Por Robson Fernandes e Marcia Alvim
Inúmeros fatores históricos e geopolíticos corroboraram para a utilização da língua inglesa em escala global. No que se refere a produção científica, o inglês é considerado a língua franca das ciências, permitindo que pesquisadores de várias nações compartilhem informações usando um idioma comum. O crescimento constante no número de artigos científicos publicados em inglês demonstra sua ampla adoção por pesquisadores, cientistas, periódicos e repositórios, incluindo aqueles de países que não falam inglês como língua materna. Este processo também abrange propostas de internacionalização das instituições de pesquisa e ensino, bem como a avaliação de pesquisadores e rankings acadêmicos.
Durante o século XX, com o fortalecimento econômico dos Estados Unidos da América, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, a língua inglesa foi amplamente difundida ao redor do mundo, tornando-se a principal forma de contato entre as nações. Faz-se relevante discutirmos a relação entre linguagem, ciência e geopolítica e como estes âmbitos são capazes de refletir e de perpetuar estruturas de poder coloniais impostas hierarquicamente, as quais contribuem para a sustentação de diferentes formas de colonialidade, agora não apenas territoriais, mas também linguísticas, científicas e culturais.
O uso predominante do inglês como língua franca da ciência pode ser interpretado à luz da teoria decolonial como uma manifestação da colonialidade do saber. Autores como Aníbal Quijano, Maldonado Torres, Walter Mignolo e Catherine Wash ressaltam que a determinação do inglês como língua franca gera uma hierarquia linguística capaz de marginalizar outras línguas e formas de conhecimento, reforçando sistemas de poder coloniais, especialmente frente ao que denominaremos como monolinguismo.
O monolinguismo do inglês como idioma acadêmico-científico chega a passar de forma quase despercebida, visto que é utilizado como padrão em diversos meios de produção e circulação científica, tais como, publicações, palestras e eventos, além do amplo número de publicações, causando uma espécie de imperialismo linguístico, fenômeno considerado como manifestação da colonialidade do saber, conforme aponta Mignolo:
Uma hierarquia linguística, entre as línguas europeias e as línguas não europeias, privilegiava a comunicação e a produção do conhecimento teórico nas línguas europeias e subalternizava as línguas não europeias como apenas produtoras de folclore ou cultura, mas não de conhecimento/ teoria (Mignolo, 2005, p. 18).
No processo de imposição colonial, as línguas dos colonizadores tornaram-se línguas oficiais de países colonizados e as lutas pelas independências em relação ao colonialismo não significou o fim das diferentes formas de dominação. Anibal Quijano (2005) denomina de colonialidade do poder a matriz colonial de poder que mantém ingerência em diferentes aspectos da vida social e cultural dos países que vivenciaram a colonização.
No contexto de colonialidade do poder e do saber, Mignolo aponta para a necessidade de reflexão sobre este padrão epistemológico da razão universal, buscando romper com o processo de colonização epistemológica presente, inclusive, na indicação da língua padrão da ciência: “[…] os corpos inferiores carregavam inteligência e línguas inferiores” (Mignolo, 2005, p.143).
Neste sentido, a legitimação do uso monolíngue do inglês como meio de comunicação privilegia epistemologias ocidentais dominantes em detrimento de saberes locais e indígenas, perpetuando a lógica da colonialidade, da dominação e da subalternização. Assim, o uso prioritário do inglês na esfera acadêmica-científica pode ser visto como uma forma neocolonial, já que está totalmente alinhado aos interesses dos países do norte global. Esta hegemonia reforça a assimetria na divulgação dos resultados das pesquisas e das produções científicas, tanto na recepção quanto na circulação das produções acadêmicas, desconsiderando as dificuldades que esses mesmos pesquisadores enfrentam para produzir e, também, para terem seus textos aceitos para publicação em periódicos de prestígio.
O uso do inglês como língua comum na comunicação universitária também está presente nas instituições de ensino superior (IES) que buscam se internacionalizar o que demonstra que o fazer científico-acadêmico permanece atrelado aos padrões eurocêntricos ou nortecentrados, dando continuidade à representação da colonialidade do saber nos países periféricos.
