Por Maria Vitoria Pereira de Jesus
Falta de censo próprio dificulta a elaboração de ações governamentais – estimativas contabilizam em torno de 300 mil pessoas
Imagem: Helio Montferre/IPEA
Há escassez de dados sobre população em situação de rua no Brasil, dificultando a implementação de políticas públicas. Marco Natalino, pesquisador do Ipea e autor do relatório “Estimativa da população de rua no Brasil” calcula que o número já esteja por volta de 300 mil pessoas. Para se ter uma ideia, é como se todos os moradores de um município do porte de Várzea Grande (MT) não tivessem acesso à moradia, alimentação e serviços básicos como saúde e educação. Ou seja, como se estivessem tendo a sua existência negada ou não fossem visíveis ao poder público e aos olhos do Estado.
Segundo Ana Paula Diniz, pesquisadora do Programa Polos de Cidadania da UFMG e membro do Fórum Nacional de Pessoas em Situação de Rua, “são pessoas que não têm a existência reconhecida pelo Estado”. Para ela, o alto número da estimativa do Ipea evidencia que o Estado falhou ao assegurar direitos fundamentais. “Na Constituição de 1988 constam dignidade humana, liberdade e saúde para as pessoas. A situação de rua é onde o Estado não cumpriu seu principal propósito”.
Não é que o poder público e o Estado desconheçam a realidade. No entanto, não há um instrumento de coleta de dados que permita fazer a contabilização dessas pessoas. Marco Natalino destaca que o IBGE, instituto responsável por contabilizar a população, deixa as pessoas em situação de rua de fora da contagem, uma vez que leva em consideração apenas os indivíduos domiciliados.
O estudo publicado pelo Ipea faz uma estimativa usando dados do Censo do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e do Cadastro Único. Ambos têm como objetivo garantir aos indivíduos mais pobres assistência e acesso a benefícios sociais – e não se tratam de instrumentos específicos de coleta de dados de pessoas em situação de rua.
Dificuldade de coleta de dados para implementação de políticas públicas
É preciso ter informações para elaborar políticas públicas que sejam efetivas. Segundo Natalino, a obtenção de dados sobre a população em situação de rua é bastante complicada tanto pela falta de censo próprio quanto pelo fato de os indivíduos nem sempre estarem dispostos a responder questionários que não se refletem em benefícios imediatos. De acordo com o pesquisador, equipes de saúde e profissionais das ciências sociais de cidades como Recife (PE) e Belo Horizonte (MG) já tentaram fazer tal coleta de dados, no entanto, não tiveram sucesso. “Ambas as pesquisas geraram uma taxa de recusa ou de não resposta em torno de 50%”.
Segundo Natalino, no âmbito do governo federal, existe um grupo de trabalho interministerial dedicado ao aprimoramento das informações já existentes e à produção de novos dados. Além disso, deve pensar novas estratégias de coleta de dados, abrangendo as taxas de recusa e o fato de as pesquisas feitas pelo IBGE considerarem apenas os indivíduos domiciliados. “Nesse caso, algumas das técnicas de pesquisa social mais tradicionais na área de demografia não se aplicam. É preciso ter uma abordagem específica e levar em conta essa taxa de não-resposta na hora de fazer pesquisa”.
Moradia primeiro
Pesquisadores defendem que a moradia é passo essencial para a modificação da realidade das pessoas em situação de rua. “A moradia é uma condição de efetividade das outras políticas públicas”, diz Natalino. Segundo o pesquisador, as experiências de países como Canadá, Estados Unidos e França evidenciam que políticas de trabalho, saúde e educação voltadas para as populações em situação de rua funcionam muito melhor se a moradia vier primeiro. Além disso, ele enfatiza a importância como um direito humano.
Segundo Ana Paula Diniz, o problema de habitação é acentuado pela especulação imobiliária. “Moradia deixou de ser um direito para ser tratada como mercadoria”. Assim como Natalino, ela aponta que esse precisa ser o primeiro passo para modificar a realidade das pessoas em situação de rua, como forma de acesso a outros direitos. “É difícil a gente pensar nos outros direitos sem moradia. Como vamos garantir saúde para uma pessoa se ela está dormindo na rua? Como vamos garantir alimentação saudável, se ela está comendo o resto de comida do lixo? Como vamos garantir educação se ela não tem um ambiente de concentração adequado para estudar e ter um sono de qualidade?”, diz a pesquisadora.
Junto à moradia, Ana Paula defende que se deva pensar nas condições de acesso à escola, postos de saúde e locais de trabalho para pavimentar ações efetivas que modifiquem a realidade das pessoas em situação de rua. Além disso, é necessário que se considere a existência da desigualdade socioeconômica e do racismo estrutural, uma vez que essa situação tem raízes no período de escravidão. [veja mais sobre o tema em entrevista da pesquisadora Patrícia Maria de Jesus na ComCiência]
Maria Vitoria Pereira de Jesus é cientista social e cursa especialização em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).