O eclipse de 1919 e as disputas pela ciência

Por Danilo Albergaria

A história da produção e da interpretação dos dados observacionais em 1919 constitui um cenário muito mais complicado do que o encontrado nas narrativas triunfalistas. O primeiro e mais persistente mito sobre a construção da ciência em nossa cultura é o de que os dados experimentais e observacionais constituem base objetiva para o teste e a avaliação das teorias. O segundo, mais novo, é o de que a produção e a interpretação dos dados empíricos são determinadas pelos vieses teóricos, ideológicos ou metafísicos dos cientistas envolvidos. Afirma-se, assim, um lugar-comum oposto ao da objetividade. Ambas são formulações perniciosas e jogam água no moinho da incompreensão sobre o funcionamento da ciência. Estudos posteriores mostraram que a confiança nos resultados de 1919 favoráveis à relatividade geral era justificada.

O eclipse total do Sol registrado em 29 de maio de 1919 por duas expedições de astrônomos britânicos – uma enviada à cidade de Sobral, no Ceará, e a outra, à ilha do Príncipe, na costa africana do Atlântico – é celebrado como o evento que possibilitou um dos maiores triunfos da história da ciência. O objetivo das observações era submeter a teoria da relatividade geral, publicada por Albert Einstein em 1915, a um “teste crucial”: a medição de desvios da luz emitida por estrelas distantes, em posição aparente próxima ao Sol durante o eclipse. Os resultados das observações foram comunicados em novembro daquele mesmo ano, diante de uma grande plateia de físicos e astrônomos na Royal Society, como uma comprovação da relatividade geral.

As notícias da época mostram os contornos de dramaticidade do anúncio: “Revolução na Ciência – Nova Teoria do Universo – Ideias Newtonianas Derrubadas”, dizia a manchete do diário londrino The Times de 7 de novembro de 1919. Três dias mais tarde, no The New York Times, lia-se: “Teoria de Einstein triunfa”. Cem anos depois, o episódio continua sendo narrado por veículos de comunicação de massa com quase o mesmo entusiasmo. Apesar disso, a história da produção e da interpretação dos dados observacionais em 1919 constitui um cenário muito mais complicado do que o encontrado nas narrativas triunfalistas da ciência.

Uma das manchetes do jornal New York Times (10 de novembro de 1919)

As observações foram prejudicadas por vários problemas, do clima fechado em Príncipe ao funcionamento insatisfatório do principal equipamento enviado a Sobral. Os dados coletados pelo equipamento reserva no Brasil e sob as nuvens na ilha africana precisaram ser filtrados com muita engenhosidade interpretativa. A alegação de confirmação da relatividade geral foi recebida com cautela e ceticismo por uma parcela significativa dos cientistas da época, que preferiram aguardar resultados de novas observações de eclipses. Essas observações foram realizadas em 1922, mas não foram substancialmente mais precisas do que as coletadas três anos antes.

Nas últimas décadas do século XX, historiadores e filósofos da ciência passaram a questionar o caráter decisivo das observações realizadas durante o eclipse de 1919. Emergiram dúvidas sobre a objetividade do teste e a racionalidade das escolhas dos cientistas envolvidos na produção e na interpretação dos dados observacionais: uns foram desconsiderados, enquanto outros foram tomados como decisivos.

Disputas sobre o caráter decisivo das observações de 1919
Resultados experimentais ou observacionais que suportam ou refutam uma teoria são geralmente mais complicados do que a maneira com que são comunicados para o público geral. Há a complexidade técnica envolvida na construção dos aparatos tecnológicos utilizados na obtenção dos dados. Há o problema da precisão e da confiabilidade dos resultados. E há, também, ainda mais difíceis de desemaranhar, questões de ordem epistemológica, que tocam no espinhoso problema de se falar em refutações e comprovações de teorias científicas. Essas complexidades indicam que raramente podemos considerar os resultados dos testes experimentais e das observações como formas não-problemáticas, simples e diretas de se resolver uma contenda teórica.

