Por Alexandre Fernandez Vaz
Se o esporte de alto rendimento não busca a saúde, mas, ao contrário, tolera-se às vezes altas doses de prejuízo para ela em nome dos bons resultados, o que justifica a condenação do uso de substâncias proibidas porque não saudáveis?
1. Introdução
As práticas esportivas estão envoltas, no contemporâneo, em muitos paradoxos. Não é surpresa que assim seja, uma vez que os fenômenos sociais não são mesmo unívocos e isentos de contradições. Uma delas refere-se ao uso de drogas. Diz-se constantemente que a prática assídua de esportes afastaria os jovens do seu consumo chamado de recreativo – termo bastante inadequado, segundo penso –, oferecendo-lhes uma experiência interessante na qual poderiam desenvolver um sentido para a vida que fosse emoldurado por disciplina e concentração, além de eventualmente formarem vínculos positivos com colegas e mesmo adversários.
De fato, como em outras práticas sociais, como a escolarização e a dedicação às artes, isso é possível. No entanto, os resultados esportivos de alto rendimento – pedra de toque e referência, em maior ou menor medida, para as práticas amadoras – têm estado, já há algum tempo, sob a suspeita de terem sido alcançados mediante o estímulo da ingestão de substâncias consideradas ilegais. Estamos diante do fenômeno do doping.
Se de fato há uma diferença no uso de drogas vistas como recreativas em relação àquelas cujo emprego visa ao incremento da performance atlética, permanece a questão de que tais substâncias são dispositivos capazes de incrementar a vida vivente, o organismo.
Pertence a esse processo os impulsos tão presentes de medicalização da vida, a fé que parece cada vez mais inquebrantável de que somos todos uma usina bioquímica, quando o corpo é colocado como aposta identitária, enquanto o cérebro é visto como próprio eu nos termos de um “sujeito cerebral” (Ortega; Vidal, 2007).
Incremento da performance – que pode ser esportiva ou de outro tipo, como aquela do mercado da beleza – e mitigação do sofrimento – o que inclui a angústia que nos assola nesse tempo que nos coube viver – são motores que nos levam ao uso de substâncias, lícitas e ilícitas, que grassam nosso cotidiano.
Não é de hoje que o uso de substâncias ilegais é disseminado e, simultaneamente, combatido no esporte. Atualmente, no entanto, o tema encontra um lugar privilegiado nas discussões do campo esportivo, o que inclui a grande imprensa e os aficionados e consumidores. As razões para tanto são várias, entre elas certamente está a maior capacidade de o sistema esportivo investigar, analisar e punir os usuários do doping.
Análises mais detalhadas dos fluidos corporais (o que inclui recentemente o sangue, não mais apenas a urina) fazem com que o uso de substâncias proibidas não apenas possa ser punido logo após sua ingesta, mas muitos anos depois, como no recente caso que beneficiou a equipe brasileira de revezamento 4×100 feminino. Recebeu, com oito anos de atraso, a medalha de bronze correspondente aos Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim, uma vez desclassificada a equipe russa, então primeira colocada. Uma de suas atletas foi flagrada, anos depois da prova, com substância dopante no sangue, em processo de reexame de amostras coletadas por ocasião do evento, na China, motivada pelas denúncias que acabariam por deixar a Rússia fora das competições de atletismo nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016.
Complementarmente, ações custosas como as abordagens fora de competição, quando atletas são submetidos à coleta de material para análise em suas casas ou locais de treinamento, são hoje frequentes, estabelecendo um domínio sobre os corpos esportivos – e mesmo sobre a vida cotidiana dos atletas – em um plano jamais visto.
Some-se a isso a vigilância eletrônica dos meios de comunicação e das redes sociais, capazes de viralizar uma informação ou uma denúncia em tempo que, se medido em termos esportivos, seria sempre recorde.
2. Dois argumentos
De uma forma geral são dois os argumentos contra o uso de substâncias ilegais no esporte. Um deles refere-se aos prejuízos que anabolizantes e estimulantes do sistema nervoso central, entre outras, causariam à saúde dos consumidores. Trata-se de um argumento com problemas em sua sustentação, pelo menos no que se refere ao esporte de alto rendimento. Este exige, geralmente, a submissão do corpo a um nível muito alto de estresse em sessões de intenso treinamento, que não necessariamente são benéficas para a saúde, mas, ao contrário, fazem o corpo ultrapassar limites, que frequentemente levam a lesões e outros problemas que, não raro, se transformam em sequelas para uma vida que se estende muito além dos anos de dedicação ao esporte competitivo (Vaz, 2005).
