Por Laura Spinney, Nature, março de 2017 (tradução de Amin Simaika)
As redes sociais moldam as memórias de forma poderosa. As pessoas precisam de pouca indução para adaptar-se à lembrança majoritária – mesmo que esteja errada. A boa notícia é que pesquisas indicam formas de desalojar as falsas lembranças – ou evitar que se formem.
Coisas estranhas vêm acontecendo com as notícias. Membros da administração do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mencionaram um “massacre em Bowling Green” e ataques terroristas na Suécia e em Atlanta, no estado americano da Geórgia – tais eventos nunca aconteceram.
A desinformação foi rapidamente corrigida, mas alguns mitos já mostraram ser difíceis de apagar. Desde pelo menos 2010, por exemplo, uma comunidade online compartilhou a lembrança aparentemente inabalável de Nelson Mandela morrendo na prisão na década de 1980, apesar do fato de ele ter vivido até 2013, deixado a prisão em 1990 e ter sido o primeiro presidente negro da África do Sul.
A memória é notoriamente falível, mas alguns especialistas temem que um novo fenômeno esteja emergindo. “Lembranças são compartilhadas entre grupos de formas diferentes, através de sites tais como Facebook e Instagram, confundindo a linha entre as memórias individual e coletiva”, diz o psicólogo Daniel Schachter, que estuda a memória na Universidade Harvard em Cambridge, Massachusetts. “O desenvolvimento de desinformação baseada na internet, tal como os sites de notícias falsas, tem o potencial de distorcer as memórias individual e coletiva de forma perturbadora”, afirma Schachter.
Memórias coletivas formam a base da história e o entendimento da história pelas pessoas molda a forma como pensam o futuro. Os ataques terroristas fictícios, por exemplo, foram citados para justificar a proibição de viagens de cidadãos de sete “países preocupantes”. Embora a história tenha sido frequentemente interpretada sob um viés político, os psicólogos agora estão investigando os processos fundamentais pelos quais as memórias coletivas são formadas a fim de entender o que as faz vulneráveis à distorção. Eles mostram que as redes sociais moldam as memórias de forma poderosa, e que as pessoas precisam de pouca indução para adaptar-se à lembrança majoritária – mesmo que ela esteja errada. Entretanto, nem todas as descobertas são sombrias. Pesquisas estão mostrando formas de desalojar as falsas lembranças ou de evitar que elas se formem, antes de mais nada.
Para combater a influência das “fake news”, diz Micah Edelson, pesquisador da memória da Universidade de Zurique, na Suíça, “é importante entender não somente a criação desses sites, mas como as pessoas reagem a eles”.
Todos juntos agora
A comunicação molda a memória. Pesquisas feitas com duplas de pessoas conversando sobre o passado mostram que cada falante pode reforçar aspectos de um evento repetindo-os de forma seletiva. Isso faz sentido. Coisas que são mencionadas são lembradas – tanto pelo falante como pelo ouvinte. Há um corolário menos óbvio: informação relacionada que não é mencionada tem maior probabilidade de esvanecer do que material não relacionado, um efeito conhecido como esquecimento induzido por recuperação.
Esses fenômenos cognitivos, em nível individual, foram propostos como mecanismo para a convergência da memória – o processo pelo qual duas ou mais pessoas vêm a concordar sobre o que aconteceu. Mas, nos últimos anos, apareceram indícios de que forças em nível de grupo influenciam a convergência também. Em 2015 os psicólogos Alin Coman, de Princeton, e William Hirst, da New School for Social Research em Nova York, relataram que uma pessoa experimenta mais esquecimento induzido ao ouvir alguém em seu próprio grupo social – um aluno da mesma universidade, por exemplo – do que alguém que ela enxerga como forasteiro. Ou seja, a convergência da memória tem mais possibilidade de ocorrer dentro de grupos sociais do que entre eles – um achado importante sob a luz dos dados da pesquisa, sugerindo que 62% dos adultos estadunidenses obtêm suas notícias através das mídias sociais onde a associação ao grupo é, em grande parte, óbvia e reforçada.