Dois filósofos da ciência, John Earman e Clark Glymour, publicaram em 1980 um influente artigo que analisa o caso do “teste crucial” do eclipse de 1919 levando em consideração essas complexidades e o caráter bastante problemático e impreciso das observações. O artigo afirma que o viés teórico e político do cientista mais famoso envolvido na produção e interpretação dos dados observacionais, o astrofísico Arthur Eddington, fez pender a balança para o lado einsteiniano de maneira não plenamente justificada e objetiva. Mesmo antes do eclipse, Eddington estava convencido de que a relatividade geral estava correta. Além disso, encontrava-se engajado num projeto internacionalista e pacifista de reaproximação entre a Grã-Bretanha e a Alemanha logo após a Primeira Guerra Mundial. Os filósofos levantam a suspeita de que isso motivou Eddington a transformar observações imprecisas em um triunfo do cientista alemão para o público britânico – uma espetacular manobra de relações públicas em prol da reintegração das comunidades científicas europeias.

Ambas as teorias, de Newton e de Einstein, podiam ser usadas para calcular e prever alterações no posicionamento de estrelas enquanto o Sol estivesse passando à frente delas em nosso campo de visão. Na física newtoniana, isso seria causado apenas pela interação da luz emitida pelas estrelas com o campo gravitacional do Sol. A relatividade geral adicionaria à interação gravitacional a curvatura no espaço-tempo causada pela grande concentração de massa no Sol. Como o Sol ofusca o brilho das estrelas e impede a sua observação em condições normais, o eclipse solar era a única oportunidade de se observar e medir o fenômeno de desvio da luz, de forma a decidir se a teoria de Einstein se aplicaria à estrutura do universo ou não. A curvatura do espaço-tempo causaria um desvio duas vezes maior do que o previsto a partir da física newtoniana.

Eddington divisava apenas três possíveis resultados para as observações: ou a luz das estrelas não sofre desvio ao interagir com o campo gravitacional do Sol, ou sofre um desvio compatível com a física newtoniana, ou o desvio previsto pela teoria da relatividade geral. O problema é que os resultados coletados por ambas as expedições apresentaram discrepâncias consideráveis entre si. Para Earman e Glymour, mesmo que mais próximos dos valores previstos pela relatividade geral do que pela física newtoniana, os dados não justificavam uma decisão em favor de uma ou de outra teoria. Alegam, ainda, que as observações só foram favoráveis à teoria einsteiniana porque parte delas foi desconsiderada – caso das imagens produzidas pela lente astrográfica de 10 polegadas enviada a Sobral – e porque as discrepâncias entre os dados que entraram na análise acabaram por ser ignoradas.

Recentemente, o astrofísico e historiador da ciência Daniel Kennefick vem procurando dissipar o nevoeiro de suspeitas em torno das alegações de que os dados foram selecionados para favorecer um resultado específico. Kennefick reconstrói o processo de filtragem e interpretação dos dados obtidos em Sobral e Príncipe e defende que os cientistas responsáveis pela análise dos dados tinham bons motivos para avaliar as observações como uma vitória da relatividade geral.

Frank Dyson, astrônomo britânico de estatura comparável à de Eddington na época (mas cuja fama acabou sendo dissipada ao longo do tempo), foi igualmente responsável pela análise dos dados e abriu o anúncio oficial em novembro de 1919. Ao contrário de Eddington, Dyson era cético quanto à teoria da relatividade geral antes do chamado teste crucial. Kennefick afirma que a análise realizada também por Dyson descartou os dados do instrumento principal levado a Sobral não porque se mostravam incompatíveis com a teoria de Einstein e mais próximas da de Newton, mas porque havia indícios relevantes de que não se podia separar o desvio da luz que se desejava medir e os efeitos indesejados de alteração de escala das imagens. Como o desvio da luz causado pelo campo gravitacional e a curvatura do espaço-tempo, a alteração de escala também desloca o posicionamento das estrelas nas placas astrométricas.

Disputas pela ciência
Na década de 1970, Paul Feyerabend argumentou que os cientistas utilizam a retórica e a propaganda para persuadir seus pares, aglutinar aliados em torno de suas ideias e, assim, vencer disputas teóricas – algo exemplificado, para o filósofo da ciência, pela estratégia de Galileu contra os aristotélicos. A tese de que as contendas sobre teorias diferentes são jogadas mais com as armas da comunicação persuasiva do que com a produção de dados confiáveis e objetivos tem um apelo significativo entre aqueles que desejam questionar as narrativas triunfalistas da ciência. Mas, ao escarnecer da pretensa objetividade dos cientistas em meio a disputas teóricas, é possível que Feyerabend tenha criado somente outra caricatura.

