Foto: Denniz Futalan, no Pexels
Por Camila Ramos e Leandro Magrini
O mundo tem hoje cerca de 272 milhões de migrantes internacionais segundo as estimativas do último Relatório de Migração Global de 2020. Isso equivale a 3,5% da população mundial, e representa um aumento de mais de 20% em relação ao número de migrantes em 2010.
As migrações e os deslocamentos são considerados um dos grandes desafios mundiais nas próximas décadas, sendo tema de grande discussão, estudos e políticas de diferentes organizações internacionais. Há diversas causas, e entre as mais bem compreendidas e documentadas estão as questões econômicas, os conflitos como guerras civis, e as perseguições de âmbito religioso e político.
No entanto, nas últimas décadas outra causa que tem se tornado cada vez mais conhecida como desencadeadora das migrações e deslocamentos de pessoas são os fatores ambientais – desastres de cunho natural e antrópico (provocados ou agravados pelo homem), e as mudanças ambientais devido ao aquecimento do planeta e às mudanças climáticas globais, como secas, desertificação, elevação do nível do mar, salinização dos solos, inundações e escassez de água potável.
O fator ambiental
O aquecimento global e as mudanças climáticas são pautas cada vez mais urgentes, fazendo parte atualmente de diversas agendas mundiais. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) de 2019 estima que até 2100 a temperatura média global aumente em até 5ºC, cenário que desencadearia o derretimento das geleiras polares e o consequente aumento do nível do mar em até um metro. Se o ritmo de aumento da temperatura não for reduzido, o IPCC prevê cenários de colapso global em um futuro próximo. (Veja o dossiê Crise climática da revista ComCiência).
No entanto, apesar das estimativas serem para o final do século, já é possível observar nações impactadas pelas mudanças no clima. Este é o caso do arquipélago das Maldivas e dos atóis da República de Kiribati no Oceano Pacífico. Ambas as ilhas se situam a apenas um a dois metros acima do nível do mar, ou seja, a gradual elevação do nível do mar já vem deixando milhares de pessoas sem abrigo ou sem condições de subsistência. O derretimento do gelo polar é outra mudança em curso que também tem afetado povos de forma direta, como “as populações nórdicas – os Inuit no Canadá e o povo Sami na Escandinávia -, pois esses dependem do gelo marinho e da neve para desenvolver suas atividades mais básicas, como o acesso a alimentos tradicionais (caça) e o transporte de bens e mercadorias e a vida tradicional em geral”, exemplifica o especialista em adaptação às mudanças climáticas e meio ambiente Nathan Debortoli.
Outra consequência é o aumento na frequência e intensidade de furacões, causados pelo aumento de CO² na atmosfera, o que aumenta as temperaturas e a quantidade de vapor de água disponível, funcionando como combustível para essas tempestades.
Além disso, Debortoli, explica que as “alterações nas correntes marítimas e temperaturas no mar podem ter efeitos em oscilações e fenômenos climáticos atmosféricos e oceânicos naturais como o El Niño e La Niña, que influenciam as temporadas de furacões no Oceano Atlântico e de ciclones no Oceano Pacífico”. São os mesmos fenômenos que causam alterações nos níveis pluviométricos no Brasil, como secas no Nordeste e chuvas intensas no Sudeste.
Esses eventos vitimizam milhares de pessoas todos os anos, seja pela destruição temporária de seus lares e bens, ou pela exclusão completa das chances de sobrevivência em suas terras natais.
Migrantes, refugiados ou deslocados ambientais?
Assim, as migrações e deslocamentos ambientais de pessoas são um fenômeno bastante complexo. Isto fica evidenciado até mesmo na miríade de termos ou expressões utilizadas para se referir a essas pessoas: “refugiados do clima”, “refugiados ambientais”, “migrantes climáticos”, “migrantes ambientais”, “eco-refugiados”, “pessoas ambientalmente deslocadas”, “migrantes ambientalmente forçados”…
Mas quem são essas pessoas? Andrea Pacheco Pacífico, professora da Universidade Estadual da Paraíba e co-coordenadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da Agência da ONU para Refugiados (Acnur), explica que não há uma definição legal (nem formal ou operacional) consensualmente aceita para se referir a essa categoria de pessoas em situação de mobilidade. “Prefiro utilizar o termo ‘deslocados ambientais’, pois assim diferencio deslocados (quando a mobilidade é forçada) de migrantes (que uso para situações em que há a vontade do indivíduo, por questões econômicas ou outras). Há os deslocados internos (que não cruzaram as fronteiras geográficas de um país) e os internacionais (que cruzaram fronteiras), e também os deslocados por alteração no meio ambiente em que viviam, independentemente de a causa ter sido natural (como terremotos e tsunamis), antrópica (como nas tragédias de Mariana e Brumadinho) ou mista”.
