Por Rodrigo Mendes
À medida que pesquisas revelam a composição e funções dos microbiomas das plantas, surgem algumas perguntas intrigantes como: até que ponto as plantas dependem dos microbiomas para sobreviverem? Como era a relação entre as plantas e o microbioma muito antes de domesticarmos e cultivarmos as plantas em grandes monoculturas e em sistemas de produção intensivos? Para atacarmos estas perguntas, propusemos a abordagem chamada “Back to the roots”, na qual investigamos ancestrais das plantas cultivadas e comparamos com cultivares modernos dessas mesmas espécies para avaliar o impacto da domesticação e do melhoramento genético no microbioma, já que esse aspecto foi negligenciado.
Quando os espanhóis conquistaram o Novo Mundo, além dos combates travados nos campos de batalha com espadas, armas, cavalos e estratégia militar, uma outra batalha de natureza microbiológica acontecia entre os microbiomas dos europeus e os microbiomas e sistema imunológico dos nativos americanos. Inadvertidamente, os europeus tinham grande vantagem na batalha invisível e estima-se que 95% das mortes dos nativos americanos na América do Norte e do Sul tenham sido causadas por doenças e não por conquistas militares. Por exemplo, a varíola matou cerca de 50% por cento dos incas na primeira epidemia.
Historicamente, sempre associamos a presença de microrganismos com doenças, pois, de fato, tanto em humanos quanto em animais ou plantas, eles podem causar sérios problemas e levar à morte. Porém, técnicas recentes de biologia molecular, como a metagenômica, nos permitiram acessar o universo microbiano de maneira muito mais abrangente. Assim, nos últimos anos, aprendemos que apenas uma diminuta fração da diversidade microbiana é responsável por causar doenças e que existe um universo inexplorado de microrganismos benéficos e desconhecidos que sustentam a vida de seus hospedeiros.
Com o desenvolvimento da metagenômica é como se tivéssemos reinventado o microscópio usado pelo holandês Antonie van Leeuwenhoek para observar pela primeira vez bactérias em amostras de saliva em 1683, mas agora com uma resolução inimaginável. O uso da abordagem metagenômica no estudo do microbioma humano nos ensinou que não podemos entender o funcionamento do nosso corpo ignorando a presença de milhões de microrganismos e seus genes, já que o número de células microbianas supera em algumas vezes o número de células do nosso próprio corpo, e o número de genes da comunidade microbiana que habita em nós supera em milhares de vezes o número de genes do nosso genoma. Neste contexto, o microbioma é definido como sendo o conjunto de microrganismos, e seus respectivos genomas, que vive associado, internamente ou externamente, a um hospedeiro, seja uma planta, inseto ou no homem.
Ainda mais fascinante que desvendarmos o universo dos microrganismos é descobrir que existem surpreendentes similaridades nas funções de microbiomas associados a seres vivos de diferentes reinos. Por exemplo, tanto em seres humanos quanto em plantas, os microbiomas impactam no desenvolvimento e crescimento do hospedeiro, interferindo no metabolismo e fisiologia, na aquisição de nutrientes e na produção de aminoácidos, vitaminas e hormônios. Também influenciam a saúde, protegendo contra a infecção de patógenos, produzindo antibióticos e modulando o sistema imunológico.
Em humanos, confirmando a essencialidade dos microbiomas para sustentar a vida, o microbioma do sistema digestório sintetiza aminoácidos essenciais e vitaminas e processa componentes da dieta que, de outra forma, seriam indigestíveis, como polissacarídeos de plantas. E é exatamente o sistema digestório que abriga a maior quantidade de microrganismos, com desempenho do papel mais importante no funcionamento do nosso corpo.
Por outro lado, em plantas, o local onde o microbioma desempenha função mais importante é na superfície do sistema radicular, local que chamamos de rizosfera. Esse também é o lugar onde a planta abriga a maior abundância de microrganismos e, coincidentemente, assim como ocorre no sistema digestório humano, é a parte da planta onde ocorre a absorção de nutrientes. Neste sentido, podemos dizer que a rizosfera da planta pode ser vista como o sistema digestório às avessas.
Embora a maior parte dos estudos de microbiomas ainda seja de natureza descritiva, ou seja, resultam na descrição detalhada da composição do microbioma associado a diferentes hospedeiros submetidos a diferentes condições, alguns estudos clássicos mostram o microbioma como agente causal impactando o fenótipo do hospedeiro.
O estudo conduzido por Turnbaugh e colaboradores, publicado na Nature em 2006, mostrou que o microbioma do intestino é um fator adicional que contribui para a obesidade como uma patofisiologia. Nesse estudo, eles compararam o microbioma do intestino de camundongos “magros” e “gordos” e mostraram que eles se estruturam de forma diferente, alterando a abundância relativa de dois filos bacterianos dominantes, Bacteroidetes e Firmicutes, afetando o potencial metabólico dos camundongos. Os camundongos gordos têm uma capacidade aumentada de capturar energia da dieta e, consequentemente, acumular em forma de gordura. Para demonstrar a contribuição do microbioma nesse processo, os pesquisadores transferiram o “microbioma gordo” e o “microbioma magro” respectivamente para dois outros camundongos idênticos magros e mantidos sob a mesma dieta. Esse transplante de microbioma fez com que o camundongo receptor do microbioma gordo engordasse, e o receptor do doador magro, permanecesse magro, mostrando que a característica da obesidade era transmissível pelo microbioma.
