Em entrevista, Alexandre Soares Carneiro apresenta um panorama sobre o ensaio, um gênero textual marcado pela liberdade, tanto na forma quanto no conteúdo
Por Laís Souza Toledo Pereira
Imagem: montagem de Laís Pereira
George Orwell, Robert Louis Stevenson, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Luis Borges. Esses quatro escritores, certamente mais conhecidos por suas obras ficcionais ou poéticas, foram também autores de um tipo de texto difícil de definir, que pode assumir diversas formas e tratar dos mais variados temas: os ensaios. Essa liberdade que marca o gênero ensaístico autoriza seus autores a mostrarem suas dúvidas, a não precisarem “provar” um ponto de vista, a testarem ideias excêntricas. E justamente esse exercício de liberdade, essa ousadia, tende a ser estimulante para aqueles que leem ensaios.
Nesta entrevista, Alexandre Soares Carneiro apresenta um panorama sobre o gênero ensaístico. Ele é professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Sua trajetória de pesquisa abrange temas como literatura portuguesa e literatura medieval, bem como o nascimento e as transformações do gênero ensaístico.
Como você definiria um ensaio para alguém que nunca ouviu falar sobre isso?
Eu diria que o ensaio é um texto de reflexão de forma livre, o que dificulta muito uma definição, porque obviamente ele pode assumir aspectos muito variados. Mas podemos identificar a tal liberdade do ensaio no fato de o ensaísta expressar não apenas o resultado final, mas um pouco do processo irregular do pensamento, desde a formulação de um problema, uma dúvida, um paradoxo que ele observou, passando pelas hipóteses iniciais, as hesitações, desvios, correções. O ensaio tende a incorporar as dúvidas naturais do processo de reflexão, talvez como as perguntas de um interlocutor imaginário, o que remete à característica dialógica do pensamento. Assim, a gente pode associar o ensaio à conversação, com sua típica a-sistematicidade.
A liberdade de testar ideias ou perspectivas insólitas também pode ser associada ao espírito da conversação. O filósofo, cientista, político e também ensaísta inglês Francis Bacon dizia, no início do século XVII, que a palavra “ensaio” era nova, mas a coisa era antiga. Ele dá como exemplo as cartas filosóficas de Sêneca [filósofo do Império Romano]. Essa aproximação do ensaio com as cartas é esclarecedora, pois elas são claramente um gênero dialógico. Poderíamos recuar aos diálogos de Platão, assentados nas perguntas de Sócrates. Michel de Montaigne frequentou muito esses autores e seus imitadores renascentistas. O ensaio poderia ser entendido, então, como uma expressão moderna dessa reflexão experimental e dialógica. Enfim, frequentemente vamos encontrar no ensaio pessoalidade, liberdade e um esforço de descrever ou redescrever um problema, de modo necessariamente não sistemático.
Você poderia comentar alguns aspectos que considera relevantes dos Ensaios de Montaigne?
Os Ensaios de Montaigne são naturalmente a grande referência para o gênero. Montaigne usou como título uma palavra que servia para mostrar a singularidade e a modéstia do seu empreendimento. Mas ele acabou oferecendo ao leitor um tipo de escrita muito atraente em sua liberdade, pois, no final, como disse o crítico André Tournon, “sua modéstia o libera”. Ele definiu um gênero que abria novos caminhos para a reflexão, criando também um novo público, de leigos cultos, que liam e escreviam em vernáculo, e não mais em latim. Foi um livro muito lido e “imitado”, desde sua publicação. Ele queria registrar suas reflexões, que eram bastante breves na origem, a partir da leitura de autores antigos e modernos, mas também de eventos que presenciou. Aos poucos, em sucessivas reescrituras, ele foi dando um viés mais livre e pessoal aos textos, ampliando-os muito. Foi se sentindo mais à vontade para julgar autores, eventos e questões, e parece que se inspira no próprio movimento da escrita para encadear novas digressões, e discutir a própria escrita, o próprio livro, e a si mesmo.
