dia até a disseminação de fake news em massa influenciando eleições e a opinião pública. Devido ao seu potencial interativo e criativo vemos as redes sociais como um espaço não somente de circulação, mas de produção de significados. A produção e a circulação de conteúdo, aliadas às particularidades técnicas disponibilizadas, no e pelo ambiente virtual, oferecem condições para a emergência de comportamentos sociais entre os indivíduos, ao mesmo tempo em que estes indivíduos se utilizam dessas mesmas condições para a formatação de novos cenários de interação, em que os significados são negociados, modificados e alterados.
Os processos de virtualização nas sociedades contemporâneas também são refletidos no consumo. Se por um lado o e-commerce ameaça e provoca o fechamento de empresas que não conseguem se adaptar, por outro lado o indivíduo vê nele mais uma oportunidade de consumir, aumentando acesso a marcas e produtos que não possuía antes, mesmo que não sejam originais.
Na indústria cultural, os serviços de streaming – como Netflix e Spotify – que podemos entender como ambientes híbridos de comunicação, produção e consumo do simbólico também apresentam dicotomias. Enquanto expandem a oferta da produção cultural com o crescente acesso das camadas mais pobres à internet, especialmente por meio dos smartphones, também oferecem desafios em relação à regulação da arrecadação de direitos autorais e as barreiras à distribuição de produções regionais. Além disso, os serviços de streaming, apesar de oferecem uma facilidade com agregadores de conteúdos, possuem algoritmos que induzem o consumo e a criação de conteúdos, o que nem sempre favorece a pluralidade de gêneros e produções locais.
Ainda no universo do simbólico, acompanhamos nos últimos anos o surgimento de uma moda virtual. Esse tipo de moda é a continuação de uma tendência que vimos ser acelerada durante o covid-19. Inicialmente criadas para jogos, roupas virtuais não são uma novidade no mercado. Porém, o que se acentua agora é a criação de peças criadas exclusivamente para serem “vestidas” e compartilhadas por pessoas reais e não mais por personagem de videogame. Uma série de empresas começou a criar e vender modelos 3D de peças que são adicionados e ajustados à foto de quem comprou, e esse indivíduo tem então a possibilidade de compartilhar sua foto usando a roupa em suas redes sociais.
Devido à pandemia a maioria das marcas de moda pausou apresentações nas passarelas reais e as substituiu por curtas-metragens ou visitas virtuais a showroom para transmitir sua visão sazonal. Porém, mesmo antes dela, já havia indícios de como a moda poderia existir apenas virtualmente como é o caso de @lilmiquela e @shudu.gram, avatares que se tornaram grandes estrelas da moda. Além delas, sites de comércio eletrônico também estão permitindo a compra de itens sem que o cliente veja ou toque a peça pessoalmente
A criação e utilização dessas peças reforça ainda mais o caráter simbólico tanto da moda quanto das redes sociais, e apaga ainda mais a fronteira entre o virtual e o real. E isso é possível devido as mídias sociais terem nos treinado para nos vestirmos para um público virtual em vez de puramente físico.
Podemos concluir, então, que os objetos – discursos, imagens, roupas etc – circulados virtualmente são interpretados como produtos sociais formados e transformados através de um processo de (res) significação constante, que influencia e é influenciado pelo virtual. Virtual esse que admite cada vez mais práticas cotidianas e, por isso, estamos cada vez mais inseridos e dependentes. Assim é necessário voltar à pergunta-título: o virtual é o novo real?
Jorge Antônio M. Abrão é mestre em ciências da comunicação pela ECA/USP e coordenador editorial da revista Rua (Labeurb/Unicamp)
Referências
[i] Blumer, H. Symbolic interactionism: perspective and method. University of California Press, 1986.
[ii] Meyrowitz, J. No sense of place: the eletronic media on social behavior. London, Oxford University, 1985