Por Carlos Vogt
Quando eu morrer voltarei para buscar/ Os instantes que não vivi junto ao mar.
Sophia de Mello Breyner Andresen
O mar, o oceano, as águas salgadas, os rios doces que nos separam e nos unem para fora e para dentro de nossas identidades múltiplas e únicas.
O mar de Fernando Pessoa, dos jangadeiros do nordeste, o mar da costa brasileira, o mar do Cabo da Roca, o mar de Vicente de Carvalho, o mar de Moçambique em Virgílio de Lemos, o mar de Jorge de Sena, exilado no Brasil, o mar de José Régio, exilado no fado da saudade do mar, o mar de Miguilim, que do Mutum ele nunca viu, o mar de Mário de Sá Carneiro, o mar dos navegadores portugueses e do navegante negro, o mar de Castro Alves, de Gonçalves Dias no naufrágio definitivo nas costas do Maranhão, o mar de João Bosco e Elis Regina, o mar de todas as canções do exílio, mas o mar da sabiá de Chico Buarque e Tom Jobim, o mar morto de Jorge Amado e o vivo de Gabriela, cravo e canela, o mar-mito-mar da origem e da consumação, o mar de Camões.
II
Camões é um refúgio e um refugiado da língua portuguesa.
No dia 10 de junho de 1580 morre Luís Vaz de Camões, autor de Os Lusíadas, a grande epopeia das navegações portuguesas, das Rimas, coletânea de composições líricas da melhor qualidade, de três autos – comédias e de cinco cartas. Sem contar o outro conjunto de peças líricas – o Parnaso – que lhe é roubado em Lisboa, depois do regresso da Índia em 1570, e do qual só se tem notícia pelo desaparecimento.
A importância dessa obra é desigual. De uma particular desigualdade. Lá onde ela é mais vasta, isto é, nos seus aspectos épico e lírico, é incomensuravelmente melhor do que tudo o que se fez no século XVI em Portugal, quiçá em toda Península Ibérica, e, sem dúvida, é da mais alta poesia feita em língua portuguesa em qualquer tempo. Além disso, Os Lusíadas são a única obra que realiza poeticamente bem o canto dos feitos marítimos, não só portugueses, mas de toda Espanha. No teatro, Camões deixou três autos: um – Anfitriões – é uma adaptação de Plauto, e os outros dois – Auto de El-Rei Seleuco e Filodemo – são autos cavaleirescos ao gosto de Gil Vicente. Neles ressalta o tom conceituoso, a análise penetrante dos sentimentos, mas falta-lhes, talvez por isso mesmo, qualidade dramática. Levam para o plano cênico aquilo que na lírica se realizava mais cabalmente. Ainda assim, não lhes falta o verso firme ou a prosa leve. A mesma prosa, aliás, das cartas que lhe são atribuídas e nas quais o poeta, num estilo admirável, fala a amigos íntimos das desventuras de seu adverso fado.
Na verdade, as cartas, se realmente a ele pertencem, são dos poucos documentos que permitem reconstituir com alguma certeza episódios de sua história de vida. A biografia de Camões está envolta num mundo de fantasias que lhe vão sendo incorporadas tanto por via popular como por via erudita.
III
Personagem de literatura de cordel, ele também o é, por exemplo, do poema narrativo de Almeida Garret, Camões, apontado nas histórias literárias como o marco inicial do romantismo português. Neste poema, concebido no Havre em 1824, e publicado em Paris em 1825, Garrett, que se encontrava no exílio por causa de suas posições políticas liberais, cola-se à estrutura de Os Lusíadas e durante dez cantos evoca, num estilo entre clássico e romântico, um Camões mítico, símbolo da mais total dedicação à pátria e vítima da maior incompreensão oficial. Camões é, assim, o trovador errante, o exilado de seus próprios direitos, o amante ao mesmo tempo fiel e apaixonado da pátria e da mulher amada, o gigante incompreendido que, qual Adamastor feito penedo pelo amor impossível da ninfa Tétis, consolida-se em cristal de sofrimento pela “austera, apagada e vil tristeza” em que sucumbe a terra portuguesa. Fixado em símbolo, para além das qualidades artísticas que lhe são próprias, o poeta alegoriza, então, a saudade (“gosto amargo de infelizes”, no verso célebre de Garrett) das passadas e perdidas glórias, a amargura da pequenez presente e a esperança futura da redenção nacional.