Pacífico complementa que embora usualmente o meio acadêmico e o sistema ONU utilizem os termos migrante ambiental (comumente usada pela OIM) ou deslocado ambiental (usada pela Acnur), “tem sido muito comum nos fóruns internacionais o uso da terminologia “refugiado ambiental”, como uma estratégia de forçar governos a alterar o regime internacional de refugiados, ampliando seu escopo e sua atuação, com o fim de proteger também essa categoria de pessoas, ou como forma de forçar a sociedade internacional a criar um novo regime internacional específico para proteção dessa categoria vulnerável de pessoas”, mas conclui enfatizando que “é importante não confundir os deslocados ambientais com os refugiados, categoria de pessoas juridicamente definida em tratados internacionais”.
Em síntese, até o momento os migrantes e deslocados ambientais não são reconhecidos como uma categoria específica no âmbito do direito internacional. Érika Pires Ramos, doutora em direito internacional e fundadora da Rede Sul-Americana para as Migrações Ambientais (Resama) chama a atenção que “existe uma convenção internacional do refugiado (Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de 1951), mas esta categoria não se aplica às pessoas que são afetadas ou que tem que migrar ou se deslocar em razão de mudanças ambientais”.
Em termos práticos, a ausência do reconhecimento da categoria de “refugiados ambientais” torna essas pessoas mais vulneráveis em termos de assistência e proteção de seus direitos fundamentais nos países/estados para onde se deslocam. “O reconhecimento é necessário, e também não basta apenas o reconhecimento da categoria, é preciso ter normas e políticas que tornem essa migração digna, segura e regular. Qual é o prejuízo da ausência do reconhecimento de uma categoria? É que essa categoria seja considerada irregular, e quando isso ocorre a vulnerabilidade aumenta, inclusive viabilizando as ações de coiotes e contrabandistas de pessoas que se aproveitam dessas situações. É muito importante que a gente tenha em mente essa complexidade, a necessidade e a urgência do reconhecimento dessa categoria”, aponta a fundadora da Resama.
E qual a dimensão do desafio de que estamos falando? A OIM estima que o mundo terá cerca de 200 milhões de “migrantes ambientais” até 2050, incluindo aquelas pessoas se deslocando entre fronteiras ou internamente em seus países. No entanto, nos piores cenários as estimativas chegam a 1 bilhão de migrantes ambientais para esse mesmo período.
Segundo a Convenção da ONU para o Combate à Desertificação (UNCCD), dentre os principais fatores para essas migrações/deslocamentos ambientais estão a seca e a desertificação, que deverão ser responsáveis pelo deslocamento de até 135 milhões de pessoas.
Mas em meio a esse grave cenário, em janeiro deste ano houve um importante fato que pode representar um marco a favor da luta dos deslocados ambientais pelo reconhecimento e garantia de seus direitos. Este evento foi a decisão do Comitê de Direitos Humanos (CDH) da ONU, favorável ao pedido de refúgio de Ioane Teitiota na Nova Zelândia, que devido a alterações ambientais causadas pela elevação do nível do mar na ilha em que nasceu (República de Kiribati), teve que abandonar sua terra natal.
“Essa decisão foi um precedente jurídico internacional”, comenta Pacífico, lembrando que deve ser salientado que “decisões jurídicas em cortes internacionais, em geral, não formam jurisprudências no mesmo sentido do direito brasileiro, ou seja, essa decisão não força outras cortes a decidirem no mesmo sentido”. Mas Pacífico considera que esse poderá ser o caminho mais fácil para os deslocados ambientais obterem a garantia de seus direitos. “Casos semelhantes podem utilizar-se dessa decisão para fundamentar suas solicitações, particularmente em comitês regionais, como o Comitê Interamericano de Direitos Humanos, que já defende a necessidade de proteção a esse grupo de pessoas, via recomendações”.