O primeiro e mais persistente mito sobre a construção da ciência em nossa cultura é o de que os dados experimentais e observacionais constituem uma base objetiva para o teste e a avaliação das teorias. O segundo, mais novo, é o de que a produção e a interpretação dos dados empíricos são determinadas pelos vieses teóricos, ideológicos ou metafísicos dos cientistas envolvidos. Afirma-se um lugar-comum oposto ao da objetividade: os dados são frequentemente fabricados e interpretados ao gosto do freguês, moldados segundo interesses apartados de objetivos legitimamente cognitivos. O conhecimento científico refletiria, assim, apenas relações de poder e interesses pessoais.

Ambas são formulações perniciosas e jogam água no moinho da incompreensão sobre o funcionamento da ciência. Combinada com a grande dificuldade de acesso tanto às produções científicas quanto à possibilidade de se produzir ciência, a confusão sobre como se constrói o conhecimento científico ajudou a produzir a atual constelação de bizarrices irracionalistas, da Terra plana ao movimento antivacina. E provavelmente alimentou o atual clima anti-intelectual brasileiro, em que o financiamento público da ciência pode ser atacado com pouca reação organizada da sociedade civil.

Uma leitura apressada da história das observações do eclipse de 1919 pode levar a um ou outro desses extremos, mas nenhuma dessas interpretações se justifica nesse caso.

É bem plausível que o caráter problemático das observações tenha sido ofuscado pelo espetacular anúncio de Eddington e Dyson a favor da relatividade geral. Ambos montaram uma campanha sistemática para promover as observações como um teste crucial e o anúncio de seus resultados como o rufar dos tambores de uma revolução. A cobertura da imprensa, na época, certamente ajudou a sedimentar a ideia de que os dados coletados em Sobral e Príncipe seriam suficientes para suplantar Newton decisivamente em favor de Einstein.

Apesar de tudo isso, a relatividade geral não triunfou por conta de uma interpretação idiossincrática de um eminente cientista favorável à teoria, ou porque o entusiasmo da cobertura midiática do anúncio da vitória einsteiniana pesou mais do que o exame cético das evidências. Estudos posteriores mostraram que a confiança nos resultados de 1919 favoráveis à relatividade geral era justificada. Uma nova análise dos dados do eclipse de 1919, realizada em 1979, mostrou que as medidas do desvio da luz captadas pelo instrumento reserva em Sobral estavam satisfatoriamente corretas. Ao longo do século XX, a teoria de Einstein sobreviveu a testes como a observação extremamente precisa dos desvios de emissões de rádio de quasares, também causados pela curvatura do espaço-tempo ao redor do Sol, além de possibilitar a alta precisão do sistema de posicionamento global (GPS), para ficar apenas em alguns exemplos. Eddington tinha bons motivos para sustentar suas convicções.

Danilo Nogueira Albergaria Pereira é doutorando em Filosofia da Ciência pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp), especializado em jornalismo científico e mestre em divulgação científica e cultural pelo Labjor/Unicamp e graduado em história pela Universidade Metodista de Piracicaba.

 

Referências

Earman, John e Glymour, Clark. “Relativity and eclipses: The British eclipse expeditions of 1919 and their predecessors”. In: Historical Studies in the Physical Sciences, Vol. 11, No. 1 (1980), pp. 49-85.

Keffenick, Daniel. “Testing relativity from the 1919 eclipse — a question of bias”. In: Physics Today, March 2009, pp. 37-42.

_______________. “Not only because of theory: Dyson, Eddington and the competing myths of the 1919 eclipse expedition”. In: In: Lehner C., Renn J., Schemmel M. (eds) Einstein and the changing worldviews of physics. Einstein Studies, vol 12. Birkhäuser Boston, 2012.

Sponsel, Alistair. “Constructing a ‘revolution in science’: The campaign to promote a favourable reception for the 1919 solar eclipse experiments”. In: The British Journal for the History of Science, Vol. 35, No. 4 (Dec., 2002), pp. 439-467.

Stanley, Matthew. “’An expedition to heal the wounds of war’: The 1919 eclipse and Eddington as quaker adventurer”. In: Isis, Vol. 94, No. 1 (March 2003), pp. 57-89.

Will, Clifford. “The 1919 measurement of the deflection of light.” In: Classical and Quantum Gravity. Oct. 2014, pp. 1-17.