Os grupos também podem distorcer as memórias. Em 2011, Micah Edelson, na época no Instituto de Ciência Weizmann em Rehovot, Israel, mostrou um documentário a 30 voluntários. Eles viram o documentário em grupos de cinco e, alguns dias depois, responderam perguntas sobre ele individualmente. Uma semana após ter visto a sessão, os voluntários responderam às perguntas novamente – mas somente após verem as respostas que os membros do seu grupo supostamente haviam dado. Quando a maioria das respostas fabricadas eram falsas, os participantes conformaram-se com a mesma resposta falsa cerca de 70% das vezes – apesar de terem respondido corretamente da primeira vez. Quando eles souberam que as respostas fabricadas haviam sido geradas de forma aleatória, os participantes reverteram suas respostas incorretas somente em cerca de 60% das vezes. “Descobrimos que os processos que acontecem durante a exposição inicial à informação errônea tornam mais difícil a correção de tais influências mais tarde”, diz Edelson.
O estudo desses processos conforme eles acontecem – uma vez que memórias coletivas são formadas a partir de conversas – é difícil de ser feito em grupos grandes. Há cinco anos, o monitoramento da comunicação em grupos de dez ou mais teria exigido vários ambientes para as conversas privadas, muitos pesquisadores e muito tempo. Agora, múltiplos participantes podem interagir digitalmente em tempo real. O grupo de Alin Coman desenvolveu uma plataforma de software que pode rastrear trocas entre voluntários em uma série de conversas cronometradas. “O pesquisador assistente necessita de 20 minutos e de um laboratório”, diz Coman.
No ano passado, o grupo usou esse software para investigar como a estrutura das redes sociais afeta a formação da memória coletiva em grandes grupos. Os pesquisadores veicularam informações sobre quatro voluntários fictícios do Peace Corps para 140 participantes da Universidade Princeton, divididos em grupos de 10. Primeiramente, os participantes foram instados a se lembrar, sozinhos, do máximo de informações que pudessem. Em seguida participaram de uma série de conversas – sessões de conversas online que duravam uns poucos minutos cada – com outros membros do seu grupo, durante as quais eles se lembravam das informações de forma colaborativa. Por fim, eles tentavam relembrar os eventos de forma individual novamente.
Os pesquisadores investigaram dois cenários – um no qual o grupo formado por dois subgrupos, cujas conversas, quase todas, aconteciam dentro desses subgrupos, e um no qual se formava um grupo grande. Embora as pessoas do grupo concordassem com o mesmo conjunto de informações, diz Coman, aquelas nos dois subgrupos geralmente convergiam para “fatos” diferentes sobre os voluntários fictícios.
O efeito é evidente em situações do mundo real. Os palestinos que moram em Israel e aqueles da Cisjordânia, que foram separados à força durante as guerras árabe-israelenses de 1948 e 1967, gravitaram entre diferentes versões do seu passado, apesar de compartilharem a identidade árabe-palestina. Da mesma forma, verdades diferentes emergiram após a construção do Muro de Berlim.
No laboratório, Coman pode manipular as redes sociais e observar as memórias que se constroem. Sua comparação dos dois cenários revelou a importância dos “elos fracos” na propagação da informação. Os elos fracos são ligações entre as redes e não dentro delas – conhecidos, ao invés de amigos – e ajudam a sincronizar as versões mantidas pelas diferentes redes. “São, provavelmente, o que impulsiona a formação de toda a memória coletiva de toda a comunidade”, diz o cientista.
Uma função desses elos fracos pode ser lembrar as pessoas a respeito de informações eliminadas ao longo dos processos de convergência de memória. Mas o tempo é importante. Em um de seus trabalhos, Coman mostrou que a informação introduzida por um elo fraco tem muito mais chance de moldar as memórias da rede se for inserida antes que seus membros conversem entre si. Uma vez que a rede concorda com o que aconteceu, a memória coletiva torna-se relativamente resistente à informação concorrente.
Coman pensa que a convergência da memória reforça a coesão do grupo. “Agora que compartilhamos uma lembrança, podemos ter uma identidade mais forte e temos a possibilidade de cuidarmos mais uns dos outros”, diz ele. Numerosas pesquisas relatam a existência de identidade forte de um grupo com um maior bem-estar individual. O fato é demonstrado através de pesquisas em famílias. Na Universidade de Emory em Atlanta, Geórgia, o psicólogo Robyn Fiyush está estudando as histórias que as famílias se contam. “O que observamos é que os adolescentes e os adultos jovens que conhecem mais das histórias da família apresentam maior bem-estar psicológico”, diz.
