Por Cecília Mello
Frequentemente sou indagada por amigos e colegas chineses acerca de meu profundo interesse pela obra de Jia Zhangke. Se pudesse resumir, diria que ele emerge da combinação paradoxal de familiaridade e estranheza. Por um lado, as grandes transformações que vêm assolando a China nas últimas décadas encontram um paralelo – mesmo que em menor escala – na urbanização acelerada e nas transformações socioespaciais ocorridas no Brasil na segunda metade do século XX. Por outro lado, a China era até recentemente um país isolado, envolto em uma aura de intangibilidade e mistério. Hoje, graças à sua crescente proeminência no panorama econômico e geopolítico mundial, o mundo todo parece voltar seus olhos para a China. O cinema de Jia Zhangke, mais do que qualquer outro, vem observando essas transformações e revelando o país para o mundo. Seria impossível exagerar a relevância de sua obra no panorama cinematográfico mundial, e um breve olhar para sua biografia nos ajuda a evidenciar a força de sua inovação estética e política.
Nascido em 1970 na cidade de Fenyang, província de Shanxi, no norte da China, Jia vivenciou durante a primeira parte da sua infância os anos da Revolução Cultural (文化的革命1966-1976), período em que enfrentou com sua família grandes dificuldades materiais. Já adolescente, durante os anos 1980, Jia pode testemunhar a primeira década de abertura econômica de seu país, iniciada com a era das reformas (改革开放 gaige kaifang) de Deng Xiaoping a partir de 1978. Nesse período, tomou contato pela primeira vez com culturas e expressões artísticas que vinham de fora da China: nas lojinhas de vídeo, karaokês e nas rádios pirata ele conhece aos poucos o cinema de artes marciais e de gênero policial de Hong Kong, as músicas pop de Taiwan e, posteriormente, os cinemas americano e europeu. No final dos anos 1980, Jia decide prestar o vestibular (高考 gaokao), mas como sempre fora ruim de matemática acaba sendo reprovado. Decide assim estudar artes em Taiyuan, cidade próxima de Fenyang e capital da província de Shanxi. Um dia, um pouco por acaso, ele entra em um cinema e assiste a Terra amarela (黄土地, 1984), de Chen Kaige, considerado o filme inaugural da quinta geração do cinema chinês, responsável pela primeira onda de renovação na cinematografia do país.
A experiência de ver Terra amarela foi definidora para Jia Zhangke e o motivou a largar o curso de artes para tentar uma vaga na disputada Academia de Cinema de Pequim, a mais tradicional da China. Após três tentativas, acabou sendo aceito e mudou-se para Pequim no início dos anos 1990. Em 1995, dirigiu o média-metragem Xiao Shan volta para casa (小山回家), com seu colega Wang Hongwei no papel do personagem-título. O filme acabou sendo exibido no festival de cinema e vídeo independente de Hong Kong, e lá Jia travou conhecimento com Yu Lik-wai, até hoje seu diretor de fotografia e fiel colaborador.
Após sua formatura na Academia de Cinema em 1996, Jia realizou três filmes de longa-metragem em Shanxi, sua província natal, posteriormente agrupados sob a denominação “Trilogia da Terra Natal”. O primeiro é Xiao Wu (小武), de 1997, o segundo Plataforma(站台), de 2000, e o terceiro Prazeres desconhecidos(任逍遥), de 2002. Esses filmes foram realizados sem aprovação oficial do governo e nunca receberam distribuição comercial na China, mas foram exibidos e aclamados em festivais de cinema no exterior. Filmados em locações reais, com atores semi ou não-profissionais, e com recursos de produção limitados, a trilogia se destaca pelo elevado grau de realismo cinematográfico que lhe confere um caráter de imediatez e uma maior proximidade à realidade urbana da China contemporânea, até então praticamente ausente do cinema chinês. Esse estilo do cineasta acabou por ser associado – ao lado da obra de outros diretores contemporâneos como Zhang Yuan, Wang Xiaoshuai e Lou Ye – à sexta geração do cinema chinês, que se distingue da quinta geração justamente por sua ênfase na vida das cidades e no tempo presente.
