Por Carlos Orsi
Em O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Sr. Hyde, a poção efervescente criada pelo médico produz uma transformação, uma libertação ou apenas oferece uma cobertura, um disfarce? Se for um disfarce: para os olhos da sociedade, ou para os do espelho? É uma indefinição que transcende a maior parte das adaptações e interpretações fáceis da novela, mantém a alegoria de Stevenson viva – e torna-a especialmente relevante neste momento em que uma efervescência de outro tipo revelou tantos médicos (e políticos, e militares, e jornalistas) com monstros dentro de si.
A novela – romance curto, ou conto longo – O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Sr. Hyde ou, como a obra às vezes é chamada, O Médico e o Monstro, de autoria do escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), é uma daquelas histórias, como Drácula, ou Frankenstein, que todos conhecem, mesmo quem nunca leu o original. Atingiu o status de mito, reciclado em histórias em quadrinhos, filmes, canções, séries, paródias – uma parte do vocabulário cultural, aplicada em cenários tão diversos quanto episódios de “Jornada nas Estrelas” e comédias de Jerry Lewis (ou Eddie Murphy).
A sinopse “que todo mundo conhece” cabe em poucas linhas: um médico e cientista, homem bom e caridoso, Dr. Henry Jekyll, cria uma droga que altera sua aparência física e elimina suas inibições éticas e morais, dando origem a um detestável vilão, o Sr. Edward Hyde. Seguem-se consequências trágicas. Lições de moral – primeiro, é perigoso brincar com a natureza, com as “Leis de Deus”; segundo, todo ser humano é, “na verdade”, dois, uma natureza boa e outra má em conflito constante.
Quem se dá ao trabalho de ler o original com atenção logo percebe, no entanto, que as coisas são um pouco mais complicadas do que isso. O poeta e crítico Leonard Wolf (1923-2019), autor de uma edição anotada e comentada da novela (The Essential Dr. Jekyll and Mr. Hyde) aponta que tratar a história como mais uma fábula de “cientista louco” que “brinca de Deus” pode ser reconfortante, mas que a obra resiste a esse tipo de redução. “Stevenson criou um texto vivo, em que muito do que acontece é inexplicável, ao mesmo tempo em que a linha de ação é compreensível; ou seja, o que vemos não é necessariamente o que temos”.
Outro comentarista, este um quase contemporâneo de Stevenson, o escritor G.K. Chesterton (1874-1936), vai mais direto ao ponto: críticos atacam “Jekyll e Hyde”, escreve ele, “dizendo que há algo de barato e óbvio na ideia de que um homem é na verdade dois homens, e pode ser dividido entre o bem e o mal. Infelizmente para eles, acontece que essa não é a ideia. A verdadeira força da história não reside na descoberta de que um homem é dois; mas na descoberta de que dois homens são um. Depois de todas as caminhadas e conflitos desses dois seres incompatíveis, ainda é verdade que só um homem nasceu, e só um foi sepultado”.
Uma história contada na biografia de Stevenson escrita por seu primo Graham Balfour (1858-1929) e atribuída por ele a Lloyd Osbourne (1868-1947) enteado de Stevenson e que tinha 17 anos em 1885, quando “Jekyll e Hyde” estava sendo escrito, reforça essa ideia de unidade: segundo Balfour, na primeira versão da novela, nunca publicada mas discutida por Stevenson com a família, Henry Jekyll era um vilão dissimulado; a transformação física em Hyde apenas permitia que cometesse seus crimes com maior liberdade e impunidade. “A mudança era apenas um disfarce.”
Nesse aspecto, a história talvez prefigurasse certos aspectos de um outro clássico do terror com ares de ficção científica, O Homem Invisível, de H.G. Wells (1866-1946), publicado em 1896.
O rascunho original, produzido de modo febril em menos de três dias, teria sido queimado depois de receber críticas da mãe de Osbourne e mulher de Stevenson, Fanny. De forma melodramática, depois de receber e digerir a crítica, Stevenson teria chamado Fanny de volta a seu quarto – o autor estava acamado, doente – e apontado, “com um dedo acusador”, para as cinzas do manuscrito. Alguns críticos e historiadores põem em dúvida o relato de Balfour, já que ele não aparece em nenhum escrito autobiográfico de Robert Louis Stevenson mas, como ensinam os italianos pelo menos desde a Renascença (a expressão aparece, por exemplo, na obra de Giordano Bruno), Se non è vero, è molto ben trovato.
A ideia de que Jekyll mais se disfarça do que se transforma ao assumir a identidade de Hyde de qualquer modo existe, à espreita, na versão final da novela, parcialmente oculta atrás das vaidades e interesses velados dos personagens que nos guiam pela narrativa, construída a partir de uma mistura de relatos em terceira pessoa e depoimentos individuais – o desenlace se dá sob a forma de uma confissão pessoal de Henry Jekyll, provavelmente a figura menos confiável em toda a triste aventura.
Uma leitura psicanalítica da novela tende a exonerar Jekyll: Hyde seria uma manifestação desenfreada do inconsciente freudiano, um ego ligado diretamente ao fio desencapado do id; e um homem não pode ser culpado pelo que existe, sem que ele saiba, nos calabouços de sua mente.
Essa leitura, no entanto, é não só anacrônica (a publicação de “Jekyll e Hyde” antecede a das especulações e mistificações de Sigmund Freud [1856-1939], logo Stevenson não teria como levá-las em consideração), como é desmentida pelo próprio Henry Jekyll, que em vários pontos da história admite que Edward Hyde busca prazeres de que ele próprio, o impoluto Dr. Jekyll, gostaria de desfrutar, mas dos quais abstinha-se, em nome da respeitabilidade social. Ele diz:
“… a pior de minhas falhas era uma certa disposição impaciente para a leviandade, do tipo que faz a felicidade de muitos, mas que considerei difícil de conciliar com meu desejo imperativo de andar de cabeça erguida, e de apresentar ao público um semblante mais sério. Daí que passei a esconder meus prazeres...”
Não há nada inconsciente aí. Jekyll sabe o que quer, mas tem vergonha de querer, e durante algum tempo até perseguiu esses desejos, hipocritamente, em segredo. Hyde permite-lhe pôr a vergonha e (ele acredita) a hipocrisia de lado.
Mas, afinal, o que é que Jekyll deseja? A palavra que traduzi por “leviandade” é, no original, “gaiety”, e nem Leonard Wolf, nem Katherine Linehan (editora de uma edição crítica da novela, publicada por W.W. Norton) parecem capazes de precisar o sentido dado à palavra no contexto em que é usada, aí, por Stevenson. Linehan diz que, na época em que a novela foi publicada, a palavra poderia indicar tanto “alegria, descontração” quanto, se aplicada de modo sarcástico, “vício e devassidão”.
Quando “Jekyll e Hyde” veio a público, em 1886, ainda faltava mais de meio século para que o vocábulo “gay” passasse a ser aplicado à homossexualidade masculina, de acordo com a datação fornecida pelo Dicionário Merriam-Webster. De qualquer modo, a reticência de Stevenson em definir, afinal, para que Jekyll precisava de Hyde – quais os desejos do “médico” que só o “monstro” era capaz de realizar – alimentou especulações não só nesse sentido, mas em várias direções ligadas à sexualidade.
O fato de não haver nenhuma mulher no núcleo principal de personagens da novela não passou despercebido; todos os personagens principais são distintos cavalheiros solteirões, o que, para alguns comentaristas, reforça a hipótese de um subtexto homossexual. Leonard Wolf discorda: para ele, a predominância masculina na história reflete apenas uma dificuldade intrínseca de Stevenson em construir personagens femininas (outras obras famosas do autor, como A Ilha do Tesouro e o conto “Ladrões de Corpos” sofrem do mesmo problema). Adaptações para o cinema tendem a suprir esse déficit povoando o enredo com mulheres “virtuosas” (na esfera de Jekyll), e prostitutas (no mundo de Hyde).
Tanto Wolf quando Linehan chamam atenção para a mentalidade prevalente na época e local em que a história de passa, o universo vitoriano que tanto valorizava a “mortificação” – a renúncia deliberada a certos prazeres, mesmo os menores, como sinal de devoção religiosa e força de caráter. Um dos principais coadjuvantes de “Jekyll e Hyde”, por exemplo, bebia gim amargo para “penitenciar-se” de seu gosto por vinho. Nesse contexto, talvez os “prazeres” que tanto assombravam Jekyll fossem, afinal, bem inocentes, ao menos do ponto de vista do século 21.
O que vemos de Hyde, porém, não são atos de sensualidade ou licenciosidade, glutonaria ou embriaguez, mas de sadismo, crueldade e explosões de violência gratuita: ele pisoteia uma criança, esbofeteia uma vendedora de fósforos e, por fim, mata um homem inocente a golpes de bengala. Mais: depois da vítima morta, continua, num frenesi, a espancar o cadáver: “em transportes de alegria, espanquei o corpo inerte, desfrutando de cada golpe”.
Jekyll refere-se aos impulsos que o moviam como, no máximo, “indignos” e diz que, na forma de Hyde, tornavam-se “monstruosos”. Também afirma que a transformação havia se convertido num vício, que compara diretamente ao alcoolismo.
Diferentemente do que se vê em muitas das apropriações da história pela cultura popular contemporânea, a forma de Hyde não era a de um monstro descomunal, dotado de uma força sobre-humana, uma espécie de Incrível Hulk vitoriano; fisicamente, Edward Hyde era menor e mais fraco do que Henry Jekyll. Stevenson justifica isso apontando que a forma física de Hyde expressava um lado pouco exercitado da personalidade de Henry Jekyll. Daí seu desenvolvimento físico atrofiado, inferior.
Mas, como apontou Chesterton, o verdadeiro poder da narrativa está na revelação de que os dois homens, na verdade, são um: o médico é o monstro. E o monstro é o médico: das ambiguidades “inexplicáveis” de “O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Sr. Hyde”, talvez a maior esteja no final – quando o egoísta e sádico supremo, Edward Hyde, decide sacrificar-se para preservar a reputação do “ilibado” Henry Jekyll.
Afinal, a poção efervescente criada pelo médico produz uma transformação, uma libertação ou apenas oferece uma cobertura, um disfarce? Se for um disfarce: para os olhos da sociedade, ou para os do espelho? É uma indefinição que transcende a maior parte das adaptações e interpretações fáceis da novela, mantém a alegoria de Stevenson viva – e torna-a especialmente relevante neste momento em que uma efervescência de outro tipo revelou tantos médicos (e políticos, e militares, e jornalistas) com monstros dentro de si.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de O Livro dos Milagres (Editora da Unesp), O Livro da Astrologia (KDP) e coautor de Ciência no Cotidiano (Editora Contexto) e Contra a Realidade (Papirus 7 Mares)