Mas não é Garrett o inventor desta heráldica mítica e mística com que é estampado o autor de Os Lusíadas. Há muito o seu destino se confundia, na tradição popular, com o destino da pátria portuguesa. Tanto que, quando Garrett consagra dois cantos de seu Camões à leitura que da epopeia faz o poeta a D. Sebastião, a quem, como se sabe, Os Lusíadas são dedicados, ele não faz senão dar curso literário a uma identificação que começara com esta dedicatória, fortalecera-se com o desastre de Alcácer-Quibir em 1578 e consolidara-se com a morte do poeta em 1580. O poema de Garrett termina estando Camões na mais absoluta miséria, vivendo das esmolas recolhidas pelo seu fiel e legendário escravo javanês, Jaú. Ao ter notícia da derrota em Alcácer-Quibir e do desaparecimento de D. Sebastião, o poeta morre. “Expirou co’a pátria”, escreve Garrett.
Consagra-se, deste modo, tanto literária como politicamente, a aura sebastianista que envolve Camões como símbolo de uma grandeza para sempre perdida e por isso mesmo não menos esperada. E como é grande a fortuna ideológica de Encoberto e as promessas do Quinto Império, alimentada desde o sapateiro Bandarra até o gênio poético do Fernando Pessoa de Mensagem, sem esquecer a atuante simpatia que lhe dedicava no século XVII o nosso Pe. Antônio Vieira, Camões terá, como uma das mais recorrentes, para suprir a falta de uma identidade social adequada, esta identidade mítica e mística para que o arrastam os sonhos de desfalecida nobreza encarnados por D. Sebastião.
Esta aproximação é tão forte que no século XVIII, dentro do programa de reformas da sociedade e da cultura portuguesa iniciados sob o governo de D. João V, mas só concretizados sob D. José I, através de seu famoso ministro, o Marquês de Pombal, Camões não será poupado nem pela sobriedade crítica do educador Luís Antonio Verney, já no início do século XIX, pelo oportunismo belicoso e competitivo do Pe. José Agostinho de Macedo, autor, ao mesmo tempo do poema O Oriente (1814), no qual pretende refazer Os Lusíadas sem mitologia, e da prosa polêmica Os Sebastianistas, reflexões críticas sobre esta ridícula seita (1810). Mas nem a sinceridade crítica de Verney apoiada no racionalismo burguês que agitava as ideias na França e certamente sustentada pelo ouro brasileiro arrancado às Minas Gerais, nem o empenho de Macedo em seguir as pegadas de Voltaire, nas críticas que este faz a Os Lusíadas pela mistura de cristianismo e mitologia greco-romana, conseguem baixar o poeta do pedestal simbólico a que ele foi alçado.
Quem não se lembra do melancólico e grandioso final de O crime do Padre Amaro de Eça de Queirós? O mesmo Eça que pertenceu à famosa geração de 70, cheia de brilho político e literário, tão empenhada na transformação das estruturas portuguesas, e que deixou, através do trabalho de Teófilo Braga em 1873-1874 uma edição das Obras completas de Camões e, pelo trabalho de Adolfo Coelho e Ramalho Ortigão, a edição de Os Lusíadas comemorativa, em 1880, do terceiro centenário da morte do poeta.
