Por Peter Schulz
imagem: A procissão dos flagelantes – Francisco de Goya, 1812
Ciência é assim, mas as notícias não lembram que o andor dela precisa ir devagar, pois os santos a serem apreciados e, por que não, venerados, são de barro. Esse tipo de divulgação da ciência esquece o mais importante: a procissão da ciência é mineira
Sou uma pessoa ligada à ciência. Ela é complexa, gosto dela e experimento prazer nela. Resolveu e resolve problemas. Entendemos e apreciamos melhor o mundo com ela. Pode parecer frenética, mas na sua mineirice ela volta e meia nos lembra de que devemos ir devagar com o andor, que o santo é de barro. Quando a fazem correr demais, o bicho pode pegar, o que é do ramo, mas há quem não saiba disso. Como disse, sou pessoa ligada à ciência – e isso os algoritmos que anunciam novas notícias no meu celular já descobriram. E tem semanas que o bicho pega.
Dia sim, dia não, um novo experimento revolucionará a física, uma nova teoria fará com que repensemos tudo o que já se sabe, um passo decisivo foi dado para desvendar um problema crucial, um novo material ampliará infinitamente o horizonte de novas aplicações tecnológicas. E quase nunca os oráculos desses comunicados reproduzidos pela imprensa acertam. O tal novo experimento precisará ser confirmado por outros nos próximos meses ou anos antes de revolucionar alguma coisa, a nova teoria compete com outras e tem vários pontos ainda a serem demonstrados, o passo decisivo precisa de vários outros antes de a história poder classificá-lo com decisivo, o novo material extraordinário é resultado de um experimento malfeito, quando não de uma fraude a ser desmentida, como muitas vezes é.
Ciência é assim, mas as notícias não lembram que o andor dela precisa ir devagar, pois os santos a serem apreciados e, por que não, venerados, são de barro. Esse tipo de divulgação da ciência esquece o mais importante: a procissão da ciência é mineira. Leva ao público a impressão de que a ciência é um desfile de descobertas desconcertantes, que entram cada vez mais rápido e em número sempre crescente na avenida. Eu, pessoalmente, me cansei desse turbilhão de novidades e passo o dedo na tela do celular para desalojar a pompa e a circunstância da vez.
Como disse, sou pessoa da ciência e, portanto, fico feliz com as descobertas, ou novidades, afinal trata-se de um valor central da ciência. No entanto, o santo de barro exige a vagareza do andor, então procuro não ficar obcecado pelas novidades. Como existem cada vez mais delas, sob a alegação de ser um valor central, a novidade “precisa ser medida”, e, na esteira das métricas de número de artigos e citações, vão surgindo propostas nesse sentido [i].
Por outro lado, Barak Cohen, por exemplo, se pergunta: “Como a novidade dever ser valorizada na ciência?” [ii] Atenção: valorizada, e não medida. Sem ler com a devida atenção seu artigo, concordo com o temor que o autor já anuncia no resumo: “colocar valor demasiado na novidade pode ter efeitos contraproducentes na taxa de progresso da ciência e na organização da comunidade científica”. A seguir, ele recomenda que a “ênfase na novidade seja substituída pela ênfase no poder preditivo como característica de boa ciência”. Embora eu concorde com isso, detalhes novos pouco vistosos também merecem atenção, e sua observação, descrição, reprodução e análise podem formar bons cientistas. Se todos os detalhes devem ser publicados para alongar currículos, isto são outros quinhentos, mas que se misturam com as outras cédulas na mesma carteira da organização da comunidade científica.
A novidade parece também sofrer de um paradoxo: todos alegam ser a favor dela, mas, na hora de avaliar projetos que as busquem, indícios sugerem vieses em contrário. Esta é uma hipótese levantada já há alguns anos, embora os autores tenham posteriormente removido o artigo da revista [iii]. Fica-se então curioso, com a pulga atrás da orelha. Há ainda uma outra discussão recorrente, mas que vale lembrar. No artigo de Jalees Rehman “Novidade na ciência – necessidade real ou obsessão perturbadora?”, publicado no The Conversation em 2018, exibe-se um amplo conjunto de entrevistas com mais de 1.500 cientistas, 70% dos quais afirmaram que não foram capazes de reproduzir resultados de outros cientistas pelo menos uma vez. Sim, reprodutibilidade, assim como a novidade, é também um pilar da ciência [iv]. Como equilibrar melhor esses pilares? Cohen também adverte quanto à ênfase excessiva na novidade. Não irei me aprofundar em todos os detalhes; as referências estão aí para quem quiser ou puder ler. Uma palavra que emerge nessas discussões sobre novidade versus reprodutibilidade é a robustez, como outro fundamento da ciência. Fundamento bem apropriado para um santo de barro.
Esse problema não é, como poderia parecer, recente. Wladimir Kourganoff escreveu em 1969 o livro A face oculta da universidade, traduzido e publicado pela Editora da Unesp em 1990. Kourganoff foi um astrônomo e professor russo que emigrou para a França. O livro é uma crítica à universidade, cujos problemas fundamentais, segundo ele, os então novos ares de maio de 1968 não resolveriam. Estão lá os embates entre o ensino e a primazia da pesquisa e a obsessão pela publicação, entre outras questões. Sobre a novidade, no capítulo “Apego aos valores da pesquisa”, o autor lança mão de uma epígrafe, atribuída a G. Cesbron: “O leitor… ele se tornou ávido de novidades a qualquer preço”, que me lembra o leitor que se nutre da ciência pelas manchetes oferecidas pelos algoritmos nos dias de hoje. Em um parágrafo escrito há 55 anos, leio:
“Pode-se acrescentar … que também em nossos dias uma publicidade obsessiva inculca no público uma fome insaciável de novidades revolucionárias. Por contágio ou por esnobismo intelectual, a sede do ‘inédito’ vai avançando pouco a pouco a todos os domínios. Tudo é interessante, ou mesmo maravilhoso, pela simples razão de ser novo”.
E é bom lembrar ainda que a ideia de novidade tem uma longa história [v], não tendo significado sempre a mesma coisa (uma boa conversa enquanto se anda devagar, pois o santo é de barro).
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
[i] https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0254034
[ii] https://elifesciences.org/articles/28699?
[iv] https://theconversation.com/novelty-in-science-real-necessity-or-distracting-obsession-84032
[v] https://lab.cccb.org/en/a-history-of-novelty/
Peter Alexander Bleinroth Schulz foi professor do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em física e cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010). Foi secretário de comunicação da Unicamp.
Este artigo foi originalmente publicado no Jornal da Unicamp em 13 de março de 2024
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