Desta forma, se o esporte de alto rendimento não busca a saúde, mas, ao contrário, tolera-se às vezes altas doses de prejuízo para ela em nome dos bons resultados, o que justifica a condenação do uso de substâncias proibidas porque não saudáveis?
Por outro lado, a questão nos mostra algo que diz sobre uma face do esporte sobre o qual pouco se reflete. Não é casual que o uso de substâncias proibidas para o esporte seja frequentemente liberado para pessoas que, fora da situação de competição, não estariam cometendo qualquer ilegalidade: pacientes de determinadas doenças, por exemplo. É por isso, aliás, que quando um atleta enfrenta uma enfermidade, as autoridades esportivas devem ser oficialmente avisadas sobre a medicação que vem sendo ingerida, o que o libera, em princípio, de possíveis sansões no caso de um exame antidoping ter resultado positivo.
Pois bem, a falta de performance é como que um défice para os atletas, que com a ajuda de substâncias químicas podem minimizar tal situação, seja com esteroides anabolizantes (que ajudam na recuperação entre uma sessão e outra de treinamento, permitindo um incremento na resposta morfológica ao treinamento de força, por exemplo), diuréticos (que fazem diminuir temporariamente o peso corporal, algo importante para os procedimentos de pesagem entre boxeadores, judocas etc., cuja categoria em que lutam depende do peso que envergam), ou ainda estimulantes do sistema nervoso central (que mascaram a fadiga, entre outros efeitos). Isso sem falar do uso geralmente legal de analgésicos diversos, companheiros de muitos atletas que convivem diariamente com dores crônicas e agudas.
Alia-se a esse quadro o fato de que o treinamento corporal, em sua dinâmica, ao induzir o estresse calculado (mas nem sempre) em um corpo, reproduz a operação de uma doença, procurando mobilizar o organismo a uma adaptação morfológica (Vaz, 1999) que, com o uso de substâncias que são ilegais para o esporte, pode ser potencializada. Observe-se que:
Há um consumo de drogas, por exemplo, em função das lesões e doenças desenvolvidas pelos “excessos” das competições e principalmente dos treinamentos (se é que se pode falar em “excessos” em atividades em que esses são justamente a mola propulsora). O treinamento corporal é uma experiência que, corriqueiramente, provoca lesões com diferentes graus de gravidade que, por sua vez, exigem recuperação. Em outras palavras, a adição de fármacos e a submissão à fisioterapia fazem parte tanto da vida de um atleta de alto rendimento quanto de uma pessoa em tratamento médico convencional. Não só para a melhoria da performance é que se consomem drogas. O caráter terapêutico, no entanto, parece ser determinante para que se considere legítima a ingestão de substâncias químicas (Hoberman, 1998). O corpo precisa recuperar-se mais rápido da fadiga, é preciso tirar as dores, metabolizar melhor e mais velozmente. Quais são os limites entre uma e outra situação? (Vaz, 2005, p. 30).
Dizer que o argumento em defesa da saúde não é sustentável não significa afirmar que pouco importa que o corpo permaneça saudável, ao contrário, refere-se à defesa de uma posição que considera que, pelo menos, há que se saber das consequências do treinamento corporal para a alta performance no bem-estar não apenas durante a carreira atlética, mas também para o período posterior a ela, quando a vida continua por um período geralmente ainda longo. Há que ter claro também as consequências do uso das drogas relacionadas à performance também por seu emprego em práticas não competitivas, como é o caso do cultivo do corpo em academias de ginástica e musculação.[1]
Outro argumento contra o uso de substâncias ilegais, ou seja, legitimador do antidoping, é que ele feriria a igualdade de chances entre os competidores, base de toda prática esportiva. De fato, sem tal requisito, o esporte tradicional, extremamente normativo, parece não poder existir. É por isso que há categorias de peso entre lutadores, como antes citado, divisões por idade e gênero nas competições, entre outras ações que procuram garantir as mesmas possibilidades para todos os competidores. Mas também este é um argumento que precisa ser matizado, uma vez que as condições objetivas para preparação não são as mesmas entre todos os atletas ou equipes postulantes em uma competição.