Além da manutenção da colonialidade pelo uso da língua hegemônica, pode-se observar um processo de inferiorização imposto aos países emergentes, os quais devem seguir os modelos nortecêntricos como padrões científicos e culturais, evidenciando-se as diversas formas de apagamento de conhecimentos oriundos de povos silenciados, dado que o conhecimento científico produzido, reproduzido, referenciado e compartilhado atualmente pelas instituições universitárias necessariamente se faz por meio de uma língua estrangeira comum, o inglês, estabelecendo-se, portanto, uma forma de colonialidade do saber nas ciências, dada a tentativa de universalização do conhecimento por meio de uma língua hegemônica.
Deste modo, é de suma importância a problematização da hegemonia da língua inglesa nas ciências e, conforme Hamel (2007), pensar outras possibilidades linguísticas para a produção de conhecimentos, como o multilinguismo e o plurilinguismo. Estes surgem como alternativas ao monolinguismo na produção científica, possibilitando novas formas de comunicação entre a comunidade científica, capazes de mitigar a exclusividade da língua inglesa nas produções científico-acadêmicas.
O multilinguismo, termo que se refere à possiblidade de coexistência de sistemas linguísticos diferentes (língua, dialeto, fala) dentro de uma comunidade seria um mecanismo estratégico, mediante ao monolinguismo atual, e poderia ser utilizado para representar a diversidade linguística presente na América do Sul, buscando-se uma integração entre o espanhol, o português e o inglês, e, certamente, a influência de línguas de comunidades originárias existentes nestas localidades, visto que a redução da diversidade linguística pode impactar na diversidade cultural das nações.
O conceito de plurilinguismo refere-se à presença e à interação de várias línguas dentro de uma comunidade específica, superando multilinguismo. Hamel (2007) destaca a importância de políticas linguísticas que promovam a equidade e a inclusão social, reconhecendo o valor das línguas indígenas minoritárias, essenciais para a preservação da diversidade cultural. Amon (2001) reforça as possíveis implicações desse conceito no âmbito educacional e profissional, destacando a necessidade de desenvolver competências plurilíngues para uma melhor integração e comunicação em sociedades globalizadas.
Devido às diversas barreiras linguísticas enfrentadas por pesquisadores no processo de produção científica, autores como Enrique Hamel (2007), Hans De Wit (2016), Gilvan Oliveira (2017) e Ulrich Amon (2001) têm discutido a implementação de uma Política e Planejamento Linguístico na Ciência e na Educação Superior (PPLICES), visando uma educação mais abrangente e inclusiva em termos linguísticos.
Neste contexto, consideramos fundamental a problematização da utilização prioritária da língua inglesa pela comunidade científica, a qual não deve ser tratada apenas como uma ferramenta capaz de atender aos padrões dos países do norte global, mas, sobretudo, como forma de romper com a imposição à determinadas demandas epistemológicas e acadêmicas constituídas pela colonialidade do saber. Deste modo, a proposição da criação de uma Política de Planejamento Linguístico na Ciência e na Educação Superior (PPLICES), as quais buscassem integrar os países periféricos aos diversos centros de pesquisa de todo o mundo, mas não apenas de modo hierárquico e subalterno aos países do norte global. Por meio de uma nova proposta multilíngue seria possível a constituição de redes de pesquisa integradas à perspectiva sul-sul global, capazes de tratarem o processo de comunicação científica de maneira horizontal, de acordo com os diferentes contextos e culturas.
Portanto, concluímos que, embora o inglês possa ser uma ferramenta útil na ciência, é crucial que ele não seja a única forma reconhecida e valorizada pela comunidade científica, mas sim um meio de facilitar a comunicação. Devemos refletir sobre alterativas decoloniais que possam promover a diversidade linguística por meio de políticas e ações que incentivem o multilinguismo e o plurilinguismo, pois consideramos que tais recursos permitem o uso de diversas línguas e tradições de conhecimentos, capazes de valorizar a diversidade linguística (e cultural) que enriquece a experiência educacional, cultural, acadêmica e científica, contribuindo para uma ciência mais inclusiva, anticolonial e alinhada aos princípios de justiça cognitiva e equidade global.
Robson Fernandes é mestre em Ensino e História das Ciências e da Matemática pela UFABC, Especialista em Língua Inglesa pela UMESP e Graduado em Letras (Português /Inglês) pelo Centro Universitário da Fundação Santo André.
Marcia Alvim é doutora em Ciências – Ensino e História da Ciência e mestra em Ensino e História das Ciências da Terra (IG/Unicamp), graduada em História (IFCH/Unicamp) e docente associada do Centro de Ciências Naturais e Humanas da UFABC.
Referencias bibliográficas
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