Pacífico destaca também que vários países já possuem normas específicas para proteção dos deslocados ambientais, como o Brasil, cuja Lei de Migração (13.445/2017) prevê visto temporário de acolhida humanitária aos deslocados internacionais que chegaram ao país fugindo de desastres ambientais, “embora o próprio Brasil ignore a proteção aos deslocados internos no ordenamento jurídico pátrio”.
Cenário brasileiro
Apesar de toda população de qualquer país poder ser ameaçada pelas mudanças climáticas ou por desastres ambientais, há aquelas ainda mais vulneráveis. “As populações mais afetadas são as que sofrem mais com as desigualdades sociais, como “mulheres, crianças, idosos, povos indígenas e povos tradicionais, agricultores familiares, regiões de favelas e áreas de risco. A falta de acesso à água potável, saneamento, moradias de qualidade e à saúde torna essas populações mais vulneráveis às mudanças climáticas”, declara Debortoli. E acrescenta que essas populações devem sofrer com o aumento das temperaturas nos centros urbanos e nas áreas rurais, com o incremento de doenças causadas por insetos vetores e com a falta de prevenção ou ajuda em caso de desastres como deslizamentos de encostas e inundações de moradias e perda de bens materiais. Além disso, muitos produtores rurais podem ser afetados, seja pela seca ou pelas tempestades extremas, perdendo suas safras.
Em um estudo sobre gênero e mudanças climáticas do Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas de 2016, foi destacado que as mulheres estão na linha de frente em relação à vulnerabilidade, representando cerca de 80% dos refugiados ambientais. As mulheres acabam sendo as maiores vítimas pois tendem a assumir papéis domésticos em diversas sociedades, tomando responsabilidades de cuidado e decisão sobre crianças, enfermos e idosos durante um desastre natural, além de não terem oportunidades econômicas e leis favoráveis para conseguirem migrar com segurança e acabarem sendo vítimas de violências e abusos sexuais, informa o estudo. “Nesse sentido, medidas de adaptação e mitigação são necessárias para diminuir a vulnerabilidade e exposição às mudanças climáticas”, conclui Debortoli.
Sobre a situação de vulnerabilidade dos deslocamentos ambientais no Brasil, uma publicação do Instituto Igarapé mostrou que entre 2000 e 2017 houve 7,7 milhões de deslocados internos, sendo 6 milhões por desastres, como barragens, hidrelétricas e estradas, ou seja, deslocamento ambiental antrópico. Pacífico publicou em 2017 um estudo sobre “A proteção nacional e internacional aos deslocados ambientais”, em que analisou a situação dos deslocados internos ambientais da região do sertão do nordeste brasileiro, cujo objetivo principal foi, segundo ela, “dar visibilidade a uma situação de extrema urgência e ignorada pela sociedade e pelo governo brasileiro”, e que são categorizados no país como “migrantes voluntários econômicos”. Para a professora, a omissão do governo brasileiro na proteção e promoção dos direitos humanos dos deslocados internos ambientais do sertão brasileiro poderia ser suprida “caso esta categoria de pessoas seja reconhecida como deslocados internos e, com isso, o Brasil se responsabilize internacionalmente, isto é, nas cortes regionais e internacionais”.
Discutir os direitos de se deslocar/migrar é também pensar nos “direitos do não deslocar/não migrar. Ninguém quer sair de repente, deixar suas raízes, deixar sua família, seus laços culturais, seu grupo, sua comunidade, para encarar uma realidade desconhecida e que nem sempre é acolhedora”, conclui Érika Ramos.
Camila Ramos é jornalista graduada pela Unesp e aluna de especialização em jornalismo científico pela Labjor (Unicamp).
Leandro Magrini é formado em biologia, com mestrado em ecologia e conservação de recursos naturais (UFU), doutorado em biologia comparada (USP) e pós-doutorado em psicobiologia (USP). É aluno de especialização em jornalismo científico pela Labjor (Unicamp).