Ao longo das últimas duas décadas, Jia se firmou como o principal diretor de sua geração, dotado de olhar aguçado para a realidade das transformações de seu país. Ante a velocidade das mudanças, seu cinema parece movido pelo desejo de registrar o desaparecimento do velho e o surgimento do novo e, assim, preservar uma paisagem efêmera e um real instável. Além disso, o cineasta parece muito consciente da dimensão espacial da memória, geralmente ofuscada por sua dimensão temporal, e de como um espaço em desaparecimento acarreta inevitavelmente uma perda de memória. Daí deriva uma urgência em filmar esses espaços e essas memórias, atrelada, de modo aparentemente contraditório, a um estilo lento, que se empenha em observar cuidadosamente aquilo que está prestes a desaparecer.
Em 2006, três anos após seu primeiro filme realizado com aval do governo chinês (O mundo 世界, 2003), Jia dirige sua obra-prima Em busca da vida (三峡好人), vencedora do Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza. Filmado em locação na região das Três Gargantas, no sudoeste da China, o filme transcorre em Feng Jie, cidade de mais de 2000 anos prestes a ser submersa pela construção da represa das Três Gargantas, hoje a maior usina hidrelétrica do mundo. Em meio a prédios desabados, muros esburacados e pilhas de entulho, o filme lança um olhar para o desaparecimento não só da cidade como também de uma das paisagens mais icônicas da China, formada pelas três gargantas do rio Yangtze, cuja centralidade para a memória cultural e coletiva do país se deve principalmente à sua presença recorrente em poemas e pinturas clássicas das dinastias Tang, Song e Yuan. Trata-se, portanto, de um filme empenhado em observar o real e ao mesmo tempo em refletir sobre o processo de transformação da China, que em sua magnitude e velocidade se configura muitas vezes como uma forma de agressão ao passado e à tradição.
Em 2013, Jia lança Um toque de pecado (天注定,2013), baseado em histórias que coletou no app Weibo e costurado a referências à história da arte chinesa, tecendo assim um comentário agudo sobre o crescente problema da violência social no país. Por esse trabalho, que acabou proibido na China, ele recebeu o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cinema de Cannes. Dois anos depois, Jia voltou a Cannes com Mountains may depart (山河故人,2015), filme que recupera personagens de Plataforma e inova ao centrar sua ação em três tempos distintos: passado, presente e futuro. O filme foi lançado na China com bastante alarde e exibido com sucesso em cinemas por todo o país.
Como em uma confirmação de sua relevância no panorama do cinema mundial, Jia foi objeto do documentário Jia Zhangke, um homem de Fenyang, lançado em 2014 durante a 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Esse documentário de longa-metragem, dirigido com grande sensibilidade por Walter Salles, homenageia a vida e a obra de Jia Zhangke, acompanhando-o de volta à sua cidade natal e visitando locações de seus filmes na China. O lançamento ocorreu em conjunto com a publicação do livro O mundo de Jia Zhangke, organizado por Jean-Michel Frodon e co-organizado por Walter Salles, que conta com ensaios e uma longa entrevista com o cineasta.
Seu filme mais recente, Amor até as cinzas (江湖儿女, 2018), retoma personagens do terceiro filme da Trilogia da Terra Natal, Prazeres desconhecidos, e confirma a inclinação de Jia por temas relativos à filosofia taoísta, inspirados no Zhuangzi (莊子). Esta inclinação muitas vezes se choca com a inclinação pelo confucionismo expressa pelo atual regime chinês, mais favorável a uma corrente de pensamento alicerçada no respeito às autoridades e tradições e avessa a revoluções. Mas nos últimos anos Jia vem se mostrando um habilidoso negociador. Hoje, além de diretor, ele é produtor, empresário, professor e uma liderança artística em seu país, influenciando políticas culturais junto ao congresso nacional chinês. Em Shanxi, sua terra natal, ele fundou nos últimos anos um centro cultural, um restaurante, um festival de cinema, e vem trabalhando para o desenvolvimento da região e de seu turismo. Algo notável para um cineasta tão premiado e consagrado internacionalmente, mas que nunca deixou de olhar para sua terra natal, sua gente e suas histórias. Ao lado de sua esposa e musa inspiradora Zhao Tao, atriz de quase todos os seus filmes, ele vem construindo uma obra potente e singular, fruto da combinação entre poesia e história, realismo e memória, capaz de conter tanto a China da globalização quanto a China das tradições milenares.
Cecília Mello é professora livre-docente na Escola de Comunicações e Artes da USP. É autora de The cinema of Jia Zhangke: Realism and memory in chinese film (Londres: Bloomsbury, 2019. Honourable Mention – Best Monograph 2020 – British Association of Film, Television and Screen Studies). Sua pesquisa sobre Jia Zhangke foi financiada pela Fapesp – Programa Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes.