Por Carlos Orsi
O início da Era da Pós-Verdade é fake news: o problema, para desespero dos populistas e dos marqueteiros, não é que as pessoas não se importam com a verdade, que a única forma de se comunicar com o público é por meio de apelos à emoção, à vaidade e ao preconceito, e sim que a verdade tem dificuldades em chamar a atenção num ambiente de mídia tão saturado quanto o contemporâneo.
As expressões “fake news” e pós-verdade” comumente são mencionadas num só fôlego, como se fossem apenas nomes diferentes ou no máximo aspectos diversos de um mesmo fenômeno. Mas isso é um erro: embora haja elementos em comum – ambas pressupõem uma falta de apreço pela verdade e prosperam numa ecologia de mídia dominada por redes sociais – suas causas históricas e implicações para a sociedade são diversas.
Para evitar longas discussões filosóficas, proponho aqui tratar “verdade” como significando a enunciação de alegações factuais objetivas, verificáveis e verificadas. Traduzindo: para o escopo desta análise, uma “verdade” é a afirmação de um fato que pode ser verificada e, sendo, confirma-se. Por exemplo, “Napoleão Bonaparte foi imperador da França no início do século 19” será verdade se qualquer um que se der ao trabalho de checar essa alegação, pelos melhores meios disponíveis, conseguir encontrar evidência comprobatória suficiente.
Eleita “palavra do ano” de 2016 pelo Dicionário Oxford, “pós-verdade” foi definida, por esse mesmo dicionário[1], como “circunstâncias em que os fatos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.
Trata-se, portanto, de um estado social ou civilizatório em que a verdade – os fatos objetivos verificáveis – deixa de ter relevância no debate público, um momento em que a discussão política e o diálogo democrático passam a ser dominados por aquilo que o filósofo americano Harry G. Frankfurt define como bullshit[2], ou “falação de merda”.
Para Frankfurt, há uma distinção crucial entre “mentir” e “falar merda”: o mentiroso reconhece a existência de uma separação fundamental entre o verdadeiro e o falso, ainda que opte pelo falso; o bullshitter, ou “falador de merda”, não enxerga nenhuma diferença: para ele, toda enunciação é um meio para um fim (modificar opiniões, alterar comportamentos, obter votos etc.), e ele usará mentiras ou verdades indiferentemente, desde que o ajudem a atingir esse fim. O mentiroso é, em essência, um pecador; o bullshitter, um psicopata.
O que se poderia chamar de epicentro do terremoto que popularizou a ideia de que a civilização ocidental teria mergulhado numa era de indiferença à verdade ocorreu durante o intenso debate que antecedeu a decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia, a “Brexit”. Numa entrevista a um canal de TV em junho de 2016, o então secretário de Justiça do governo britânico Michael Grove, um defensor da Brexit, declarou que “o povo está farto de especialistas”.
A frase, que aliados do ministro dizem ter sido descontextualizada – ele estaria se referindo aos especialistas vinculados a organizações que se opunham à Brexit, não a “especialistas” em geral – converteu-se num símbolo da suposta irrelevância do conhecimento factual, o que representaria uma espécie de debacle da civilização causada pelas redes sociais, em que as pessoas tendem a submergir em “bolhas de filtro” e “câmaras de eco” que as tornam imunes à distinção entre verdade e mentira.
Já “fake news” significa, literalmente, “notícias falsas”. A simples preocupação em marcá-las como “falsas” traça uma distinção importante em relação à “pós-verdade” e à bullshit. Quem produz “fake news” não é, como o bullshitter, indiferente à verdade: ele tanto se importa com ela que se dá, até, ao trabalho de falsificá-la.
Logo após a fala de Grove na TV britânica, a noção de que a esfera pública estaria entregue à pós-verdade se viu sob ataque. No Reino Unido, a ONG Sense about Science, dedicada a combater a falsificação e o mau uso de informações científicas no debate público, lançou a campanha Evidence Matters, com eventos nos parlamentos britânico e europeu[3].
Reportagem do jornal The Guardian sobre o evento refere-se à necessidade de contra-atacar a “caricatura” de que o povo não liga mais para os fatos[4]. Na edição especial do Natal de 2016 do periódico British Medical Jornal, Tracey Brown, diretor da ONG, advertiu em editorial[5] que “por mais horripilante que seja testemunhar o carisma de pessoas que traficam preconceitos e inventam mentiras, ver falsidades e desinformação serem denunciadas mas, ainda assim, receberem uma aparente acolhida, é errado concluir que o público não liga para a verdade”.