Isso é muito estimulante para os leitores, pois ele tem um repertório de assuntos muito variado, e hipóteses para sugerir, na forma de comentários livres. William Hazlitt, o grande ensaísta inglês do século XIX, dizia que o mérito de Montaigne foi ter sido “o primeiro que teve a coragem de dizer como autor o que sentia como homem”. Ele se expõe muito, mas de um jeito frequentemente irônico, e até um pouco perverso. Como disse um contemporâneo seu, “agradava-lhe desagradar agradavelmente”. A gente se deixa impregnar pelo livro e pelo jeito característico que o autor tem de abordar as coisas.
Poderia escolher um ensaio de Montaigne (que você goste ou que considere importante) para apresentar brevemente?
Gosto muito de um texto chamado “Do pedantismo”, que é o capítulo 25 do livro I. A palavra “pedante” ali quer dizer “professor”, e Montaigne se pergunta por que o professor se tornou, no teatro cômico de sua época, um tipo caracterizado pela extrema tolice. Embora seja um erudito, ele será vítima das trapaças de gente sem estudo, e do riso da plateia. E, mesmo quando sua tolice fica evidente a todos, mantém sua arrogância, que se manifesta na linguagem empolada, dentro do conceito atual de pedante. Montaigne se indaga sobre esse paradoxo (mais estudo levando a mais tolice), valorizando a intuição cômica do teatro como algo revelador. Ele parte do olhar cômico e toma o riso como uma evidência incontornável. Ele irá, então, testar várias respostas, até chegar à conclusão de que a educação pode ajudar, mas também prejudicar o julgamento. Tudo depende do modo como cada um se relaciona com o conhecimento, o que parece uma boa definição de sabedoria. Na sequência, ele propõe uma fórmula ainda mais eloquente – que não devemos nos perguntar o quanto uma pessoa sabe, mas como ela sabe. Esse deslocamento da quantidade para o modo é uma solução muito elegante para um problema que ele havia elaborado exaustivamente. A partir daí ele começa a exagerar um pouco, fazendo uma espécie de “elogio da ignorância”, mostrando como, ao longo da história, pessoas e povos se arruinaram pelo excesso de estudo.
Isso lembra muito o Elogio da Loucura, publicado em 1511, de Erasmo de Rotterdam, e outros elogios paradoxais renascentistas. Ele obtém efeitos muito interessantes com esse tom que a gente chama de joco-sério, recuperando a perspectiva cômica que havia sido ponto de partida para uma discussão séria. É uma reflexão breve, densa, provocativa, meditada, mas sem qualquer pompa.
Esse capítulo estaria na origem de um texto mais amplo, e mais famoso, que vem na sequência, chamado “Da educação das crianças”. Ele começa esse texto contando que discutira aquelas breves ideias, sobre o pedantismo, com algumas pessoas, e, a partir dali, fora instado a formular um guia para a educação do jovem nobre. Ele adota então um tom mais sentencioso, mas remetendo ao espírito de discussão e de sátira do capítulo anterior.
E em relação à presença do ensaísmo no Brasil?
O ensaísmo no Brasil é mais importante do que parece, talvez porque a palavra não tenha sido tão usada. Temos, assim, alguns notáveis ensaístas “ignorados”. Drummond é famoso como cronista e poeta, mas mostra-se muito à vontade no gênero, por exemplo, no livro chamado Passeios na Ilha (publicado em 1952). Ficcionistas importantes escreveram ensaios, embora ninguém tenha se preocupado muito em chamá-los por esse nome. Penso em Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues. Quanto ao último, o professor Luís Augusto Fischer, do Rio Grande do Sul, defendeu, em um livro, a ideia de um Nelson ensaísta.
Outros ensaístas que aprecio são Augusto Meyer e Alexandre Eulalio. São autores que a gente lê, aprende e ainda fica admirado com o estilo, e estimulado a ler os textos comentados. Alexandre Eulalio escreveu sobre a história do ensaio no Brasil, recuperando autores totalmente esquecidos, e tem também um belo texto sobre Minha vida de menina (1942), de Helena Morley [pseudônimo da escritora brasileira Alice Dayrell Caldeira Brant], no qual chama de “livro que nasceu clássico” ao diário de uma adolescente interiorana.
