O que os neutrinos astrofísicos podem nos dizer sobre as estrelas

Rodolfo Valentim  e Jorge Horvath

Neutrinos são partículas elementares, na sua definição mais simples: são indivisíveis e pertencem à família do léptons (“leves”). Desta família, os membros são os elétrons, múons e os taus. O mais famoso membro é o elétron, que foi descoberto em 1897 por J. J. Thomson (1856-1940) quando ele mediu a razão entre a carga e a massa do elétron (q/m). Esta descoberta foi decisiva para a formulação do modelo atômico de N. Bohr (1855-1962), em 1911. O ideia de postular uma partícula como o neutrino surgiu de um fenômeno conhecido como decaimento beta. Esse decaimento de uma partícula como um elétron é emitida por um núcleo atômico quando decai. E apresentava um problema fundamental: a energia não era conservada. Nesse processo, próton/nêutron decaem em nêutron/próton e elétrons/pósitron (elétron de carga positiva). As duas expressões a seguir mostram exemplos do decaimento beta em núcleos atômicos:

Z é o número atômico (número de prótons) e A é o número de massa (número de prótons mais número de nêutrons). Neste processo próton/nêutron decaem em nêutron/próton mais elétrons/pósitron (elétron de carga positiva). O espectro deste decaimento é dado pela figura a seguir:

Número de partículas beta versus energia das partículas do decaimento beta (em unidades de elétron-volts). O problema da conservação de energia acontece pelo fato de se saber as massas das partículas primárias (prótons e nêutrons) e das secundárias (elétrons, pósitrons, prótons e nêutrons).

Conhecendo-se as massas das partículas envolvidas é possível mostrar que a energia não é conservada, o espectro é contínuo. Há duas hipóteses para isso: violação de conservação de energia ou a existência de uma partícula “invisível”. A primeira sugere mexer num dos alicerces da física, a Lei de Conservação de Energia, e, se fosse assim, toda a compreensão das leis físicas e do Universo seria outra. A segunda, por outro lado, foi mais plausível, sendo sugerida por W. Pauli (1900-1958). A existência de uma partícula pequena, de difícil detecção e com carga elétrica zero. Esta partícula recebeu o nome de neutrino por E. Fermi (1901-1954), que significa pequeno nêutron isto é, uma partícula neutra muito pequena. É importante dizer que o nêutron só seria descoberto em 1930 por J. Chadwick (1891-1974) mas já era previsto teoricamente.

 

Léptons e a famílias

Os neutrinos são partículas elementares definidas como indivisíveis. Não possuem subestrutura e, portanto, não podem ser “quebradas” em partículas menores. Essa classe de partículas envolve os quarks, que são os constituintes dos bárions (prótons, nêutrons, que possuem três quarks) e mésons (partículas que possuem dois quarks). Eles têm como principal característica a força forte, que é de curto alcance. Essa força mantém os núcleos atômicos unidos (se contrapõem à força de repulsão eletromagnética – afinal, os prótons têm cargas elétricas positivas).

Outra classe de partículas elementares é a dos léptons (“leves”, o que significa dizer que têm massas muito pequenas). Os léptons têm como principais características a indivisibilidade (são partículas elementares), que só interagem eletromagneticamente (os que possuem carga elétrica) e através da força fraca do decaimento radiativo. As famílias são visualizadas na tabela a seguir, que mostra a família de léptons em cada uma das gerações.

Elétron e neutrino eletrônico compõem a primeira geração; múon e neutrino muônico a segunda e tau e neutrino taônico a terceira. A classificação por gerações corresponde à ordem das descobertas. Múons e tau são os “irmãos” pesados do elétron. São partículas que têm as mesmas características do elétron, mas com massas diferentes (me = 9,109×10-31kg , mmúon 1,900×10-28kg= e mtau = 3,167 x10-27kg). Dessas partículas, somente o elétron é estável e não decai.

Cada uma dessas partículas têm seus neutrinos como partículas “companheiras”, que aparecem quando estão sob ação da força fraca. É importante ressaltar que essas famílias têm como integrantes suas correspondentes anti-partículas. Uma anti-partícula pode ser definida a partir de um simples exemplo: um elétron tem carga elétrica negativa, um anti-elétron ou pósitron tem as mesmas características físicas e uma carga elétrica positiva. O mesmo se aplica para os múons e taus, bem como para prótons e nêutrons – mesmo sabendo que este último não possui carga elétrica, mas existem outros parâmetros que diferem partículas neutras de suas anti-partículas.