Brown cita, em seguida, pesquisa que mostra que mais de 80% da população britânica acredita que o governo deve consultar especialistas e levar os fatos objetivos em consideração na hora de tomar decisões[6].
Mesmo o temor de que as redes sociais estariam isolando as pessoas em “bolhas” de informação, impermeáveis ao contraditório, parece exagerado. Estudos publicados na Science[7] em 2015 e numa edição especial de Public Opinion Quarterly[8] em 2016 sugerem que o consumo de conteúdo noticioso é mais diverso do que a hipótese da “bolha” sugere, e que o efeito de isolamento informativo é mais modesto do que as pessoas imaginam.
O início da Era da Pós-Verdade seria, então, fake news: o problema, para desespero dos populistas e dos marqueteiros, não é que as pessoas não se importam com a verdade, que a única forma de se comunicar com o público é por meio de apelos à emoção, à vaidade e ao preconceito, e sim que a verdade tem dificuldades em chamar a atenção, num ambiente de mídia tão saturado quanto o contemporâneo.
A novidade, no caso, é a saturação, não a existência de notícias falsas, ou a inadequação das mídias – novas ou tradicionais – em lidar com elas. Como bem exemplifica o jornalista britânico James Ball em seu livro Post-Truth[9], já nos anos 50 do século passado o senador americano Joseph McCarthy conseguia manipular a pauta de toda a mídia dos Estados Unidos com uma mentira: a de que existia uma lista de mais de 200 comunistas infiltrados no governo americano.
Além de acusar a incapacidade hipócrita da mídia tradicional em chamar um mentiroso de mentiroso, ainda mais quando se trata de uma fonte em posição de poder (o livro lembra as críticas que The New York Times sofreu, no meio jornalístico, quando se referiu às alegações de Donald Trump sobre fraude eleitoral em 2016, corretamente, como “mentiras”), Ball aponta uma série de características estruturais e históricas do jornalismo tradicional que o tornam vulnerável à manipulação por gente disposta a mascarar a verdade.
A lista vai desde a estrutura clássica do texto em “pirâmide invertida” – em que a informação mais bombástica (digamos, McCarthy fazendo sua denúncia, Trump alegando fraude) aparece logo no título e no primeiro parágrafo, enquanto que as dúvidas e contestações, se houver, ficam relegadas a parágrafos inferiores que poucos irão ler – até a regra da “reportagem equilibrada” ou de “ouvir o outro lado”, que muitas vezes acaba dando pesos iguais a fontes e informações de relevância desigual: o caso típico é o da reportagem sobre saúde que dá espaço igual ao médico e ao curandeiro.
Se o problema não é novo, por que tamanho rebuliço, agora? A expansão da internet, sob seu o modelo atual de financiamento, em que algoritmos priorizam e premiam – sem sutilezas ou distinções éticas – qualquer tipo de conteúdo que capture a atenção popular e opere a multiplicação dos cliques, acentua o impacto das notícias falsas, dando-lhes uma capacidade potencial de influir decisivamente na esfera pública.
Isso ocorre de duas formas: primeiro, como efeito colateral da destruição dos tradicionais indicadores indiretos de credibilidade, usados pelos consumidores de mídia como pistas para decidir o que merece, ou não, ser lido e levado a sério.
A convivência de gerações de seres humanos com a instituição do jornal diário acostumou as pessoas a olhar para coisas como apuro gráfico, tipologia, estilo do texto e correção gramatical como índices de seriedade informativa: se é bonito, sóbrio, bem escrito e bem diagramado, deve estar dizendo a verdade.
A popularização das mídias digitais teve, no entanto, o efeito de tornar essa “cara de jornal sério” acessível a qualquer um; fenômeno que ocorreu ao mesmo tempo em que a busca desesperada por mais velocidade e mais cliques rebaixou a qualidade média dos textos nos veículos tradicionais. Esses dois movimentos – qualquer um pode ser bonito, todos são meio mal escritos – trouxeram um nivelamento que torna os indicadores indiretos de credibilidade, efetivamente, inúteis.