Eça de Queiróz termina o seu romance fazendo encontrar-se no Chiado, em Lisboa, o Pe. Amaro, o Cônego Dias e o Conde de Ribamar. Perambulam, trocam loas e se irmanam, na estagnação que os cerca, em altos juízos reacionários dos grandes acontecimentos políticos que vivia Paris: era a Comuna. Caminham para junto da estátua de Camões e aí postos, o romancista constrói, então, o fecho alegórico da contraposição do presente e do passado português:
“E o homem de Estado, os dous homens de religião, todos três em linha, junto às grades do monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza de seu país, – ali ao pé daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta, erecto e nobre, com seus largos ombros de cavaleiro forte, a epopeia sobre o coração, a espada firme, cercado dos cronistas e dos poetas heroicos da antiga pátria – pátria para sempre passada, memória quase perdida!”
IV
O fato de sucessivas gerações tomarem e retomarem o poeta e, para além do indiscutível valor artístico de sua obra, procurarem interpretar-lhe significações ideológicas desta ou daquela linha, mostra sobretudo a força e o peso do nome de Camões na história da cultura portuguesa e mesmo brasileira.
O primeiro contato literário de Camões com o Brasil se dá antes mesmo que qualquer de nossos antepassados pudesse tê-lo lido. Está no Canto X de Os Lusíadas, quando o poeta, pela boca de Tétis, prediz a Vasco da Gama as futuras conquistas portuguesas (futuro do passado, como se sabe, já que o poema foi publicado em 1572 e os fatos que narra se passam em fins do século XV, 1498, com a viagem de Vasco da Gama às Índias). Entre estas conquistas, a de Santa Cruz, na estrofe 140, onde é também mencionada a viagem de Fernão de Magalhães, com uma restrição do poeta, por, sendo português, tê-la realizado sob os auspícios do governo espanhol.
“Mas cá onde mais se alarga, ali tereis
Parte também, co pau vermelho nota;
De Santa Cruz o nome lhe poreis;
Descobri-la-á a primeira vossa frota.
Ao longo dessa costa, que tereis,
Irá buscando a parte mais remota
O Magalhães, no feito, com verdade,
Português, porém não na lealdade.”
Em seguida, Camões publicará, em 1576, na obra de seu amigo Pero Magalhães de Gandavo, uma elegia e um soneto encomiástico do livro, do autor e do seu dedicatário, Leonis Pereira, distinguido por feitos na Índia e também conhecido do poeta do tempo em que lá estivera. Ocorre que este livro de Gandavo é a sua História da província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil, que, conforme explica o autor no prólogo do leitor, foi escrita e publicada “por não haver até agora pessoa que a empreendesse, havendo já setenta e tantos anos que esta província é descoberta. A qual história creio que mais esteve sepultada em tanto silêncio, pelo pouco caso que os portugueses fizeram sempre da mesma província”.
É interessante esta ligação com Gandavo porque, independentemente do abismo literário que separa o seu livro e Os Lusíadas, ambos compartilham da mesma contradição ideológica que tão bem caracteriza o século XVI em Portugal. Ponto máximo de um processo histórico que haveria de mudar a feição geográfica, cultural e política do mundo ocidental, processo em que toda a Península Ibérica teve um papel de primeira linha, através das viagens e conquistas marítimas, ele é também a caverna obscura onde se aquartelam os exercícios feudais da Companhia de Jesus e de onde o Santo Ofício, retalhando a inteligência do Renascimento, tenta contra reformar o tempo em exercícios espirituais e na Ratio Studiorum. Assim, o mundo que Portugal abre ao comércio e à transformação social, não fosse senão pelo simples contacto antropológico com o outro, fecha-se em proselitismos piedosos de unidade e de expansão da fé cristã.
Mais de uma vez já se observou que n’Os Lusíadas a ação narrativa se desenvolve com a monotonia de um auto de fé e que os heróis portugueses, Vasco da Gama em particular, têm conformação de pedra e angústias de sacristão. É mais uma bandeira que um homem. Um estandarte das cruzadas. Falta-lhe humanidade. A mesma humanidade que, entretanto, não falta aos sonetos, canções, odes, elegias e tampouco aos momentos de erupção lírica de que estão cheios Os Lusíadas e de que é um exemplo consagrado o episódio de Inês de Castro, no canto III.