Neutrinos e as estrelas

Os neutrinos têm um interessante papel nos processos de fusão nuclear que ocorrem dentro das estrelas. Estrelas são “usinas” que produzem determinados elementos químicos. Essa usinagem de elementos dá-se através de reações de fusão nuclear, isto é, elementos químicos mais leves como hidrogênio e hélio são fundidos em elementos mais pesados. Esses processos geram formação de deutério (átomo de hidrogênio com dois prótons) e liberação de um pósitron (elétron de carga positiva) e um neutrino eletrônico.

Uma cadeia de processos promove liberação de energia que realimenta a continuidade das reações; a energia liberada cria condições para que reações mais “complexas” ocorram, como por exemplo a formação de hélio e depois berílio e lítio. Isso porque a energia liberada cria condições adequadas para a formação desses elementos mais pesados. No caminho para a fusão desses elementos, neutrinos são produzidos, liberando parte da energia. Nesse sentindo, há o fluxo de neutrinos solares que chegam à Terra.

Problema dos neutrinos solares

Vários experimentos como o SNO (Sudbury Neutrino Observatory) e o Homestake (há uma mina de ouro com o nome Homestake em Lead no estado americano de Dakota do Sul) detectaram neutrinos solares. A ideia era atestar se os processos de reação nuclear, que produzem neutrinos, ocorrem de fato. Outro aspecto é que a partir deles (neutrinos) é possível “ver” dentro do Sol, isto é, comprovar modelos de fusão nuclear. Os experimentos SNO e Homestake detectaram os neutrinos solares, mas perceberam que o fluxo (número de neutrinos por unidade de área e por segundo) era inferior ao estimado teoricamente.

Essa contradição entre o que era esperado teoricamente e o que foi medido abriu uma oportunidade para o surgimento de um novo entendimento sobre a natureza dos neutrinos. Eles possivelmente sofreriam algum tipo de “mudança”, que seria deixar de ser de um tipo e se tornar de outro tipo. Essa mudança hoje é chamada de mixing (mistura), quando um neutrino oscila entre um tipo (neutrino eletrônico para neutrino muônico). Essa “novidade” ajudaria a entender porque os experimentos não detectaram todos os neutrinos esperados no fluxo. Se os neutrinos mudam de um tipo para outro e os detectores foram projetados pra detectar somente um tipo, logo eles não enxergariam os neutrinos de outro tipo.

Neutrinos e supernovas tipo II (SNe II)

Neutrinos de supernovas (SNe) tipo II têm uma relação estreita e muito direta. Essas minúsculas partículas podem dizer muito sobre a estrutura interna de uma estrela. Podemos dizer que as estrelas são grandes objetos praticamente esféricos compostos de basicamente de plasma (gás quente e ionizado). São grandes “fornalhas” que produzem elementos químicos através de reações de fusão nuclear. As estrelas têm uma variação de temperatura que vai da superfície até o centro da estrela, isto é, a temperatura vai aumentando até o centro da estrela e, portanto, é onde os elementos químicos são principalmente fusionados.

Enquanto uma estrela do tipo solar não consegue ultrapassar a fusão de hélio, uma estrela de grande massa fusiona elementos cada vez mais pesados e apresenta uma estrutura de camadas concêntricas, como uma cebola: as camadas com elementos químicos mais leves são as mais externas, e os mais pesados ficam na região mais central chamada de caroço. O fator determinante que faz com que uma estrela produza certos elementos químicos é a massa.

Estrelas como o Sol devem parar de produzir elementos químicos até o carbono pela fusão do hélio. Estrelas com massas maiores que a massa solar são capazes de produzir elementos mais pesados. O elemento químico mais pesado que uma estrela é capaz de produzir como resultado da fusão é algo em torno do ferro. Isto porque até o ferro as reações de fusão nuclear são exotérmicas isto é, liberam energia para continuar alimentando a fusão dos elementos. Quando o caroço é praticamente todo de ferro, as reações que envolvem ferro passam a ser endotérmicas isto é, precisaria receber energia pra fundir núcleos de ferro em elementos mais pesados. Outros elementos químicos acima do ferro podem ser produzidos no ato da explosão de Sne. O nome desses processos é r-process e s-process (processo rápido e processo lento). Como esses elementos mais pesados que o ferro são provenientes de processos exóticos, sua abundância (quantidade relativa) é pequena em relação aos elementos abaixo do ferro.

Eventos de neutrinos observados pelos experimentos Kamiokande II – Japão e Irvine-Michigan-Brookhaven – EUA. Os neutrinos do experimento IMB (círculos brancos) e KII (círculos pretos) que sugerem dois grupos separados temporalmente. O gráfico mostra a energia de cada evento no eixo vertical e o tempo de chegada no eixo horizontal

Como desfecho da vida de uma estrela de grande massa, as explosões de SNe II são eventos extraordinários e super energéticos que ocorrem quando uma estrela com massa superior esgota seu combustível, e desaba por falta de sustentação. Esta implosão acontece muito rapidamente, no intervalo de tempo de poucos mili-segundos.

Embora não exista consenso a respeito da causa última que provoca a explosão da supernova, é evidente que ela existe. Do ponto de vista da estrutura interna, o caroço quebra quando as camadas mais externas em queda colidem contra ele. A energia liberada observada é imensa – a supernova tem a luminosidade (energia por unidade de tempo) da ordem de uma galáxia. O incrível é que uma estrela quando explode em SN II tem a mesma quantidade de energia luminosa de uma galáxia que possui milhões de estrelas. Isso mostra que uma grande quantidade de energia é liberada. Outros elementos químicos acima do ferro podem ser produzidos no ato da explosão.

Visualmente, a estrela torna-se muito luminosa. Há um relato de astrônomos chineses a respeito da SN1054 (supernova do Carangueijo que se tornou visível no ano de 1054) que podia ser vista da Terra com um quarto da luminosidade de uma Lua cheia. SN1054 pode ser vista até durante o dia no período de tempo de 23 dias e as noites por aproximadamente 653 dias.

SNe II são objetos que no ato da explosão emitem, além de grande quantidade de energia na forma de luz visível, também na forma “invisível”. Energia nesse formato é levada pelos neutrinos produzidos pela conversão de prótons em nêutrons e pela aniquilação de elétron e pósitrons, entre outros processos. Eles correspondem aproximadamente a 99% da energia liberada pela explosão, convertendo as supernovas em “bombas de neutrinos”.

A importância dos neutrinos nesse cenário está no papel que eles desempenham: a formação da futura estrela de nêutrons precisa do escoamento dessa enorme quantidade de neutrinos, porque a estrela de nêutrons recém-nascida (ocorre quando a supernova explode) é muito quente, e o principal mecanismo de resfriamento é através dessas minúsculas partículas, e a emissão dura segundos. Isto foi observado e conferido em 1987, quando a SN1987A explodiu na Grande Nuvem de Magalhães e três experimentos diferentes denominados KII, IMB e Baksan mostraram um surto de neutrinos coincidente com a direção da SN e no tempo do evento. Mas o pequeno número de neutrinos coletados não permitiu melhorar muito nosso conhecimento do interior estelar.

É importante dizer: neutrinos quando são observados de eventos astrofísicos, como explosões de supernovas tipo II ou até mesmo a atividade solar, permitem “ver” o interior desses fantásticos objetos. Mesmo assim, os poucos eventos observados mostraram uma separação temporal dos neutrinos em dois grupos (o primeiro no intervalo de tempo de 3 segundos, um “hiato” de 5 segundos e um segundo grupo, acima de 8 segundos) deixou brecha para associar esse segundo grupo a um possível cenário de quarks desconfiados, em que a matéria normal se dissolve nos seus componentes fundamentais por efeito da pressão.

Os neutrinos têm a chave para saber o que exatamente acontece no caroço central, e serão fundamentais quando um evento na nossa galáxia aconteça. Eles solucionam um problema de não conservação de energia no decaimento beta.

No final dos anos 1990 surgiu o déficit dos neutrinos solares, que trouxe à tona a oscilação dessas partículas, isto é, uma nova física. Além disso, eles são protagonistas na síntese dos elementos químicos em estrelas e na explosão de SNe e no nascimento de estrelas de nêutrons. Essas incríveis partículas, tão minúsculas e tão protagonistas, tanto na física de partículas quanto na astrofísica estrelar, é que nos ajudam a entender um pouco deste tão maravilhoso Universo que vivemos.

Rodolfo Valentim é professor do Departamento de Física do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) – Campus Diadema.

Jorge Horvath é professor do Departamento de Astronomia do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP).