O labirinto de Majorana

Por Viviane Morcelle

Ettore Majorana possui uma história de vida que o faz um dos cientistas mais intrigantes do século XX, não apenas por ser considerado um gênio ou pelo misterioso desaparecimento. Ele marcou as páginas da história da física de forma única. Não seguia um padrão, não respeitava estereótipos, não conseguia se enquadrar num sistema científico na busca de glória ou reconhecimento.

Imagem: Kamioka Observatory, ICRR (Institute for Cosmic Ray Research), The University of Tokyo

Cientistas são classificados segundo estereótipos dos mais variados. De maneira geral como homens, brancos, loucos, geniais, apolíticos, ateus e dispostos a fazer tudo em nome da ciência. Há uma cultura quase milenar de que cientistas vivem em suas bolhas, alheios ao mundo e incapazes de se fazerem compreender por pessoas fora de laboratórios. Mas você já parou para pensar nos aspectos subjetivos inerentes à vida de um cientista? Em encontrar alguém totalmente diferente do que imaginou? Afinal, na maioria dos livros de história da ciência tradicionais ou nas biografias da página do prêmio Nobel, temos a sensação que suas vidas só encontram sentido no desenvolvimento de sua pesquisa científica e despidas de sentimentos. Todas essas sensações podem ser bem diferentes quando se conhece um dos grandes cientistas do século XX, cujas contribuições ficaram esquecidas por mais de 40 anos e com uma trajetória que ainda suscita questionamentos, seja por suas posições profissionais ou pela sua própria vida. Apresento Ettore Majorana, grande físico italiano com grandes contribuições para a ciência, cujas  pesquisas continuam a trazer respostas para a física até hoje e que desapareceu misteriosamente em março de 1938, em Nápoles, no auge do fascismo de Mussolini. Suicídio, fuga, enclausuramento ou loucura? Qual a saída para o labirinto de Majorana?

Majorana nasceu em 5 de agosto de 1906, na Catânia (Itália), em um ambiente que desde cedo fez despertar seu interesse pela ciência, em particular pela influência dos tios Ângelo e Quirino. Ao receber visitas, o casal Majorana estimulava Ettore a demonstrar suas habilidades matemáticas e o menino com cerca 9 anos era convidado a resolver cálculos como raízes cúbicas e já era campeão regional de xadrez. Com sua timidez, Ettore se recolhia embaixo da mesa onde respondia às indagações, em situação bem diferentes das brincadeiras e estórias vividas pelas outras crianças. Essa timidez acentuada seria uma de suas características ao longo da vida, contudo sem perder a ternura, generosidade e espírito de humor, que segundo seus familiares sempre cultivou. Durante a juventude, gostava de jogar e se divertir com os amigos. Em certa ocasião, como mais uma de suas aventuras, resolveu conduzir o carro dos pais, sendo que sequer sabia dirigir, e o resultado foi uma cicatriz em uma das mãos. Também costumava fazer provas se passando por amigos.

Ettore ingressa em engenharia em 1925 e permanece até 1928, e durante o curso conhece Emílio Segrè, que era orientando do físico Enrico Fermi. Segrè observa as inclinações e amor do siciliano para a física e matemática, relatando à Fermi que nunca conheceu ninguém tão inteligente, falando até de sua dificuldade em acompanhar o raciocínio rápido de Majorana. Isso levou ao primeiro encontro entre Fermi e Ettore, que podemos considerar um tanto pitoresco.

Ettore Majorana, imagem de www.spazioasperger.it

No primeiro encontro, Fermi apresenta os principais temas de física às quais o seu grupo se dedicava, e uma tabela que compilava resultados obtidos ao fim de semanas árduas de trabalho. Majorana, com olhar distraído, acompanha a explanação. Ao final, se retira rapidamente e diz que retornará no dia seguinte. Ao chegar, lança papéis sobre a mesa e aponta para uma tabela idêntica à de Fermi e diz que ela está correta e era muito simples. Fermi fica assustado com o conhecimento de Majorana e a rapidez com que refez seus cálculos. Majorana acende um cigarro e, lançando um olhar fixo e triste para uma janela, diz:

– Acho que vou colaborar com vocês. Segrè me convenceu do grande interesse da física. E ontem gostei desse bom ambiente. É um bom ambiente, não é? [1].

Majorana ingressa no grupo dos meninos da Via Panisperna, que foi ganhando vida e importância, e contava com Rasetti, Pontecorvo e Amaldi. Era muito querido, debatia teorias e resultados, mas continuava tímido e recluso. Todos tinham um apelido. Fermi, que era o chefe e não gostava de ser questionado sobre suas ideias, recebeu o apelido de “Papa”, enquanto Majorana se tornou o “Grande Inquisidor”.