Embora as memórias compartilhadas possam criar grupos mais unidos, também podem distorcer o papel daqueles que estão de fora, criando arestas entre os grupos. As memórias moldam a identidade do grupo que, por sua vez, molda a memória, num ciclo potencialmente vicioso. Elos fracos possuem um efeito corretivo importante. Na sua ausência, dois grupos podem convergir em direção a versões mutuamente incompatíveis do passado.
Fazendo memórias, fazendo histórias
Em Ostend, Bélgica, um monumento público retrata o rei belga Leopoldo II rodeado por dois grupos de súditos agradecidos – um belga, um congolês. Em 2004, um grupo de manifestantes que achava que o monumento não representava a história amputou a mão de bronze de uma das figuras congolesas. Eles explicaram de forma anônima a um jornal local que a amputação refletia, de forma mais correta, o papel de Leopoldo na colônia africana belga: não um protetor cordial, mas um tirano brutal.
Em 2010, os psicólogos sociais Laurent Licata e Olivier Klein, da Universidade Livre francófona de Bruxelas, fizeram uma pesquisa para explorar as atitudes de diferentes gerações em relação ao passado colonialista da Bélgica. Constataram que os estudantes belgas mostraram níveis mais altos de culpa coletiva e apoio a ações de reparação em relação ao que agora é a República Democrática do Congo do que seus pais que, por sua vez, mostraram níveis mais altos que seus pais. Um importante fator a moldar essa evolução, os pesquisadores sugerem, foi o livro influenciador do escritor Adam Hochschild, O fantasma do rei Leopoldo (Houghton Mifflin, 1998), que pintou um retrato muito mais sombrio do período colonial do que aquele que havia sido aceito previamente. “Aqueles que eram mais jovens quando o livro foi publicado foram marcados de forma específica por ele”, diz Licata, “ao passo que belgas mais velhos haviam crescido com um conjunto diferente de fatos”.
Nem todas as memórias coletivas passam para a história. Os psicólogos cognitivos Norman Brown, da Universidade de Alberta em Edmonton, e Connie Svob, de Colúmbia, Nova York, sugeriram que alguma coisa além dos processos cognitivos e sociais determina se um evento sobrevive à transição ao longo das gerações: a natureza do evento propriamente dito. “É a quantidade de mudanças no tecido diário da vida de uma pessoa que está mais crucialmente em jogo”, diz Svob.
Num estudo publicado recentemente, foi relatado que os filhos de croatas que viveram ao longo das guerras iugoslavas dos anos 1990 estavam mais sujeitos a relembrar as experiências de seus pais relacionadas à guerra – ser alvejado, por exemplo, ou ter a casa bombardeada – do que suas experiências não relacionadas à guerra, tais como o casamento ou o nascimento de seu primeiro filho. “As guerras, assim como a imigração, trazem grandes transtornos em sua esteira e, por isso, são altamente dignos de memória”, diz Svob.
Essa “teoria da transição”, diz ela, poderia também explicar um dos maiores vazios da memória coletiva ocidental do século XX – o porquê de recordar as duas guerras mundiais, mas não a gripe pandêmica espanhola de 1918-1920. “O grau de mudança forjado pela guerra tende a ser maior do que o grau de mudança forjado pela pandemia”, diz Svob. Outros acham essa explicação intrigante: “Se você perdeu um ser amado na epidemia da gripe”, diz Fiyush, “logo esse fato certamente perturbou sua vida diária”.
O conjunto de memórias coletivas que um grupo congrega claramente evolui ao longo do tempo. Uma razão para isso é que as pessoas tendem a ser mais marcadas por eventos de sua adolescência ou vida adulta jovem – um fenômeno conhecido como “curva de reminiscência”. À medida que uma nova geração cresce, os eventos que aconteceram a seus membros durante sua juventude sobrepõem-se aos eventos que dominavam a sociedade previamente e, assim, “atualizam” a memória coletiva. Uma pesquisa feita em 2016 pelo Pew Research Center em Washington mostrou que os momentos históricos marcantes para os “baby boomers” foram o assassinato de John F. Kennedy e a guerra do Vietnã, ao passo que para aqueles nascidos a partir de 1965 foram os ataques terroristas em 11 de setembro de 2001 e a eleição de Barack Obama.
