Por Fernanda Cruz e Dayse Miranda
Quando analisamos os dados estatísticos acerca das mortes e crimes violentos no Brasil é fácil concluir que somos um país violento. Nossas taxas anuais de homicídio frequentemente ocupam posições de destaque em rankings mundiais. Nesse quadro, jovens e negros têm maiores chances de ser vítimas, e parte importante desses homicídios ocorrem com a participação da polícia, seja por meio de confrontos diretos ou por ações em que foi aplicado excessivamente o uso da força. Esse quadro é amplamente debatido por aqueles que se dedicam a estudar as instituições de segurança pública. Nessa perspectiva, existem inúmeras propostas comprometidas com a reversão desse quadro.
Em contrapartida, menos atenção tem sido dispensada a temas como a saúde física e mental desses profissionais. Para os sociólogos Sérgio Adorno e Alba Zaluar isso estaria relacionado à visão instrumental que a sociedade possui dos policiais como produtores de segurança pública [1]. Ao mesmo tempo, é preciso considerar a exposição ao risco que esses profissionais sofrem no desempenho de suas atividades diárias, e seus possíveis impactos na saúde física e mental.
O que já sabemos?
Alguns estudos internacionais encontraram relação entre adoecimento mental e ocupação. Nessa perspectiva, os policiais estariam em um grupo de elevado risco para o adoecimento mental e o suicídio [2]. Apesar de ainda serem escassos, os estudos realizados no Brasil também confirmam a hipótese de maior risco para o suicídio entre os policiais [3].
Muitas questões relacionadas ao suicídio desses profissionais permanecem em aberto. Buscando esclarecer essas questões elaboramos um estudo na polícia militar do estado do Rio de Janeiro [4]. O estudo abrangeu três das quatro categorias de violência autoinflingidas previstas pela Organização Mundial da Saúde (OMS): ideação suicida, tentativa de suicídio e suicídio consumado[1].
Foram aplicados 224 questionários e, em seguida, realizadas 211 entrevistas com os mesmos policiais militares que haviam respondido ao questionário. Os policiais foram classificados em três categorias: os que haviam tentado suicídio (10% dos casos válidos), os que haviam pensado em suicídio (22% dos casos válidos) e o grupo controle, ou seja, policiais que não haviam pensado, nem tentado suicídio (68% dos casos válidos). Com essas categorizações, pudemos aprofundar elementos relacionados aos fatores de risco e aos fatores de proteção ao suicídio. Para analisar os casos de suicídio consumado, foram entrevistados parentes e amigos de policiais mortos por suicídio.
O estudo realizado na polícia militar do Rio de Janeiro foi um estudo pioneiro sobre o tema no Brasil. Desde então, outras iniciativas foram realizadas. Em 2019, a ouvidoria de polícia de São Paulo em parceria com o Conselho Federal de Psicologia e o Conselho Estadual de Psicologia lançou um trabalho que analisou o tema na polícia militar e na polícia civil paulista [6].
Em São Paulo, foram analisados 53 suicídios ocorridos entre 2017 e 2018, sendo 36 deles na polícia militar e 17 na polícia civil. É preciso considerar que o efetivo da polícia civil é expressivamente inferior ao da polícia militar. A taxa de suicídio entre policiais civis foi de 30,3 e 21,7 entre policiais militares, o que torna o suicídio um problema ainda mais grave na polícia civil paulista.
A partir dessas pesquisas e em diálogo com a literatura internacional sobre o tema, destacamos alguns elementos importantes. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente o estresse inerente à atividade policial. Cabe a esses profissionais mediar e manejar uma série de situações nem sempre planejadas e que demandam ação rápida e assertiva.
Em seguida, é preciso considerar aspectos organizacionais. Como esse profissional é tratado internamente? Como é a relação com seus superiores? Ele se sente valorizado pela sua instituição? A satisfação no desempenho do trabalho é um elemento importante para pensar a promoção da saúde mental e, consequentemente, o adoecimento mental. No Rio de Janeiro, identificamos que dentre os 152 policiais que não haviam pensado nem tentado suicídio, 52% disseram estar satisfeitos e muito satisfeitos em trabalhar na PMERJ; a satisfação caía para 24% entre os que pensaram em suicídio e 18% entre os que tentaram suicídio.
Tanto no contexto paulista, quanto no contexto carioca, pudemos identificar que por vezes a transferência de unidade ocorre sem a concordância ou aviso prévio ao policial, prática comumente utilizada como forma de punição informal nas instituições policiais. Esse tipo de transferência pode gerar uma série de problemas, como de ordem financeira, quando o novo posto de serviço não possibilita conciliar com os trabalhos extras realizados por esse policial ou quando o deslocamento se torna longo e custoso. Pode implicar ainda em maior afastamento da família e maior privação de sono, nos casos que o policial é transferido para locais distantes de sua residência.
As relações interpessoais são outro elemento importante para pensar esse grupo. A decisão de entrar para uma instituição policial é evidentemente uma decisão que gera impactos na vida. Certamente esses impactos podem ser atenuados ou acentuados a partir do local de trabalho, a função desempenhada, o local onde reside, a forma como concebe seu próprio trabalho. Entretanto, é notável que se tornar um policial ocasiona mudanças na vida de um indivíduo. A amplamente disseminada ideia do policial como um indivíduo inabalável contribui para que ele tenha dificuldade de demonstrar características ou sentimentos que possam contradizer essa imagem. Por conta disso, identificamos entre os policiais maiores dificuldades de confiar em outras pessoas, de expressar seus sentimentos. E, em alguns casos, maior isolamento. Um exemplo disso são policiais que, por viverem em áreas dominadas por grupos criminosos, evitam frequentar espaços de lazer por acreditarem estar mais expostos.