Era nítido o confronto, Majorana, com raciocínio rápido e de forma simples, fornecia respostas às mais duras questões de Fermi, fazendo com que o grupo novamente caminhasse. Fermi reconhecia a superioridade intelectual do aluno, mas julgava que não levava as coisas à sério. Provavelmente, Fermi não compreendia que os questionamentos de Ettore iam para além da física. Sempre que podia, se negava a participar de atividade sociais e evitava congressos. Frequentemente se recusava a publicar trabalhos e isso incomodava o grupo, que reconhecia a originalidade a e grandeza de suas ideias, embora, para ele, nunca estivesse bom o suficiente.

Na fala de Laura ao marido Fermi: “Não adianta vocês incitarem Ettore a fazer isto ou aquilo. Ele nasceu assim. Não quer nem glória nem fama, não quer nada de nada. Ele tem uma visão da vida completamente diferente, parece até que está com medo de viver, de entrar em contato com as outras pessoas!” [2]. 

O comportamento ríspido e fechado com os colegas de Roma era bem diferente daquele que tinha com a família. Através de seu epistolário, encontramos um rapaz bom, bem-humorado, sensível e preocupado. Além de se interessar por política, economia e literatura. Por meio da irmã, Maria Majorana, sabemos: “Tenho muitas recordações da infância. Nas noites sem lua, Ettore me indicava o céu, as estrelas, os planetas: toda vez era uma pequena lição de astronomia. Suas palavras me tomam a mente ainda hoje ao lançar o olhar ao céu estrelado. Me dá prazer recordá-lo assim, enquanto me convida a guardar o céu e me ensina a chamar as estrelas pelo nome” [3].

Ele é lembrado pela família por brincadeiras e jogos de bola ou por fazer piadas de professores junto com os amigos de engenharia. Mas na Via Panisperna continuava o sujeito taciturno e inquieto. Sempre com cigarro e olhar triste, continuava sua pesquisa, parecendo sempre alheio. Usando maços de cigarro para fazer cálculos, enquanto viajava de bonde ao instituto. O que faz alguém agir de modos tão diferentes no mesmo período de tempo? O que inquietava Majorana? Esse comportamento permaneceria até 1933, quando o relacionamento com a família também passaria por transformações.

1933 – Um ponto de partida para transformações

Em 1929, Majorana orientado por Fermi, defende a tese “ A teoria quântica dos núcleos radioativos” e forma-se em física teórica. Obtém sua livre-docência em 1932.

A maioria dos cientistas ao discutir a composição do núcleo atômico por prótons e nêutrons atribuem tal ideia exclusivamente a Heisenberg. Contudo, bem antes, tal teoria foi a apresentada a Fermi e seus colegas por Majorana. Fermi o incentiva a publicar o trabalho e apresentar em um congresso de física na França. Ettore não só se recusa como proíbe que apresentem os resultados no congresso, deixando todos em estado de resiliência. Quando chega o anúncio da descoberta de Heisenberg, Majorana aparenta um estado quase de grande alívio como se tivesse sido poupado de algo terrível [4].

Em janeiro de 1933, Majorana chega a Leipzig. Em carta à sua mãe mostra-se feliz e com senso de humor apurado relata: “O instituto de física aqui é muito bem localizado, está entre o manicômio e o cemitério”. Além disso, descreve Heisenberg como simpático e muito educado. Na carta de 14 de fevereiro de 1933 escreve à sua mãe: “O ambiente do Instituto de Física é muito simpático. Tenho ótimas relações com Heisenberg, Hund e todos os outros. Estou escrevendo alguns artigos em alemão. O primeiro já está pronto, e espero eliminar qualquer confusão linguística durante as correções dos rascunhos”.

Apenas 4 dias depois chega uma carta ao pai: “Escrevi um artigo sobre a estrutura dos núcleos do qual Heisenberg gostou muito, apesar de conter algumas correções científicas a uma teoria dele” [3].

Em correspondência à família, datada de 22 de fevereiro, escreve com aparente entusiasmo sobre a apreciação de sua teoria para os núcleos por parte de Heisenberg e como este estava fazendo muita publicidade e divulgação de seu trabalho em desenvolvimento. As cartas demonstram que estava bem, além de forte apreço por Heisenberg publicitar seu trabalho, diferente das atitudes que tinha em relação à Fermi. É como se realmente tivesse se encontrado e não precisasse ter que se esquivar.

A relação de Majorana com Heisenberg vai para além de grandes discussões acerca de teorias em física nuclear. Jogavam xadrez, discutiam filosofia e literatura. Sempre enaltecendo o cientista alemão e, segundo ele, tornaram-se grandes amigos: “A companhia dele (Heisenberg) é insubstituível e desejo desfrutá-la enquanto ele permanecer aqui”.

Majorana escreveu aos pais que havia escrito um artigo em alemão e que estava com outros em andamento nesse período. Contudo, ele publicou um único artigo e, ainda sim, devido à pressão exercida por Heisenberg [5].

Em agosto de 1933, retornou à Roma, mas suas visitas ao Instituto de Física eram cada vez mais escassas até que as interrompeu. Tanto a família como os amigos afirmaram que estava muito diferente, mais afastado e fechado do que nunca.

Entre 1933 a 1937, seu estado é de reclusão total, somente quebrada quando um dos amigos o visita em sua casa – com exceção de Fermi, que nunca o procurou. Essa ausência de Fermi ainda se configura como uma das questões em aberto, bem como o motivo de sua mudança de comportamento, visto que em suas cartas anteriores ao retorno demonstravam felicidade e segurança [5].

Suas atividades são quase um mistério, mas os amigos Amaldi e Gentile acreditavam que estava trabalhando na pesquisa, embora nada conclusivo. O principal apontamento provém da família. Sua irmã relatou que estudava exaustivamente sem parar. Ainda trocou cartas com seu tio Quirino, nas quais discutiam sobre física e seu estudo da eletrodinâmica quântica. Desse período, encontrou-se apenas um manuscrito “Leis estatísticas na física e nas ciências sociais” [6].

O escape da clausura

Em 1937 foi aberto o concurso para a cátedra de física teórica em Roma, e Fermi fazia parte da banca de avaliação. Havia três vagas e três candidatos, tudo como acordado, o que é reafirmado por Laura Fermi. Contudo, eis que surge um candidato mais que inesperado e quase invisível, capaz de abalar a estrutura do concurso: Majorana se candidata, rompendo a clausura e publicando um artigo com poeira desde 1932. Nem Fermi supôs que Majorana participaria do concurso. Ele já havia recusado ofertas de emprego em grandes universidades dentro e fora da Itália. Por que ressurgir? Por um lado, poderia estar buscando voltar à sua vida científica e social. Outra hipótese é que se sentiu subestimado por não ter sido considerado a concorrer e resolveu brincar com as vidas “arrumadas” de todos – não teria perdido seu senso de humor. Afinal, o ingresso de Majorana significaria a perda da vaga do filho de um dos homens mais importantes. Sendo assim, o ministro da educação nomeia Majorana para a cátedra de física teórica em Nápoles e tudo continua como deveria ser desde sempre [1,5].

Teria Majorana gostado de tal solução? Estava realmente em seus planos se tornar professor? Conseguiria romper seu isolamento e assumir uma classe na universidade?

O que o destino reserva a Ettore Majorana?

Majorana começa a ministrar disciplinas em janeiro de 1938, e leciona por um breve espaço de tempo (cerca de 2 meses), até seu desaparecimento quase que completo. Analisando a literatura e cartas, observa-se que ele se tornou um mestre dedicado e envolvido com o aprendizado dos estudantes.  Planejando ou não desaparecer, cuidou para que os alunos não ficassem sem material para estudo. Para seu aluno Scuiti entregou dez notas de aulas autografadas, e para Gilda Sanatore suas anotações de física, falando que em breve as discutiriam. Ao enviar uma carta a Carrelli, informando que desistirá do cargo, solicita que mande saudações a Scuiti para lembrar a admiração que passou a nutrir pelo estudante.

Subitamente, antes de viajar, Majorana comparece à universidade e solicita que os salários atrasados sejam pagos, recolhe economias do banco e o passaporte, partindo para a Sicília. Antes, envia uma carta à um amigo, dizendo que já não pretende viver e que esse não pense que seja mera insensatez momentânea, pois seu problema era muito profundo. Na sua visão, o mundo não faria qualquer diferença sem ele. No dia seguinte, Carreli recebe um telegrama em que Majorana pede que desconsidere a correspondência anterior visto que, como o mar o recusou, voltará a trabalhar no instituto em Nápoles, mas não será mais professor, e outras explicações seriam dadas ao seu retorno. Essa é a última notícia concreta de Majorana [3].

