Por Nacho Lemus
O jornalismo terá que tomar fôlego entre as notícias de óbitos e suas condições de trabalho precárias para ter incidência crítica sobre o modelo de desenvolvimento econômico como base da crise civilizatória que o planeta e os próprios jornalistas enfrentam.
O Brasil e o planeta receberam o coronavírus como um balde de água fria com efeitos incomensuráveis sobre o sistema econômico e as relações sociais. Para os jornalistas a situação exige um esforço emergencial para garantir informação em um cenário de crise. Apesar dos diversos exemplos de solidariedade como elemento social de combate ao covid-19, a pandemia pode aprofundar fenômenos já encaminhados pelo neoliberalismo na individualização das relações humanas e perda de direitos trabalhistas.
As demissões em massa nas redações são prévias à pandemia; também não é novo o modelo de home office onde os trabalhadores são responsáveis pelos meios de produção e perdem direito a transporte, horas extras, almoço e às vezes até férias ou décimo terceiro salário. A contratação de pessoas físicas sob o eufemismo de empresa coincide com um fenômeno de invididualização dos jornalistas, sujeitos-marca que lutam no twitter para capitalizar seguidores e garantir a massificação das informações, mesmo que isso seja impossível de rentabilizar em termos jornalísticos. O tweet do jornalista poderá ser reutilizado por qualquer mídia sem autorização; o jornalista pode ganhar seguidores mas oferecerá sua força de trabalho de graça para outras mídias ou o próprio Twitter que, como o Google, já funciona como uma mídia global que concentra as outras mídias e pode oferecer informação sem necessidade de o usuário ingressar no site das mídias locais como Folha, Estadão ou G1. O que o jornalista vê na precarização dos trabalhadores em apps de delivery pode encontrar na sua luta para divulgar seu trabalho no Twitter.
Os fatos ficaram em casa
A concentração das mídias já tinha efeitos antes da covid-19: redações reduzidas, poucos jornalistas nas ruas para assistir aos fatos, muitas mãos para copiar e colar as informações de grandes corporações como Reuters, AFP, Getty, AP ou EFE, entre outras empresas controladas pelo capital financeiro e governos dos países centrais do capitalismo.
Ariel Palacios, da Globo News, fala desde Buenos Aires sobre Venezuela ou Colômbia, países limítrofes com Brasil onde a maior corporação midiática de América Latina poderia ter correspondentes. Quando o tema é Oriente Médio é pior ainda, o correspondente fica em Nova York. Essa é a distância brasileira dos fatos e o risco de contágio por covid-19 pode fazer da distância uma normalidade nas coberturas. Longe dos acontecimentos é inevitável a perda de objetividade ou acesso à verdade. É preciso encher o espaço da TV, para isso os veículos têm um exército de jornalistas postos a opinar ou, no melhor dos casos, contrastar os fatos com documentos ou confeccionar estatísticas.
Enquanto os riscos para a saúde dificultam a atuação dos jornalistas nas ruas e o ingresso nos comércios e moradias, a massificação do acesso às novas tecnologias permite às pessoas produzirem o seu próprio conteúdo. Esse contexto faz do jornalista um editor de conteúdos. Isso significa: reunir informações, pedir para as pessoas filmarem nos formatos exigidos pela TV ou em outras mídias (enquanto se adaptam às linguagens da internet) e, o mais importante, verificar a veracidade dos documentos.
Fake news na saúde
O processo eleitoral em 2018 deixou claro que as redes sociais são um componente essencial para a democracia. O escândalo da Cambridge Analítica, que influenciou a eleição de Trump nos EUA, coincide com as denúncias sobre a campanha de Jair Bolsonaro por financiamento ilegal de fake news, além disso são patentes as conexões entre os filhos do presidente brasileiro com Steve Bannon, assessor de Trump.
A crise gerada pelo novo coronavírus expõe um alinhamento político e discursivo do grupo do governo brasileiro conformado pelo presidente, seus filhos, o ministro de relações exteriores e o ministro de educação com as iniciativas do governo americano. Nesse sentido se repetem os ataques contra a OMS e a negação das comprovações científicas que influenciaram medidas globais de combate à covid-19. As narrativas negacionistas saíram muito além das redes sociais: na era da pós verdade, grupos de apoiadores do presidente gritam na porta dos hospitais que os leitos estão vazios, no meio da maior crise sanitária da história do país. Enquanto isso, o círculo do presidente culpa, sem comprovação alguma, o fantasma do comunismo pela disseminação do vírus ou chama um governador neoliberal de comunista. Aquilo que na última eleição foi uma problemática com efeitos sobre a democracia hoje é quantificável em mortes e a curto prazo. Ferramenta fundamental para o uso de fake news pela campanha de Jair Bolsonaro, o WhatsApp restringiu o reenvio de mensagens durante a crise por coronavírus para evitar a disseminação de informações falsas que ponham em risco a vida da população.
O acesso às informações através da internet e a crescente consciência da população sobre a relação da mídia e os interesses econômicos têm efeitos sobre a legitimidade da grande imprensa. Já é impossível o silêncio, os dados que contrastam os dados oficiais com os certificados de óbito com suspeita de covid-19 estão disponíveis apesar dos esforços institucionais para esconder, mas o uso político das fake news nos despertou sobre a necessidade de novos mecanismos de controle sobre a informação. Para isso é essencial a presença nas ruas de jornalistas capazes de comprovar os fatos.
O controle social
Para o jornalismo as crises têm um aspecto em comum, um aumento inusual na velocidade dos acontecimentos e o consequente aumento na geração de notícias. No Brasil pode se duplicar essa tese: o país vive o auge de uma crise institucional que começou após a eleição em 2014 junto com a maior crise sanitária da história. Além disso o fluxo incontrolável de informações é exacerbado pelo aumento no consumo e produção de conteúdo nas redes sociais pela própria população por conta do isolamento.
Os dados sobre casos de coronavírus e mortes em cada país e a nível regional são disponibilizados por plataformas globais e através de geolocalização. Google apresenta dados sobre a mobilidade dos indivíduos e a sua adesão à quarentena. As tecnologias do controle outorgam aos jornalistas a possibilidade de tirar conclusões por comparação de situações em cada país, quantificação da resposta da sociedade, políticas públicas e as consequências das relações entre essas variáveis sobre a saúde.
Mas a perspectiva macro da crise sanitária através de satélites não pode tirar do olhar a questão de base: um cenário urbano e rural que facilita a proliferação de vírus com alta incidência sobre os humanos. Não sabemos o tamanho das consequências e nada garante que no futuro não seja da normalidade precisar das “bondades” do controle social, ruas vazias e uma individualização das relações muito além do que já nos acostumava o neoliberalismo nas grandes urbes.
O jornalismo terá que se desconectar, tomar fôlego entre notícias de óbitos e condições de trabalho precárias para ter incidência crítica sobre o modelo de desenvolvimento econômico como base da crise social, econômica e civilizatória que vive o planeta e vivem os próprios jornalistas.
Nacho Lemus é jornalista e correspondente do canal TeleSUR no Brasil. Twitter @LemusteleSUR