A presença de dependência química ou demais doenças mentais também foram elementos encontrados nas pesquisas que abordaram o suicídio entre os profissionais de segurança pública. Os policiais que apresentaram comportamento suicida alegaram sentirem-se mais deprimidos ou sem perspectiva do que os do grupo controle. Afirmaram sentirem pouco interesse ou prazer em realizar as atividades de trabalho e relataram ter problemas relacionados ao sono.
É preciso ainda destacar a relação entre o suicídio e a ocupação no que compete ao meio empregado tanto nas tentativas quanto no suicídio consumado de policiais. Enquanto no Brasil o principal meio empregado para o suicídio é o enforcamento, entre os policiais a arma de fogo é o principal instrumento utilizado, tanto entre as tentativas quanto entre os suicídios consumados [5].
Quando se debate sobre o suicídio muitas pessoas buscam as motivações para o episódio. Neste momento, ganham força explicações como separações conjugais, problemas financeiros, entre outros. Com base na literatura nacional e internacional existente e nos resultados apresentados pelas pesquisas aqui mencionadas, propomos uma interpretação do suicídio como um elemento multidimensional. De acordo com essa perspectiva, diversos fatores relacionados aos acima citados podem acentuar ou atenuar o comportamento suicida. A imagem a seguir apresenta algumas possibilidades de interação entre esses fatores:
Por exemplo, um policial que tentou suicídio após vivenciar uma separação conjugal recentemente e vivencia uma situação extrema de estresse no trabalho. Ao mesmo tempo, por ser uma pessoa introspectiva, não compartilha esses sofrimentos com ninguém. Nesse caso, os elementos relacionados a sua vida pessoal em conjunto com os fatores situacionais do trabalho e a baixa qualidade do seu relacionamento interpessoal contribuíram para que ele desenvolvesse o comportamento suicida.
Ao mesmo tempo, é preciso ressaltar que os fatores apresentados como de risco ligados ao comportamento suicida também podem ser pensados como fatores de proteção. O desenvolvimento de ações comprometidas com o aprimoramento das relações de confiança interpessoal, estímulos ao aumento da sociabilidade informal, bem como melhorias na relação entre os comandantes e subordinados podem contribuir para proteger esses policiais do adoecimento mental e fortalecê-los numa rotina de trabalho intensa.
Onde ainda é preciso avançar?
Em primeiro lugar, destacamos a necessidade do desenvolvimento de estratégias comprometidas com o aprimoramento da qualidade dos dados. Ainda existe bastante subnotificação nos dados sobre suicídio e tentativa de suicídio entre os policiais. Apesar disso, podemos dizer que nos últimos anos o tema passou a ser mais discutido no interior das instituições. No entanto, a rede de atendimento e amparo aos policiais e seus dependentes ainda é bastante frágil.
Como perspectivas futuras, apontamos a necessidade de ampliar o escopo desse estudo para os familiares dos policiais. Tanto no que tange aos homicídios seguidos por suicídio cometidos pelos policiais, quanto a tentativas e suicídios consumados cometidos por familiares dos policiais, por vezes utilizando a arma de fogo daquele.
Ressaltamos ainda a importância de que tanto as pesquisas quanto as políticas públicas incluam os policiais que estão passando para a inatividade, o que identificamos como um momento de atenção para o adoecimento mental.
Por fim, ressaltamos também a necessidade do desenvolvimento de serviços para os policiais que vivenciam alguma situação de extremo estresse no desempenho da função, considerando que o retorno imediato ao trabalho pode significar um risco para esse policial, seus familiares, seus colegas de trabalho e toda sociedade.
Fernanda Cruz é socióloga, pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência (NEV-USP), pesquisadora associada do Grupo de Estudos de Pesquisa em Suicídio e Prevenção (Gepesp).
Dayse Miranda é socióloga, doutora em ciência política pela USP e coordenadora do Grupo de Estudos de Pesquisa em Suicídio e Prevenção (Gepesp)
Nota
[1] A quarta categoria é a automutilação, que não foi contemplada neste trabalho.
Referências
[1] Minayo, C; Adorno, S. “Risco e (in)segurança na missão policial”. In: Ciência Saúde Coletiva, 18(3):585-593, 2013.
[2] Kates, A. R. CopShock, second edition: surviving posttraumatic stress disorder (PTSD). Cortaro: Holbrook Street Press, 2008.
[3] Musumeci, B.; Muniz, J. Relatório de pesquisa sobre ‘mapeamento da vitimização de policiais no Rio de Janeiro’. Cesec, 1998.
[4] Miranda, D. (org.). Por que policiais se matam? Diagnóstico e prevenção do comportamento suicida na polícia militar do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Mórula, 2016.
[5] Gepesp. Boletim Gepesp 2019: “Notificações de mortes violentas intencionais e tentativas de suicídios entre profissionais de segurança pública no Brasil”. Rio de Janeiro, 2019.
[6] Ouvidoria da polícia de São Paulo. Uma análise crítica sobre o suicídio policial. São Paulo, 2019.