Por Peter Schulz
“Nós aprendemos a falar. E nós aprendemos a ouvir. A fala tem permitido a comunicação de ideias, permitindo aos seres humanos trabalhar em conjunto. Para construir o impossível. As maiores conquistas da humanidade surgiram em decorrência da fala. E os maiores fracassos pela falta dela. Não precisa ser desta forma! Nossas maiores esperanças poderiam se tornar realidade no futuro”.
Essa é parte da letra da música “Keep talking” do grupo Pink Floyd [clique aqui para ouvir], declamada por Stephen Hawking com sua voz metálica. A música é do álbum Division bell, lançado em 1994. Hawking já era uma celebridade, falando sobre a linguagem para construir o impossível e que o fracasso nessa construção seria decorrência da falha de comunicação. Ser uma celebridade parece garantir a fala contínua, rumo às maiores conquistas da humanidade. Stephen Hawking, segundo um artigo publicado no The Guardian em 2013, comentando um documentário sobre o cientista, então recentemente lançado, “de fato saboreou experimentar as fronteiras do conhecimento, mas o que realmente parece excitá-lo é o aplauso que ele provoca na multidão”[i]. Hoje são inúmeros os obituários que destacam as referências pop de Hawking, de participação em programas de auditório a pontas em comédias, bem como suas contribuições à ciência, mas nessa memoração apressada fica ao largo o roteiro de uma tragédia (no sentido dado pela dramaturgia) científica como poucas na história.
A celebridade britânica foi responsável por algumas das grandes conquistas num longo encadeamento delas na ciência moderna[ii]. Algumas disruptivas, mas emaranhadas em uma antiga tradição da ciência: o reducionismo, que como a celebridade, nos seduz desde pelo menos a época dos pré-socráticos. Na física, o reducionismo se liga à ideia de uma teoria de tudo, não o filme homônimo sobre a vida de Hawking, mas o “arcabouço teórico que explicaria completamente e conectaria todos os aspectos físicos do universo”. Ideia antiga que se modifica, pois o “tudo” conhecido vai mudando. Para Isaac Newton, no século XVII, o tudo era mecânico, para Einstein no século XX, a parte principal do tudo era gravitacional e eletromagnética. Para Stephen Hawking (e outros) era (é) juntar a descrição do mundo microscópico da mecânica quântica com a do mundo macroscópico da relatividade geral, originando a gravitação quântica.
Stephen Hawking ajudou a descrever tanto as singularidades e, portanto, a origem do universo (o famoso Big Bang), quanto possivelmente suas entidades mais singulares, os célebres buracos negros: uma região do espaço-tempo (desde a teoria da relatividade não podemos separá-los, como fazemos no nosso cotidiano) que provoca efeitos gravitacionais tão intensos que nada – nem partículas de matéria, nem qualquer tipo de radiação (luz, por exemplo) – pode escapar de seu interior. Mas não é bem assim, Hawking previu que existe uma válvula de escape nos buracos negros, para determinadas condições, que permite que escape radiação térmica (vulgo calor), que ficou conhecida como radiação de Hawking. Sua teoria prevê que buracos negros poderiam evaporar e o artigo publicado na revista Nature em 1974 tem o sugestivo título “Explosões de buracos negros?”. Nessa previsão juntam-se a mecânica quântica e a gravitação na famosa fórmula, que o físico e cosmologista britânico declarou querer como epitáfio:
Aqui h é a famosa constante de Planck, assinatura da mecânica quântica e G a constante universal da gravitação. Em uma equação aparece a possibilidade de que buracos negros emitam algo e, ao mesmo tempo, uma oportunidade para a teoria de tudo. O que se seguiu foi um intenso esforço intelectual em torno dessa ideia, que provavelmente levou Hawking a escrever em 1981 o artigo “O fim da física teórica está á vista?”[iii]. O primeiro parágrafo declara:
“Neste artigo eu quero discutir a possibilidade de que o objetivo da física teórica pode ser alcançado em um futuro não tão distante, digamos, até o final do século. Com isso eu quero dizer que poderíamos ter uma teoria completa, consistente e unificada das interações físicas que descreveriam todas as possíveis observações.”
Dois anos depois um novo passo nessa direção com o trabalho “A função de onda do universo”[iv]. A função de onda é o descritor da natureza na mecânica quântica, mas o universo no caso era apenas um modelo simples para o nosso. Mas em outro polo da ciência, nessa mesma época, sublevaram-se os físicos defensores da emergência contra a redução. Phillip Anderson, prêmio Nobel de Física em 1977, publica em 1972 um manifesto na revista Science, intitulado “More is different”[v]: “A habilidade de reduzir tudo a leis fundamentais simples não implica na habilidade de, a partir dessas leis, reconstruir o universo.” Mais recentemente, Robert Laughlin, prêmio Nobel de Física de 1998, parafraseia o seu colega: “A teoria de tudo (everything) não é a teoria de todas as coisas (every thing)”.
Nos últimos anos, em um novo ato da tragédia, Hawking, junto com Leonard Mlodinow, muda de opinião no artigo publicado pela Scientific American em 2010: “A ilusória teoria de tudo” [vi]. A linha fina do artigo resume sua tese: “Físicos procuraram por muito tempo uma teoria final que unificaria toda a física. No lugar disso eles teriam que se ajustar a várias”. No final do artigo é possível ler uma proposta de acordo com Anderson e Laughlin, pois conclui que “cada teoria pode ter sua própria versão da realidade. Mas de acordo com um realismo que depende de modelos, essa diversidade é aceitável e nenhuma das versões pode ser tomada como mais real que outra. Não é a expectativa tradicional dos físicos de uma teoria da natureza… Mas pode ser assim o caminho do universo.”
Em torno da busca de versões da teoria de tudo, surgem também vozes questionando a própria falseabilidade como critério na ciência, perguntando-se se uma teoria que propõe uma descrição elegante para o mundo a nossa volta – mesmo que suas previsões não possam ser testadas – não poderia ser considerada como ciência[vii].
No fim da vida, Stephen Hawking permitiu o acesso livre ao prólogo dessa tragédia, sua tese de doutorado[viii] de 1966 sobre “As propriedades dos universos em expansão”. O epílogo é seu último artigo, disponível em repositório livre[ix], mas ainda em revisão para publicação, e que parece propor uma maneira de verificar experimentalmente parte de suas teorias sobre os universos. O recado de Hawking é que a elegância não é suficiente para uma teoria.
Como no teatro, é importante ver a obra (e sua trajetória) como um todo e não como muitos espectadores, que não voltam à plateia depois do intervalo.
Peter Schulz foi professor do Instituto de Física “Gleb Wataghin” (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em física e cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos (Vieira & Lent, 2009 hunting crossbows) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010). É secretário de comunicação da Unicamp (gestão Marcelo Knobel, 2017-2020).
[i] https://www.theguardian.com/film/2013/aug/15/stephen-hawking-celebrity-culture
[ii] https://www.theguardian.com/science/2012/jan/08/stephen-hawking-science-greatest-hits
[iii] http://iopscience.iop.org/article/10.1088/0031-9112/32/1/024/pdf
[iv] https://journals.aps.org/prd/pdf/10.1103/PhysRevD.28.2960
[v] http://robotics.cs.tamu.edu/dshell/cs689/papers/anderson72more_is_different.pdf
[vi] https://www.scientificamerican.com/article/the-elusive-thoery-of-everything/
[vii] http://www.pbs.org/wgbh/nova/blogs/physics/2015/02/falsifiability/