Ao longo do tempo, cada geração adiciona alguns eventos e esquece outros. Os psicólogos Henry Roediger da Universidade de Washington e Andrew DeSoto da Association for Psychological Science em Washington relatam, por exemplo, que sucessivas gerações de norte-americanos esquecem seus presidentes anteriores de forma regular, o que pode ser descrito como uma função liga-desliga. Eles preveem que Harry Truman (1945–53) será esquecido até 2040 assim como William McKinley (1897–1901) já foi esquecido hoje.
Essa evolução está refletida em atitudes desenvolvidas em direção ao futuro. Roediger e o antropólogo James Wertsch, também da Universidade de Washington, observaram que os políticos americanos que debatiam a invasão do Iraque no início dos anos 2000 se dividiam em dois grupos: aqueles que defendiam a invasão porque Saddam Hussein tinha de ser detido como o foi Adolf Hitler, e aqueles que se opunham à isso porque temiam outra guerra prolongada e sangrenta como a guerra do Vietnã. Embora cada um possa ter escolhido seu precedente histórico por razões políticas, eles, por sua vez, reforçaram aquele precedente na memória de cada um que os ouviu falar.
Revelando o falso
Pesquisas feitas sobre memórias coletivas apontam para maneiras de moldá-las para o bem coletivo. Edelson e sua equipe dão motivos para otimismo quando, num acompanhamento feito em 2014 de um estudo anterior, relataram que, embora algumas memórias falsas sejam resistentes a mudanças, as pessoas que as têm podem, mesmo assim, ser influenciadas por informação verossímil. A equipe usou imagens de ressonância magnética funcional para examinar os cérebros dos voluntários à medida que se lembravam de informações sobre um filme. Os exames revelaram mudanças na ativação do cérebro correlacionadas ao grau de confiança de uma lembrança imprecisa – e, por fim, se os voluntários faziam a reversão para a sua primeira e correta lembrança. “Através da exposição dos voluntários ao fato de que essa informação não é confiável, na maioria dos casos os indivíduos levam isso em consideração”, diz Edelson. “Em 60% dos casos, mudam a resposta. E mesmo que mantenham a resposta errada, eles ficaram menos confiantes sobre ela.”
Coman faz duas proposições sobre suas descobertas. A primeira é direcionada ao sistema judicial. Em alguns estados dos Estados Unidos, os jurados são proibidos de levar as anotações feitas durante o julgamento para a sala de deliberação – um legado das altas taxas históricas de analfabetismo e a crença de que o grupo se lembra de forma mais confiável do que o indivíduo. Na verdade, diz Coman, o uso de anotações poderia proteger os jurados de vieses induzidos pela memória e de influências sociais em nível de grupo. Sua equipe espera poder explorar o impacto de tais regras de forma mais profunda.
Sua segunda proposição diz respeito à difusão de informação crucial para o público durante emergências tais como epidemias. Tendo observado que o esquecimento induzido por recuperação é aumentado por situações de alta ansiedade, ele chegou a algumas orientações para os responsáveis: elaborar uma lista curta, mas abrangente, de pontos-chave, garantindo que todos os responsáveis tenham a mesma lista; repetir os pontos com frequência e ficar de olho nas informações de baixa qualidade que entram em circulação. Durante o surto de ebola de 2014, por exemplo, preocupações nos Estados Unidos foram alimentadas pelo equívoco de que estar na mesma sala que uma pessoa com a infecção era o suficiente para pegá-la. A melhor forma de acabar com o rumor, diz Coman, seria explicar – com frequência – que o ebola somente pode ser transmitido através de fluidos corporais. “Se você entende a natureza da informação falsa, você consegue suprimi-la somente mencionando informações conceitualmente relacionadas, mas precisas”, diz ele.
A memória coletiva é uma faca de dois gumes. Alguns, sem dúvida, a usarão para enganar. “O fato de que a informação pode circular livremente na comunidade foi considerado uma das características mais importantes e construtivas das sociedades democráticas e abertas”, diz Coman. “Mas criar tais sociedades não é garantia inerente de resultados positivos”. Memórias coletivas falsas podem ser o preço da defesa da livre expressão. Mas entender como elas são formadas pode oferecer alguma proteção na próxima vez que as pessoas forem lembradas de um massacre que nunca aconteceu.
Laura Spinney é jornalista de ciências baseada em Paris, França.