Mas a ponderação acima eclipsa, talvez, um outro ponto, não menos importante, nesta discussão. De fato, se alguns cumprem as regras e outros não, estamos em situação de desigualdade formal no esporte. Então, por que não liberar, como sugere Tamburrini (2011) o uso de drogas para os esportistas, igualando as chances de todos, se o esporte de alto rendimento não se preocupa, ao menos não primordialmente, com a saúde de seus competidores? Provavelmente porque o esporte precisa manter, por razões de ordem moralista e financeira, a imagem de prática “limpa”, em especial depois de tantos escândalos relacionados ao doping nas últimas décadas.
Vários foram os atletas que passaram rápida e vertiginosamente de ídolos e modelos de conduta ao opróbio da condenação pelo uso de substâncias ilegais em suas excepcionais performances. Ben Johnson, o maior velocista do atletismo mundial até ser flagrado pelo uso de anabolizantes logo após a final dos cem metros rasos nos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, é o primeiro exemplo da eloquente oscilação entre os polos da glória e da exposição pública negativa, com o qual se juntaram, ao longo dos anos seguintes, ciclistas como Marco Pantani e Lance Armstrong (este ainda mais que todos, porque vencera um câncer, o que lhe elevara ainda mais a alcunha heroica), além da corredora Marion Jones, entre tantos.
3. Uma nota final
Embora a responsabilidade pela ingestão de qualquer substância seja, em última instância, do próprio atleta, é comum que ele receba a orientação de profissionais que avalizem ou mesmo proponham o que consumir, sejam substâncias legais ou não. Com alguma frequência, há punição para esses profissionais, como fisiologistas ou médicos, ou mesmo treinadores, quando provada sua participação em esquemas de prescrição e consumo de drogas ilícitas para o esporte.
Cabe aos profissionais do esporte saber o que está ou não na lista de proibições, o que vai variando conforme uma série de fatores ao longo do tempo. Observe-se o caso de Carl Lewis, herdeiro da medalha de ouro olímpica em 1988, quando da supracitada desclassificação de Ben Johnson: em 2003 best replica watches, veio a público o fato de que ele teria sido flagrado com níveis, então aceitáveis, de efedrina, pseudoefedrina e fenilpropanolamina em eventos que antecederam os Jogos de Seul (Vaz, 2005).
Isso nos diz que os atletas podem operar na fronteira da legalidade ao consumirem substâncias que, no momento em que o fazem, não estão na lista de proibições. Trata-se de uma operação de fronteira em que os limites “morais” são dados externamente, por uma lista de proibições e autorizações, e não pelas apostas ético-políticas que atletas e todo o sistema esportivo poderiam fazer. Seria o caso de pensarmos sobre o esporte que desejamos ter.
Alexandre Fernandez Vaz é doutor pela Universidade Leibniz Universität Hannover, Alemanha; professor do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e do Programa de Pós-graduação em Educação, ambos da Universidade Federal da Santa Catarina; pesquisador Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). O texto aqui apresentado compõe os esforços do Programa de Pesquisas Teoria Crítica, Racionalidades e Educação (IV), financiado pelo CNPq.
Referências
Hoberman, J. “The concept of doping and the future of olympic sport”. In: Allison, L. (org.). Taking sport seriously. Aachen: Meyer & Meyer, 1998, p. 31-52.
Ortega, F.; Vidal, F. “Mapeamento do sujeito cerebral na cultura contemporânea”. RECIIS- Revista Eletrônica de Comunicação Informação & Inovação em Saúde. Rio de Janeiro, p. 257-261, 2007.
Sabino, C. “Anabolizantes: drogas de Apolo”. In: Goldenberg, M. (org.). Nu & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2002. p.139-188.
Tamburrini, C. “¿Qué tiene de malo el dopaje?”. Diemata. ano 2, n. 5, p. 45-72, 2011.
Vaz, A. F. “Treinar o corpo, dominar a natureza: notas para uma análise do esporte a partir do treinamento corporal”. Cadernos Cedes. Campinas, n. 48, p. 89-108, 1999.
Vaz, A. F. “Drogas, esporte, performance: notas sobre os “limites” do corpo”. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Campinas, v. 27, n. 1, p. 23-36, set. 2005.
[1] Ver sobre o tema o trabalho de Sabino (2002).