Com isso, veículos que fazem uma exploração predatória das regras do mundo online – sejam os bullshitters dispostos a qualquer coisa por um clique, sejam os mentirosos que querem manipular o debate público – confundem-se, numa espécie de camuflagem, com quem ainda tenta trabalhar direito.
Além disso, não só o choque econômico causado pelo advento das novas mídias fragilizou o jornalismo tradicional, reduzindo sua capacidade de realizar apurações mais aprofundadas e de analisar melhor as informações, como acentuou o impacto dos diversos defeitos estruturais pré-existentes na forma clássica de se fazer jornalismo, derivados da pirâmide invertida, da busca ingênua pelo equilíbrio etc.
Os pontos cegos do jornalismo apontados por James Ball continuam a existir. Mentirosos manipuladores, em posição de poder político ou econômico, seguem tendo, como sempre tiveram, carta branca para emplacar lorotas nas manchetes e nos primeiros parágrafos da imprensa respeitável, que reluta em chamá-los de mentirosos.
Mas, agora, não só o valor da manchete aumentou desproporcionalmente – afinal, este é um mundo de mídias sociais, onde pessoas compartilham notícias depois de ler apenas uma ou duas linhas – como muitas vezes não estão mais disponíveis os recursos, humanos e financeiros, necessários para apurar e produzir a contextualização adequada que, talvez, viesse no terceiro ou quarto parágrafo (para quem tivesse a paciência de ler até lá).
A redução do dano causado por notícias falsas depende da revisão de um modelo econômico que premia os mentirosos (porque a mentira é barata o bastante para se pagar com relativamente poucos acessos) e pune quem busca a apuração séria (porque o processo tem custos inerentes, e requer um volume exorbitante de cliques para se sustentar).
Já existe muita gente trabalhando nisso, com experiências que vão do chamado paywall poroso ao estabelecimento de fundações e ONGs para sustentar o jornalismo.
Enquanto essa faceta do problema não se resolve, no entanto, não é demais lembrar que muitas das fragilidades que fazem do jornalismo tradicional uma vítima de loroteiros já foram e continuam sendo enfrentadas com sucesso pelos repórteres especializados em ciência.
Durante décadas, o jornalismo de ciência teve de desenvolver estratégias para lidar não só com as alegações de criacionistas, pseudo-arqueólogos que invocam deuses astronautas ou colônias perdidas da Atlântida, ufólogos, fanáticos contra a vacinação infantil e figuras assemelhadas, como também com as feitas por pesquisadores, aparentemente legítimos, que aparecem dizendo ter descoberto o peso da alma ou o moto-perpétuo.
Enquanto a solução econômica não vem, não seria má ideia o pessoal das chamadas hard news – política, economia – pedir umas dicas aos nerds da ciência. Supondo, claro, que tenha sobrado algum na redação.
Jornalista formado pela USP (1992), Carlos Orsi é coordenador de Divulgação Científica dos Planetários de São Paulo. Trabalhou no Grupo Estado por mais de 14 anos, cobrindo principalmente ciência, e na Unicamp, como repórter e editor das publicações Ensino Superior e Inovação (2011-13) e como repórter especial e colunista do Jornal da Unicamp (2013-17). É autor dos livros Pura picaretagem (Editora LeYa, com Daniel Bezerra), O livro dos milagres (Vieira & Lent), Campo total, Guerra justa e Nômade, entre outros.
[1] https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016 (acessado em 8/1/2018)
[2] https://www.stoa.org.uk/topics/bullshit/pdf/on-bullshit.pdf (acessado em 8/1/2018). Lançado no Brasil como Sobre Falar Merda, Editora Intrínseca, 2005
[3] http://senseaboutscience.org/activities/evidence-matters/ (acessado em 8/1/2018)
[4] https://www.theguardian.com/science/sifting-the-evidence/2016/nov/02/no-the-public-hasnt-had-enough-of-experts-or-evidence (acessado em 8/1/2018)
[5] doi: 10.1136/bmj.i6467
[6] https://www.instituteforgovernment.org.uk/sites/default/files/publications/IfG_polling_note_WEB3.pdf
[7] DOI: 10.1126/science.aaa1160
[8] https://5harad.com/papers/bubbles.pdf
[9] Biteback Publishing, 2017