Por Jayme Brener
No Oriente Médio, todos os players têm as mãos sujas de sangue inocente. E não haverá paz enquanto israelenses e palestinos não reconhecerem seu mútuo direito à vida
O “ou não” de Caetano Veloso ficou marcado como a negação tropicalista de tudo o que havia sido dito anteriormente. Na verdade, o conceito foi mencionado em 1972 pelo músico Walter Franco (1945-2019). Mas seja Caetano ou Walter Franco o responsável, o tal do “ou não” parece ter sido cunhado sob medida para o Oriente Médio. Lá, quem busca mocinhos e bandidos vai voltar com a cauda entre as pernas. Não há quem não tenha as mãos sujas de sangue inocente e existem “verdades” para tudo.
Há quem diga que o conflito começou com a não aceitação, pelo mundo árabe, da partilha da Palestina, decidida pela ONU em 1947, criando Israel e o Estado Palestino. Ou não: de fato, cinco países árabes invadiram a recém-criada Israel em 1948, perderam a guerra e a parte árabe da partilha foi ocupada pelos israelenses. Mas as forças israelenses aproveitaram a chance e expulsaram milhares de palestinos de suas terras, ampliando o território no novo Estado judeu. Ou não, outra vez: governos árabes também insuflaram os palestinos a abandonarem suas terras, garantindo que voltariam mais tarde em meio a uma grande vingança que destruiria Israel.
Outros afirmam que a raiz está na ocupação de Gaza, Jerusalém, Cisjordânia, o deserto do Sinai, as colinas de Golan e as fazendas de Sheba, após a vitória israelense contra o mundo árabe na Guerra dos Seis Dias, em 1967. Ou não: Israel devolveu o Sinai ao Egito, retirou-se de Gaza em 2015 e anexou Jerusalém e o Golan, mas manteve a ocupação da Cisjordânia.
No início dos anos 90, houve uma grande expectativa de um acordo que levaria ao fim da ocupação e à criação do Estado Palestino.
Por que não deu certo? Israel culpa o então líder palestino Yasser Arafat (1929-2004), que, no meio das negociações, trouxe à mesa uma questão que não havia sido discutida: a volta a Israel dos refugiados palestinos de 1948. Ou não: outros responsabilizam o então governo israelense por tentar implementar uma paz dos vencedores, manu militari, marginalizando o lado palestino.
Falando em Gaza, uns creditam a responsabilidade do atual conflito ao domínio dos fundamentalistas do Hamas na região. Ou não: o primeiro-ministro direitista de Israel, Beniamin Netaniahu, fechou os olhos à hegemonia do Hamas em Gaza por preferi-la aos nacionalistas da OLP (que, ao contrário do Hamas, reconhecem o direito de existência de Israel). Quer dizer, Netaniahu sempre preferiu Gaza sob o Hamas como um tampão para impedir a criação do Estado Palestino sob o domínio da OLP.
E há, claro, o Irã, que criou um anel xiita para cercar Israel, incluindo a Síria, Iraque, o governo dos houthis no Iêmen e o Hizbollah, que manda de fato no Líbano. Vale um ou não até para esse “arco xiita”, já que o Hamas palestino é sunita…
Como reação, Netaniahu e a Casa Branca idealizaram um “arco sunita”, somando Marrocos e Emirados Árabes Unidos ao Egito e à Jordânia, com quem Israel já tem acordos de paz. O próximo passo seria a Arábia Saudita, que, em troca da paz com Israel, receberia sinal verde dos EUA para criar seu programa nuclear, de forma a contrapor-se ao Irã (de quem tomou uma surra no Iêmen), este muito próximo da bomba atômica por conta da aliança com a Rússia de Putin e com a Coreia do Norte.
O ataque do Hamas ao Sul de Israel, em 7 de outubro de 2023, paralisou a criação do arco sunita. Foi o maior pogrom antijudaico desde a II Guerra Mundial, com 1.200 mortos, a maioria, civis. Ou não: há quem diga que foi apenas uma reação às décadas de opressão israelense contra Gaza. Segmentos de esquerda, inclusive no Brasil, saudaram o ataque, que incluiu estupros a título de intimidação, como um verdadeiro ato de resistência nacional.
Veio a reação israelense, que o Hamas esperava e planejava para envolver o Hezbollah libanês e o próprio Irã em uma guerra pela destruição de Israel. Mas nem o Hezbollah nem o Irã toparam um envolvimento total. Outro “ou não” e a reação de Israel transformou-se no morticínio de (até agora) mais de 42 mil palestinos em Gaza, incluindo milhares de mulheres, crianças e idosos, já que o Hamas opera misturado a estruturas civis.
Muitos acusam Israel de genocídio. E muitos desses muitos fecham os olhos às dezenas de israelenses sequestrados em 7 de outubro de 2023, incluindo crianças e idosos, e que ainda estão nos túneis do Hamas.
Há quem justifique o ataque israelense a Gaza e ao Hezbollah, no Líbano, lembrando que o regime fundamentalista do Irã já declarou sua disposição de destruir Israel. Afinal, o líder de fato do Irã, ali Khamenei, escreveu em suas redes sociais, em 2015; “Se Deus quiser, não haverá nada do regime sionista em 2040”.
Ou não: outros acreditam que o verdadeiro senhor da guerra é Netaniahu, que, com ela, quer recuperar sua credibilidade, abalada pelo colapso das defesas israelenses no 7 de outubro. E, de quebra, escapar de um julgamento de corrupção, que o aguarda. Estes creem que Netaniahu fará de tudo para prolongar a agonia da guerra até as eleições de novembro nos Estados Unidos, sonhando com a volta de seu chapa, Donald Trump. O que poderia dar sinal verde à disposição dos ultradireitistas do gabinete de Netaniahu (sim, há gente mais radical do que Netaniahu, como Itamar Ben-Gvir, ministro da Segurança Nacional), de reocupar Gaza.
Quer dizer, então, que o domínio do “ou não” sepulta verdades históricas, consolida versões antípodas e impede uma solução para o conflito? Pode até ser. Só que não. Há dois fatos sobre os quais não dá pra dar um jeitinho. O primeiro é que milhares de inocentes continuam morrendo dos dois lados (embora a desproporção seja evidente por conta da dimensão da ofensiva israelense) e que o fantasma de uma terceira guerra nuclear continua à espreita.
O segundo ponto é que o nó do conflito é o relacionamento entre Israel e os palestinos. Nenhuma perspectiva de paz será durável enquanto os dois lados não entenderem o sofrimento alheio e se sentarem a negociar. Reconhecendo o direito do outro à vida, à felicidade e a um Estado Palestino convivendo em paz com um Estado judeu. Sobre isso, com o perdão de Caetano e Walter Franco, não há “ou não”.
Jayme Brener é jornalista e escritor