Também presente ela está ali onde no poema tudo parece ser simples artifício formal de respeito a cânones literários de época, isto é, no recurso à mitologia clássica. Na verdade, é neste plano que se desenvolve uma ação dramática que, não sendo meramente episódica, enreda os deuses – Vênus, Juno, Marte, Júpiter, Netuno – numa trama complexa de sentimentos e paixões, e permite ao poeta recuperar ao nível da narrativa a intrincada dialética sentimental dos contrastes que tão penetrantemente constrói na sua lírica. E será este, para acompanhar a tese tantas vezes defendida por Antonio José Sarai, um dos traços marcantes da modernidade de sua poesia épica. O recurso à mitologia integra-se estruturalmente à obra, e lá onde Voltaire, Verney e Agostinho de Macedo o consideram arcaico é que ele faz o canto transpor, num malabarismo de grande engenho e arte, a clausura intelectual em que se compraz a Inquisição.
Nem por isso deixa Camões de invectivar D. Sebastião, “maravilha fatal da nossa idade” a investir contra os mouros na África e a tratar todos os orientais com que o Grama trava conhecimento como um bloco pérfido de ferozes inimigos da “verdadeira fé”. Camões certamente sabia que era do contato e do comércio com eles que o mundo se transformava. Como também o deveria saber Gandavo quando procura interessar os portugueses pelas coisas do Brasil. Estava no ar a catástrofe nacional que levaria em 1580 a corte portuguesa a assentar-se, durante sessenta anos, sob o domínio de Castela. Entretanto, era preciso dar saltos mortais com a razão para responder à fúria ideológica da contrarreforma e em filigranas nominalistas, evitar até o nome Brasil, já popular na época, porque inspirado pelo demônio do comércio que dos paus vermelhos nesta terra se fazia. Gandavo, seguindo o cruzadismo de João de Barros, cujas Décadas tanto influenciaram a composição de Os Lusíadas, escreve no seu livro:
“Mas para que nesta parte magoemos ao demônio, que trabalhou e trabalha por extinguir a memória da Santa Cruz (…) tornemos-lhe a restituir seu nome, e chamemo-lhes província de Santa Cruz como em princípio (que assim o admoesta também aquele ilustre e famoso escritor João de Barros na sua primeira Década…)”
V
Camões, “teto e pão de nossa língua”, no verso de Murilo Mendes, não apenas por tributo ao pensamento oficial, dá sequência à tradição das novelas de cavalaria medievais, em pleno espírito renascentista. É que na Península Ibérica estas linhas de força se cruzam e se chocam. Camões, poeta e guerreiro, vive no centro desse embate as contradições e demasias que lhe são próprias. A sua obra, mais do que todas as máscaras com que vestiram o seu autor em diferentes épocas, é o traçado poético da grande máscara cultural e ideológica que arremete Portugal contra a era moderna, participando de sua inauguração, ainda que a contragosto.
Para as ex-colônias, entre elas obviamente o Brasil, alguma ruga terá ficado, como herança dramática no pálido rosto de seu destino, não fossem, em nosso caso, estes rios multiplicados e fluentes em que, todo ano, pelo país adentro, pelo país afora, navegam naus catarinetas, cavalhadas, congos, moçambiques e tantos outros barcos imaginários, fazendo e refazendo percursos d’Os Lusíadas, nas rotas de velhas liças entre mouros e cristãos; não fosse ainda esses rios espelhar, passando, a autobiografia espiritual de Camões, estas águas de “Sôbolos rios…” a desaguar, em passes de mágica geografia, no estuário dramático do testamento lírico de Mário de Andrade: “meditação sobre o Tietê”.
NOTA
Este artigo, com brevíssima modificação, foi publicado originalmente na edição nº 40 da revista ComCiência e republicado no Observatório da Imprensa em 19 de março de 2003.