O gênero teria um certo viés antiacadêmico, anunciado pelos capítulos de Montaigne que comentei, mas a gente sempre pensa em contraexemplos como o do professor Antonio Candido, um escritor muito culto, perspicaz e elegante. Cito um ensaio dele sobre a crônica, chamado “A vida ao rés do chão”, [publicado em 1984 como prefácio do quinto volume da coleção Para Gostar de Ler: Crônicas]. Foi o primeiro texto de crítica literária que li. Descobri então que um comentário sobre literatura também pode ser lido como literatura, elucidando com inteligência e nos envolvendo com uma visão pessoal.
Lembro de passagem que a crônica é um gênero aparentado ao ensaio, podendo ser associado ao que os ingleses chamam de “ensaio familiar”. Além disso, tal como no caso dos textos de Alexandre Eulalio que citei, trata-se de valorizar autores, textos e gêneros considerados de menor importância. Isso faz pensar naquelas ideias de liberdade e ousadia do ensaio, mas também nos leva ao tema da qualidade literária do ensaísta, motivado pelo esforço de descrever objetos a partir de um apreço pessoal por eles. Essa pessoalidade e esse amor parecem inspirar o autor, e a nós leitores, quando o escritor é bom. Para mim, uma aspiração muito digna para a crítica. Recomendo, ainda, os ensaios do professor Paulo Rónai; por exemplo, os seus livros Encontros com o Brasil (1958) e Como aprendi o português e outras aventuras (1956).
Para além de Montaigne, recomenda alguns ensaios/ensaístas (modernos ou contemporâneos, brasileiros ou estrangeiros…) para quem quer começar a ler ensaios?
Vou mencionar alguns dos meus ensaístas prediletos. O primeiro é Jorge Luis Borges, que deu ao ensaio latino-americano uma característica de universalidade, com muita variedade de temas, alguns insólitos. “Profundidade e erudição não costumam andar juntas, e a isso Borges ainda acrescentou a graça e a sedução” – é o que comenta Emil Cioran, outro ensaísta que admiro muito, em um perfil presente no seu livro Exercícios de admiração (1986).
Um autor incontornável do ensaísmo do século XX é George Orwell, pela qualidade de sua reflexão, seu estilo direto e a coragem de enfrentar temas difíceis, como a submissão de intelectuais ocidentais a ideologias autoritárias, tema que conhecemos melhor através de sua ficção. Outro autor mais conhecido como ficcionista, Robert Louis Stevenson, tem ensaios de grande qualidade estilística.
Autores de língua inglesa sempre nos vêm à mente quando se fala na história do ensaio. Pessoalmente, tenho grande admiração por esse escritor do século XIX que citei, William Hazlitt. A revista Serrote traduziu um texto dele a respeito do ensaio. Aliás, muitos ensaístas escreveram sobre o ensaio. Entre os italianos modernos, citarei Pier Paolo Pasolini e seus Escritos corsários, com um viés mais polêmico, há pouco traduzidos no Brasil por Maria Betânia Amoroso; cito também o crítico literário Alfredo Berardinelli. Entre autores de língua alemã, valorizo muito os textos de Erich Auerbach, entre eles seu ensaio sobre Montaigne.
O ensaísmo hispânico tem muitos autores importantes, mas destaco um espanhol pouco conhecido no Brasil, Azorín [pseudônimo do escritor José Augusto Trinidad Martínez Ruiz]. Ramón Gomez de la Serna escreveu sobre o circo, as ruas de Madri, e seu famoso mercado de pulgas (el Rastro), entre outros temas ditos “costumbristas”. Há ainda os novecentistas Ramón de Mesonero Romanos e Mariano José de Larra. Em língua francesa, citaria, além de Cioran, o grande erudito, há pouco falecido, Marc Fumaroli, e o suíço Jean Starobinski, porque são autores de importantes estudos sobre Montaigne.
Há ainda romancistas e poetas que escreveram ensaios importantes, me ocorre falar agora de Michel Houellebecq, que é um romancista famoso, atual, contemporâneo, que tem ensaios interessantes, entre eles, um sobre H. P. Lovecraft.
Laís Souza Toledo Pereira é licenciada em letras e bacharela em estudos literários (Unicamp). Especialista em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).