Observe que enquanto a relação do microbioma com a obesidade pode ser um problema de saúde pública, na agricultura, esta relação pode representar uma solução! O fato do microbioma, no intestino ou na rizosfera, intermediar a absorção de nutrientes com diferentes eficiências significa que plantas que recrutam microbiomas mais eficientes na solubilização e transporte de nutrientes resultam em plantas mais “gordas”, ou seja, o microbioma da rizosfera devidamente estruturado pode levar ao aumento da produtividade. Esse parece ser o caso de plantas de feijão que, sob condições limitadas de fósforo no solo, recrutam um microbioma enriquecido com microrganismos capazes de solubilizar e transportar esse nutriente suprindo parcialmente a necessidade da planta.
É interessante notar que o fato das características do microbioma serem transmissíveis por meio de transplante permite o uso de estratégias terapêuticas baseadas no microbioma tanto em humanos quanto em plantas. Em humanos, doenças inflamatórias do intestino estão associadas a uma baixa diversidade microbiana e outras infecções estão associadas à presença ou alta abundância de patógenos no intestino, de maneira que o transplante de fezes a partir de um doador saudável, o qual carrega um microbioma bem estruturado, é capaz de restabelecer a estrutura do microbioma e levar o paciente à cura.
Curiosamente, o transplante de fezes em humanos tem seu paralelo no estudo de doenças de plantas. Um antigo fenômeno conhecido como solos “supressivos” foi observado em campos de trigo onde, após alguns anos de ocorrência de uma doença causada por um fungo que atacava as raízes das plantas, inexplicavelmente, as plantas permaneciam saudáveis a despeito da presença do patógeno no solo.
Em contrapartida, outros campos, localizados na mesma área de cultivo, não tinham a mesma capacidade de conter a doença, e foram chamados de solos “conducivos”. Neste caso, o transplante de microbioma também foi usado para mostrar que a supressividade da doença tinha natureza microbiológica. Quando pesquisadores tomavam uma pequena porção do solo saudável (supressivo) e misturavam no solo conducivo, as plantas que cresciam neste solo mostravam uma significante redução na incidência da doença, ou seja, a transferência do solo carregado com um microbioma melhor estruturado tinha a capacidade de proteger a planta contra a infecção do patógeno de solo.
Temos investigado esse fenômeno de forma mais profunda no caso de um fungo que ataca o sistema radicular da beterraba logo após a germinação, levando a plântula à morte. O emprego de um conjunto de técnicas moleculares avançadas, incluindo metataxonômica, metagenômica e metratranscriptômica, elucidou os mecanismos envolvidos na participação do microbioma da rizosfera na proteção da planta em seus primeiros estágios de desenvolvimento. Imediatamente após a germinação da semente no campo, microrganismos são atraídos seletivamente pelos exsudados da planta, iniciando assim o recrutamento de um exército microbiano que se estabelece na rizosfera. Ao mesmo tempo, o fungo patogênico que habita o solo, percebe a germinação da semente e cresce em direção à plântula recém germinada para causar infecção, exercendo um estresse oxidativo e ácido no sistema radicular. A presença do patógeno é percebida pela planta que responde ao estresse acionando o microbioma da rizosfera por meio do enriquecimento de grupos bacterianos específicos. Adicionalmente, algumas funções no microbioma relacionadas à resposta ao estresse e à produção de antibióticos são ativadas e então blindam o sistema radicular, impedindo a invasão do patógeno. O entendimento dessa proteção natural do sistema radicular das plantas pode conduzir a estratégias de manejo ou manipulação do microbioma que resultem na redução da necessidade do uso de produtos químicos em sistemas de produção.
À medida que pesquisas revelam a composição e funções dos microbiomas das plantas, surgem algumas perguntas intrigantes como: até que ponto as plantas dependem dos microbiomas para sobreviverem? Como era a relação entre as plantas e o microbioma muito antes de domesticarmos e cultivarmos as plantas em grandes monoculturas e em sistemas de produção intensivos? Para atacarmos estas perguntas, propusemos a abordagem chamada “Back to the roots”, na qual investigamos ancestrais das plantas cultivadas e comparamos com cultivares modernos dessas mesmas espécies para avaliar o impacto da domesticação e do melhoramento genético no microbioma dessas plantas, já que esse aspecto foi negligenciado.
Em um estudo onde selecionamos genótipos ancestrais de feijão nos Andes colombianos e comparamos com cultivares modernos, mostramos como o processo de domesticação está ligado ao recrutamento e montagem do microbioma na rizosfera. Usando a mesma abordagem em trigo, mostramos como as interações entre milhares de bactérias, fungos e cercozoários na rizosfera é muito mais complexa e intricada nos materiais ancestrais do que nos cultivares modernos de trigo. Este resultado sugere que o processo de domesticação minou as interações entre o microbioma e a planta hospedeira. Esta observação abre a possibilidade de resgatarmos características perdidas dos ancestrais para reintroduzirmos nos cultivares modernos, restabelecendo interações benéficas específicas da planta com microrganismos.
Finalmente, grandes desafios estão postos à humanidade, considerando a projeção de crescimento da população mundial que indica o número de 9,8 bilhões de habitantes em 2050, entre eles a necessidade de aumentar em mais de 50% a produção de alimentos de forma sustentável num cenário imprevisível de mudanças climáticas. Nessa guerra, chegou o momento de usarmos o exército invisível como um forte aliado. A elucidação dos mecanismos que orquestram a estruturação e a funcionalidade dos microbiomas na interação com as plantas irá permitir o desenvolvimento de estratégias inéditas para explorar e manipular microbiomas na direção de uma agricultura mais produtiva e sustentável.
Rodrigo Mendes é chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Embrapa Meio Ambiente de Jaguariúna (SP).
Referências
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