Muitas buscas foram feitas para encontrá-lo, inclusive o papa e Mussolini se envolveram nesse processo. Majorana já havia relatado a pessoas próximas que tinha pensamentos suicidas. Provavelmente foi uma tentativa. Contudo, seu bilhete de ingresso no navio de Palermo a Nápoles foi encontrado, mostrando que alguém adentrou o navio. Um de seus companheiros na cabine era o professor Vittorio Strazzeri, que disse não saber o nome do rapaz, mas que tinha quase certeza que se tratava do mesmo da fotografia, e que este desembarcou em Nápoles. Tal informação foi confirmada por dois policiais. Foi realizada uma grande busca não só nas águas do porto, mas envolvendo agentes internacionais mundo afora. Aos poucos, teorias de loucura e suicídio ganhavam cada vez mais forma. Em abril de 1938, chegaram informações que Majorana tentou se converter à vida religiosa em um monastério, mas segundo os religiosos nunca mais retornou [1].

Segundo Scascia, uma hipótese é que Majorana poderia ter vislumbrado o impacto de sua pesquisa em relação ao potencial atômico, ou teria simulado a própria morte para recomeçar nova vida, provavelmente inspirado no romance O finado Mattia Pascal, de seu autor favorito, Pirandello [3]. O físico Carlos Rivera relatou que Ettore Majorana viveu na Argentina. Essas notícias chegaram aos seus ouvidos em distintas ocasiões, de que Majorana frequentava um restaurante onde fazia cálculos em guardanapos e toalhas de papel na década de 1950, segundo uma garçonete local, nos lembrando da época em que andava de bonde e rabiscava os maços de Macedônia.

A irmã e Erasmo Recami tomaram ciência e viajaram à Argentina e, mesmo sem fatos conclusivos, Recami sustenta a possibilidade [7]. Existem outras como o suicídio, defendido por Amaldi [6], além de relatos sobre uma aparição na Venezuela por volta de 1959 [8].

O caso foi reaberto em 2011 pela polícia italiana, que visitou a América do Sul e concluiu que não há qualquer evidência de crime, encerrando oficialmente o caso em 2015 [9].

Ettore Majorana possui uma história de vida que o faz um dos cientistas mais intrigantes do século XX, não apenas por ser considerado um gênio ou pelo misterioso desaparecimento. Ele marcou as páginas da história da física de forma única. Não seguia um padrão, não respeitava estereótipos, não conseguia se enquadrar num sistema científico na busca de glória ou reconhecimento. Só queria viver à sua maneira. Seus pares não eram capazes de compreender suas escolhas, buscando torná-lo alguém que jamais poderia ser. Um homem preso, que se impõem uma auto reclusão e confidencia seus pensamentos mais obscuros que o levam a cogitar o suicídio.

Desde sua ida para a ciência, sua vida se transforma em um labirinto, com tantas reviravoltas e aparentes possibilidades de saída mas, na verdade, para nós, é uma mera ilusão. Buscamos encontrar o caminho para a saída deste labirinto com hipóteses e conjecturas, mas o único que possui a resposta é o próprio Ettore e, assim, continuaremos presos no labirinto de Majorana.

Viviane Morcelle é mestre e doutora em física pela Universidade de São Paulo. É professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Referências

[1] Garozzo, F. Os homens que mudaram a humanidade – Enrico Fermi. Editora Três: São Paulo, 1a edição, 1975.
[2] Fermi, L. Atomi in famiglia. Editora Mondarione: Milano, 1954.
[3] Sciascia, L. Majorana desapareceu. Editora Rocco, 1a edição, 1991.
[4] Fracastaro-Decker, M. e Recami, E. “A figura e a obra de Ettore Majorana”. Revista Brasileira de História da Ciência, v. 2, 52, 1985.
[5] Morcelle, V. et al. “Ettore Majorana: o drama de consciência de um jovem cientista”. Ciência e Sociedade 4, 2006.
[6] Amaldi, E. La vita e l’opera di E. Majorana. Accademia Nazionale dei Lincei, Roma, 1966.
[7] Recami, E. “Ricordo di Ettore Majorana a cinquant´anni dalla sua scomparsa (l´opera scientifica edita e inedita)”. Ciência e Sociedade, 9, CBPF, 1988.
[8] Dongo, T. “Ettore Majorana: the mystery might be solved (2011)”. In: https://www.science20.com/quantum_diaries_survivor/ettore_majorana_mystery_might_be_solved-79823 .
[9] Paratico, A. “Science Focus: Italy closes case on physician’s mysterious disappearance”. 2015. https://www.scmp.com/lifestyle/technology/article/1713456/science-focus-italy-closes-case-physicians-mysterious